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História da Ciência no Brasil

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A exposição antropológica de 1882 e a história da Antropologia no Brasil

por Rita de Cássia Melo Santos/UFPB

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FIGURA 33: FERREZ, Marc. [Exposição Antropológica Brasileira: artefatos e aspectos da vida indígena]. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1882. Biblioteca Nacional.

A Antropologia no Brasil pode ser dividida, segundo Castro Faria (2006), em duas grandes ciências: uma relacionada ao universo da história natural; outra, de base social ou culturalista. Embora haja um período de sobreposição entre as duas, em meados do século XX; poderíamos também afirmar que a primeira é herdeira do século XIX, enquanto a segunda incorpora as mudanças advindas com o século XX. A ruptura entre as duas é aprofundada, no caso brasileiro, com a instalação dos programas de pós-graduação no Brasil, a partir de 1968, momento que marca uma associação com o segundo modo de produção do conhecimento antropológico, muito embora, como veremos, o afastamento da antropologia da história natural tenha se iniciado desde 1882, justo com a Exposição Antropológica.



FIGURA 34: FERREZ, Marc. [Exposição Antropológica Brasileira: artefatos e aspectos da vida indígena]. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1882. Biblioteca Nacional.

Aqui nesse texto buscaremos, ainda que de forma sucinta, explorar esse primeiro momento de construção da autonomia da Antropologia no Brasil, no qual a disciplina iniciou a sua independência em relação ao universo da história natural. Para isso, optamos como elemento privilegiado de análise o acervo da Exposição Antropológica de 1882, fotografado por Marc Ferrez, que se encontra sob a guarda da Biblioteca Nacional. Através dele, pretendemos refletir sobre os modos de produção do conhecimento antropológico e as formas de representação indígena - esse que constituiu o “outro” privilegiado da antropologia.

A Exposição Antropológica de 1882 constituiu um evento singular, cuja importância estava tanto em sua concepção quanto em seus resultados. Entre estes, por exemplo, destacam-se a consolidação da antropologia como domínio autônomo com métodos específicos e o reconhecimento internacional do Museu Nacional como instituição de antropologia. Além disso, a Exposição, possibilitou que suas coleções da instituição dobrassem de tamanho e o conhecimento produzido pudesse ser transmitido a um público mais amplo. Ao mesmo tempo, governos provinciais, colecionadores particulares e o próprio Museu Nacional consolidaram relações e acordos para o empréstimo de objetos para fins de exibição.



FIGURA 35: FERREZ, Marc. [Exposição Antropológica Brasileira: artefatos e aspectos da vida indígena]. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1882. Biblioteca Nacional.

A Exposição de 1882 conferiu especial importância ao caráter etnográfico e à composição de suas coleções. Esta ênfase foi um aspecto consideravelmente novo, no momento em que outros museus do mundo seguiam um modelo inspirado na história natural stricto sensu. Foi nesse momento que o Museu Nacional replicou cenas da vida nativa e reproduziu em papel machê corpos de indígenas que estiveram presentes na exposição, conforme podemos ver nas fotografias.



FIGURA 36: Reprodução em papel machê de corpos de indígenas no Museu Nacional. FERREZ, Marc. [Exposição Antropológica Brasileira: artefatos e aspectos da vida indígena]. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1882. Biblioteca Nacional.

A dimensão etnográfica, contudo, não pode ser compreendida como um espelho da realidade. Havia composições arbitrárias que conjugavam diversas populações, a exemplo da imagem abaixo. Registrada por Marc Ferrez em um estúdio fotográfico, a cena é formada por uma escultura de Leo Dépres a partir do molde retirado do corpo de um indígena Xerente (Goiás) que esteve presente no evento (Pacheco de Oliveira & Santos, 2019). Contudo, os adornos e a vestimenta advém de contextos longínquos. Eles foram coletados por João Barbosa Rodrigues entre os indígenas do Rio Jauapery, na província do Amazonas. A ideia de uma etnografia que permitisse a compreensão do mundo social, das categorias mentais e dos modos de organização só seria preconizada muitos anos depois com a escola de Antropologia inglesa, primeiramente por Bronisław Malinowski e, depois, com renovado rigor pelo que ficou conhecido como a escola de Manchester (Zaluar, 1975).



FIGURA 37: Escultura de um indígena Xerente feita por Leo Déores. FERREZ, Marc. [Exposição Antropológica Brasileira: artefatos e aspectos da vida indígena]. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1882. Biblioteca Nacional

Na perspectiva da opinião pública da época, a Exposição gerou ganhos políticos e sociais. A Gazeta de Notícias, um dos jornais mais ativos do Rio de Janeiro, em 28 de agosto de 1882, escreveu sobre o fim dos preconceitos contra as populações indígenas: julgamentos contra eles como ‘ociosos’ e ‘preguiçosos’ não seriam admitidos após a exposição. A partir desse ponto, seria necessário demonstrar ‘simpatia’, ‘compaixão’ e ‘interesse’ pelas populações indígenas no Brasil.

Desta forma, a exposição antropológica de 1882 constituiu um momento duplamente significativo para a História da Antropologia no Brasil. Pelo lado científico, correspondeu aos primeiros passos da Antropologia brasileira como campo autônomo da História Natural, apresentando métodos específicos e despertando o reconhecimento internacional por seu caráter inovador. E, pelo lado institucional, foi através dela que as coleções etnográficas do Museu Nacional se expandiram, e um conjunto muito amplo de atores sociais que envolviam presidentes de província, militares, colecionadores particulares e mesmo pessoas indígenas foram mobilizados. Hoje, após o fatídico incêndio que atingiu o Museu Nacional em 2018 e que destruiu grande parte do seu acervo etnográfico, recuperar a história da disciplina antropológica por meio dos acervos das instituições contemporâneas, a exemplo do precioso acervo da Biblioteca Nacional, ganha renovada importância.



FIGURAS 38, 39, 40: FERREZ, Marc. [Exposição Antropológica Brasileira: artefatos e aspectos da vida indígena]. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1882. Biblioteca Nacional. | FERREZ, Marc. [Exposição Antropológica Brasileira [Iconográfico] : artefatos e aspectos da vida indígena], 1882. Biblioteca Nacional. | FERREZ, Marc. [Exposição Antropológica Brasileira [Iconográfico] : artefatos e aspectos da vida indígena], 1882. Biblioteca Nacional.

 

Referências bibliográficas:

CASTRO FARIA, Luiz de. Antropologia: duas ciências. Notas para uma história da antropologia no Brasil. Brasília: CNPq; Rio de Janeiro: MAST, 2006. Disponível em: http://www.mast.br/images/pdf/publicacoes_do_mast/livro-castro-faria-antropologia-duas-ciencias.pdf

________. Antropologia: espetáculo e excelência. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; Tempo Brasileiro, 1993.

PACHECO DE OLIVEIRA, João; SANTOS, Rita de Cássia M. De Acervos Coloniais aos Museus Indígenas: Formas de protagonismo indígena e de construção da ilusão museal. 1ed. João Pessoa: EdUFPB, 2019. Disponível em: http://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/book/597

ZALUAR, Alba (org.) Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro : F. Alves, 1975.

 

Fontes:

Hemeroteca digital, Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

Coleção Marc Ferrez, Biblioteca Nacional. Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br

 

Para saber mais:

AGOSTINHO, Michele de Barcelos. A Exibição Humana na Exposição Antropológica Brasileira de 1882: ciência, entretenimento e a invenção do selvagem. XXIV Simpósio Nacional de História, 2017. Disponível em: https://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1491185011_ARQUIVO_AExibicaoHumananaExposicaoAntropologicaBrasileira.pdf

PACHECO DE OLIVEIRA, J.; SANTOS, Rita de Cássia Melo. Introdução. Formas de protagonismo indígena e de construção da ilusão museal. De Acervos Coloniais aos Museus Indígenas: Formas de protagonismo indígena e de construção da ilusão museal.. 1ed.João Pessoa: EdUFPB, 2019, v. , p. 7-28. Disponível em: http://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/book/597

SANJAD, Nelson. Exposições internacionais: uma abordagem historiográfica a partir da América Latina. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.24, n.3, jul.-set. 2017, p.785-826. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/Gfjz6kn7bGspj83MFdbWpRt/?lang=pt

VIEIRA, Marina Cavalcante. A Exposição Antropológica Brasileira de 1882 e a exibição de índios botocudos: performances de primeiro contato em um caso de zoológico humano brasileiro. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 25, n. 53, p. 317-357, jan./abr. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/Kyt7B78FryqpJ4pnDyJ8pqt/?lang=pt&format=pdf

 

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