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História da Ciência no Brasil

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Observatórios, hora e fusos horários: tempo e ciência nos periódicos da Primeira República do Brasil

por Sabina Luz/UNIRIO

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Durante o século XIX, o desenvolvimento dos transportes, da comunicação e do comércio fez com que os continentes e países passassem a ficar cada vez mais conectados através dos telégrafos, do navio a vapor e das ferrovias (Figura 41 a 43). Uma das consequências desse desenvolvimento foi a criação de padrões internacionais de pesos e medidas. A Convenção do Metro foi celebrada em Paris em 1875 e, nove anos depois, a Conferência Internacional de Washington, reunida em 1884, definia o meridiano do Observatório de Greenwich, na Inglaterra, como ponto inicial do sistema de longitude e de hora e aprovava o sistema horário criado por Stanford Fleming, dividindo o globo em 24 faixas horárias com 15º de longitude cada. Dessa maneira, o meridiano inicial desse sistema horário mundial ficou conhecido como GMT (Greenwich Mean Time – tempo médio de Greenwich).



FIGURA 41: Fonte: FERREZ, Marc, Estrada de Ferro de Paranaguá a Corityba : corte, K 63,900. [S.l.: s.n.], [1880-1884]. Biblioteca Nacional.



FIGURA 42: Fonte: FERREZ, Marc, Estrada de Ferro de Paranaguá a Corityba: Estação de Morretes K. 40.900, Morretes, PR: [s.n.], [1880-1884]. Biblioteca Nacional.



FIGURA 43: Fonte: FERREZ, Marc. Estrada de Ferro de Paranaguá a Corityba : túnel, K 63.282, sahida. [S.l.: s.n.], [1880-1884]. Biblioteca Nacional.

O Brasil participou da Conferência Internacional de Washington. No entanto, a criação de uma legislação específica para a hora no país surgiu somente no início do século XX, já no período republicano. Através de diversos periódicos, é possível acompanhar as etapas de discussão, elaboração e aprovação da lei nº 2.784 de 18 de junho de 1913, que determinava a hora legal brasileira.

O projeto que deu origem a essa lei foi debatido em 1911, no Clube de Engenharia, no Rio de Janeiro. Essa associação privada, criada em 1880, reunia engenheiros, cientistas e empresários em suas sessões e tinham suas atas publicadas em sua revista: a Revista do Club de Engenharia, cujos números publicados entre os anos de 1887 e 1934 podem ser acessados no acervo digital da Hemeroteca Digital Brasileira. As sessões que tratam especificamente sobre o debate do projeto da hora legal brasileira (abril e junho de 1911) podem ser encontradas no número 28, publicado em 1926 (Figura 44).



FIGURA 44: Fonte: Revista do Clube de Engenharia, Rio de Janeiro, nº 28, 1926 - Biblioteca Nacional



FIGURA 45: Henrique Morize (1860-1930) - MAST

Henrique Morize, diretor do Observatório Nacional, foi o principal responsável em estabelecer a divisão horária para o território brasileiro (Figura 5). Assim, surgiram os quatro fusos horários (menos duas, três, quatro e cinco horas GMT) que existem ainda hoje, com poucas alterações em relação ao projeto original. A primeira página do jornal A Noite de 24 de agosto de 1911 trazia os detalhes da maneira como os fusos horários seriam criados no território nacional (Figura 46). Publicando trechos da exposição feita por Henrique Morize no Clube de Engenharia, o jornal também apresentava um mapa elaborado pelo diretor do Observatório Nacional onde ficavam evidenciados os meridianos que delimitavam os fusos horários calculados a partir do meridiano de Greenwich e os limites adaptados para os fusos no território brasileiro propostos por Morize (Figura 46 - detalhe).



FIGURA 46: Fonte: A Noite, Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1911. Biblioteca Nacional

É relevante perceber a relação entre o Observatório Nacional e o serviço da hora. O cálculo da hora local fazia parte da prática astronômica, por esta razão os observatórios tornaram-se, ao longo do século XIX, instituições especializadas no cálculo horário, cujos instrumentos e técnicas se aperfeiçoaram e cujas redes de transmissão tornaram-se intercontinentais devido à telegrafia e radiotelegrafia, esta última a partir do início do século XX. No Brasil, o Observatório Nacional (denominado, antes da proclamação da República, Imperial Observatório do Rio de Janeiro) já calculava e disseminava a hora para a cidade desde o século XIX. No entanto, antes da criação da lei nº 2.784, a hora ainda era local, ou seja, não havia um sistema unificado de hora calculado a partir de um mesmo meridiano para todo o território.

Assim, o Observatório do Castelo, como era conhecido o Observatório Nacional situado no Morro do Castelo, disseminava a hora calculada a partir do meridiano do Rio de Janeiro para a cidade e para o porto, onde os navios utilizavam o dado horário para cálculo da longitude. Essa hora também era enviada, por telegrafia, à Estrada de Ferro Central do Brasil e à Repartição Geral dos Telégrafos. O método de disseminação da hora do Observatório para a cidade ficou bastante conhecido. Tratava-se do método do balão ou time ball. Como era comum também em outros observatórios, esse método consistia em fornecer a hora local através da queda de um balão içado no alto da torre do Observatório. A queda ocorria ao meio-dia local e, desta maneira, os navios do porto, assim como as pessoas na cidade, podiam ajustar seus relógios. Vale lembrar que, a partir de 1914, depois da promulgação da lei nº 2.784, a hora transmitida pelo balão passou a ser a hora legal do país. Esse método foi utilizado até final do ano de 1919, quando o sistema foi desativado e substituído por sinais luminosos.

Os periódicos da capital do início do século XX nos mostram o quanto a prática de ajuste horário pelo balão do castelo havia sido incorporada aos hábitos cotidianos da população carioca. Em 18 de outubro de 1910, o jornal O Século publicou uma pequena nota intitulada “O balão do Castelo” onde encontramos a afirmação: “Todo mundo sabe que há muitas pessoas que costumam acertar os seus relógios por esse balão” (Figura 47). A nota afirmava que o balão, até então considerado infalível, estava apresentando erros já que caía, voltava a subir e caía novamente; confundindo, portanto, aqueles que buscavam ajustar seus relógios. Essa reclamação também pode ser encontrada anos mais tarde. Em 1918, o jornal A Noite, apresentava uma reclamação de um leitor quanto à imprecisão da queda do balão bem como a sua cor acinzentada, o que dificultava a percepção de sua queda (Figura 48).



FIGURA 47: Fonte: O Século, Rio de Janeiro, 18 de outubro de 1910. Biblioteca Nacional



FIGURA 48: Fonte: A Noite, Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 1918. Biblioteca Nacional. detalhe.

O diretor do Observatório respondeu à reclamação do leitor do jornal A Noite três dias depois (Figura 9). Reconhecendo que o balão apresentava realmente uma cor desbotada ainda que houvesse sido pintado há menos de um ano, Morize prometeu que providenciaria uma nova pintura do balão. Quanto à imprecisão da queda do balão, no entanto, o diretor afirmou que a queixa era “absolutamente injustificada”, já que “a hora é sempre dada com exatidão notável e o balão do Observatório do Rio é reputado pela sua correção entre os navegantes da marinha internacional”. Lembrava com essas palavras, portanto, o uso da hora pelos navios ancorados no porto da cidade.

 

FIGURA 49: Fonte: A Noite, Rio de Janeiro, 08 de dezembro de 1918. Biblioteca Nacional.

 Desde 1913, o Observatório Nacional mantém a função de cálculo e disseminação da hora legal brasileira. A instituição permaneceu no Rio de Janeiro, apesar da alteração da capital federal para Brasília em 1960. Dessa forma, a hora oficial do país (horário de Brasília) ainda é calculada no Rio de Janeiro.



FIGURA 50: Edifício sede do Observatório Nacional. In: MARTINS, Mônica; JUNQUEIRA, Selma. Biblioteca Nacional

 

Para saber mais:

Publicação completa da Revista do Clube de Engenharia (1887-1934). Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/per8036/per8036.htm>

Álbum completo da Estrada de Ferro do Paraná de Marc Ferrez.

FERREZ, Marc. Estrada de Ferro do Paraná, [S.l.: s.n.], [1880-1884]. 1 álbum (33 fotos: colódio?, p&b, 17,9 x 25,2 cm à 36,7 x 26,1 cm) ; 62 x 46,8. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon385665/icon385665.pdf>

 Mapa da rede telegráfica no Brasil em 1917

BRASIL. Diretoria Geral dos Telégrafos. Schema das linhas telegráficas do Brasil, abrangendo as da União, as dos estados, das estradas de ferro e das companhias estrangeiras. Rio de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Cia. Lith. Ypiranga, 1917. 1 mapa, 129 x 137 cm. Escala 1:4.000.000. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart171174/cart171174.jpg>

Página da Divisão do Serviço da Hora do Observatório Nacional com a legislação referente à hora legal brasileira, o mapa dos fusos horários e um breve histórico desse serviço. Disponível em: <http://pcdsh01.on.br/>

 

 Referências Bibliográficas:

GALISON, Peter, Os relógios de Einstein e os mapas de Poincaré: impérios do tempo, Lisboa: Editora Gradiva, Coleção Ciência Aberta, 2005.

MARINHO, Pedro E. M. de M., Ampliando o Estado Imperial: os engenheiros e a organização da cultura no Brasil oitocentista 1874-1888. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História, UFF, Niterói, 2008.

BARROSO JR., Jair; JUNQUEIRA, S. O Serviço da Hora do Observatório Nacional, In: MATSUURA, O. (Org.), História da Astronomia no Brasil, Recife: Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, volume I, pp. 301-331, 2014. Disponível em: < http://site.mast.br/pdf_volume_1/servico_hora_observatorio_nacional.pdf>. Acesso em: 15 de setembro de 2021.

LUZ, Sabina; VERGARA, Moema. Do Congresso de Washington à adoção da Hora Legal Brasileira, Terra Brasilis (Rio de Janeiro), v. 6, p. 1-15, 2015. Disponível em: <https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.1617>. Acesso em: 15 de setembro de 2021.

 

Referências iconográficas:

Observatório Nacional. MARTINS, Mônica; JUNQUEIRA, Selma. Do Observatório Imperial ao Observatório Nacional: Resgatando a Memória da Hora Legal do Brasil. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/dossies/rede-da-memoria-virtual-brasileira/ciencias/observatorio-nacional-rj/

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