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História da Ciência no Brasil

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A carta régia que institucionalizou o ensino da ciência na engenharia brasileira (1810)

por Heloi Moreira/UFRJ

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Está depositado na Biblioteca Nacional o documento da origem da institucionalização do ensino das ciências de engenharia no Brasil: a Carta Régia de D. João VI que criou, em 1810, a Academia Real Militar.

No início do século XIX, em decorrência da invasão de Portugal pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte, a família real portuguesa transferiu-se para o Brasil. Tornando-se sede do governo português, era preciso criar na América portuguesa um exército eficiente e com formação moderna, de modo a prover uma adequada segurança ao território e à própria Coroa.

O Príncipe Regente D. João VI tinha como ministro plenipotenciário Dom Rodrigo Domingos Antonio de Souza Coutinho, o Conde de Linhares.



FIGURA 12: ALMEIDA, Francisco Tomaz de. D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Conde de Linhares, Conselheiro, Ministro e Secretario de Estado... Lisboa [Portugal]: [s.n.], 1812. Biblioteca Nacional.

Ele era um homem considerado com vasto conhecimento e possuía arguta visão política. Fez o curso jurídico na Universidade de Coimbra, um dos mais importantes daquela época. Esteve na França várias vezes e lá conheceu inúmeros homens de ciência e matemáticos. Vindo para o Brasil com a família real, ele não hesitou em aconselhar o Príncipe Regente sobre a conveniência em reformular o ensino militar que até então era aqui ministrado. Assim, com a cultura que possuía, elaborou, em bases científicas, os estatutos de uma nova academia para o ensino militar e de engenharia. Em 04 de dezembro de 1810, por Carta Régia de D. João VI, foi então instituída a Academia Real Militar.

A presença das Faculdades de Matemática e de Filosofia coimbrãs também se fez sentir, pois a Academia Real Militar apresentou um estatuto minucioso, cobrindo diversas áreas do conhecimento científico, como o cálculo diferencial e integral, a astronomia, a ótica, a mineralogia, a história natural dos “reinos vegetal e animal”, etc. Foi projetada uma instituição avançada, contendo cadeiras básicas versando sobre os mais modernos conceitos científicos da época, assim como também apresentando cadeiras de aplicação e exigindo exercícios práticos dos conhecimentos adquiridos.

Sendo a Academia Real Militar uma instituição de ensino militar, naturalmente a maior parte dos seus professores era de oficiais de carreira, formados nas instituições militares de Portugal. No entanto, para as cadeiras de ciências básicas, vários foram os professores que se formaram pela Universidade de Coimbra. Os compêndios adotados para as cadeiras eram as obras científicas utilizadas nas escolas parisienses, de autores como La Croix, Le Gendre, Monge, Prony, Bézout, Euler e outros. Assim, a criação da Academia Real Militar institucionalizou o ensino regular de ciências no Brasil. Embora seu objetivo principal fosse o estudo da ciência bélica, ela foi estruturada de modo a tornar-se um centro de estudos das ciências matemáticas e das ciências de observação.

A Academia Real Militar representa uma ruptura na história do ensino da engenharia no Brasil. Até então, o ensino era realizado com fins quase que exclusivos para a construção de edificações militares, em especial as fortificações destinadas à defesa das fronteiras do território brasileiro. Evidentemente, muitos desses conhecimentos se aplicavam também aos prédios civis, governamentais e religiosos.

A Academia Real Militar apresentou vários aspectos originais no ensino superior brasileiro. Em primeiro lugar, a obrigatoriedade dos professores em preparar um compêndio para o seu curso, que poderia ser de sua própria autoria ou até uma tradução. Foi estabelecida também a concessão de prêmios anuais aos melhores alunos. Em segundo lugar porque se destinava não só a formação de oficiais de engenharia e artilharia, mas também, conforme explicitamente previa o seu estatuto, a de “(...) engenheiros geógrafos e topógrafos que também possam ter o útil emprego de dirigir objetos administrativos de minas, caminhos, portos, canais, pontes, fontes e calçadas”.

Finalmente, o ensino consistia de um conjunto de cadeiras que versavam sobre assuntos de ciências, de engenharia em geral e, também, cadeiras específicas da área militar. Nesse sentido, a Academia Real Militar foi um ponto de inflexão no ensino de engenharia no Brasil, saindo de um ensino essencialmente prático para uma proposta eminentemente científica.

Na seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional encontra-se um exemplar dos Estatutos da Academia Real Militar. São 87 (oitenta e sete) páginas, incluindo a capa, contendo 12 (doze) Títulos, a saber:

  • Título Primeiro: Da Junta Militar que comandará a Academia;

  • Título Segundo: Sobre o número de professores, ciências que devem ensinar e de seus substitutos;

  • Título Terceiro: Requisitos que devem ter os Professores e vantagens que lhes ficam pertencendo;

  • Título Quarto: Dos discípulos e condições que devem ter para serem admitidos, assim como das diversas classes com que deverão subdividir-se;

  • Título Quinto: Das aulas e Casa para os instrumentos;

  • Título Sexto: Do tempo, horas das lições dos dias letivos e feriados;

  • Título Sétimo: Dos exercícios diários, seminários, forma dos exames no fim do ano letivo, assim como dos que são obrigados a seguir estes Estatutos;

  • Título Oitavo: Dos exercícios práticos:

  • Título Nono: Das disposições pertencentes à boa ordem das aulas e Academia;

  • Título Decano (Décimo): Dos privilégios e prerrogativas da Academia Real Militar;

  • Título Undécimo: Dos partidos (bolsistas) e Prêmios;

  • Título Duodécimo: Do Secretário e Guarda Livros, Guarda Instrumentos, Guardas e Porteiros.


Observa-se, portanto, o quanto foi ambicioso o projeto do Conde de Linhares para a Academia Real Militar: uma verdadeira escola de ciências no Brasil, no despertar do século XIX.



FIGURA 13: JOÃO. [Carta estabelecendo na cidade do Rio de Janeiro uma Academia Real Militar, dando-lhe os respectivos estatutos e criando uma Junta Militar para dirigí-la]. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1810. Capa. Manuscritos, Biblioteca Nacional.

Outro aspecto da originalidade da Academia Real Militar foi a sua localização. As “aulas” anteriores ocorreram no interior de prédios militares, quartéis ou fortificações. Mas, para o funcionamento da Academia Real Militar destinou-se, por Carta Régia de 22 de janeiro de 1811, um local independente da tradição e da hierarquia militar, no Largo de São Francisco de Paula, na época um espaço novo e em expansão na cidade do Rio de Janeiro. Ali, nas obras paralisadas para a Sé Nova, adaptaram-se algumas salas laterais então existentes, voltadas para a atual Rua do Teatro. Ao funcionar fora dos fortes e fortificações, certamente isso facilitou para que houvesse liberdade para se propor um programa de ensino mais científico e não exclusivamente militar.

 

 

Para saber mais:

CAROLINO, Luís Miguel. Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, a Academia Real Militar do Rio de Janeiro e a definição de um gênero científico no Brasil em inícios do século XIX. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 32, nº 64, p. 251-278 - 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/c3nrRQpngMncVTBRqV8W57B/abstract/?lang=pt

 MEIRELLES, Juliana Gesuelli. O legado científico na sustentação do Império português: a Real Academia Militar do Rio de Janeiro. Revista Maracanan, [S.l.], n. 15, p. 181 - 199, jul. 2016. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/24689

 

Referências bibliográficas:

MOTTA, Jehovah.Formação do Oficial do Exército: currículos e regimes na Academia Militar, 1810-1944. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2001.

OLIVEIRA, José Carlos de. D. João VI: Adorador do Deus das Ciências? Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2005.

SANTOS, Nadja Paraense dos e FILGUEIRAS, Carlos A. L. O primeiro curso regular de química no Brasil - Química Nova, São Paulo, v. 34, nº 2, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/qn/a/s4gQnshR9fMjDvtwhZ4xSdR/?lang=pt

TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da Engenharia no Brasil: Séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Clavero, 1994.

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