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História da Ciência no Brasil

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“Raça amarela”: a ciência nos debates da imigração chinesa no Brasil do século XIX

por Andressa Braz/MAST

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FIGURA 22: "O novo sol que brevemente despontará no horizonte". Capa com charge alertando sobre o perigo da  entrada de imigrantes chineses no Brasil. Revista Illustrada, n° 154, 1879.

No início do século XIX, 51 chineses reuniram-se no Rio de Janeiro para demandar do rei Dom João VI a possibilidade de ter um representante que os auxiliasse na garantia de seus direitos no Brasil. A petição e abaixo-assinado encaminhados pediam a nomeação do chinês Domingos Manuel Antônio como intérprete, diretor e cônsul dos declarantes. Segundo eles, apesar de sua utilidade à população, agricultura e comércio brasileiros, os chineses “se vêem nas tristes circunstâncias de não ter um intérprete, que possa transmitir perante os Tribunais e Justiças de Vossa Majestade aquilo que é de seu direito e justiça representar”. (LEITE, 1999, p.269).

Não saber português era apontado como impedimento para o acesso a direitos e “se tem da falta originado gravíssimos prejuízos aos suplicantes, não só físicos como morais” (LEITE, 1999, p. 269). Apesar da ausência de resposta às suas reivindicações, denunciavam o descaso do Estado com sua condição de imigrantes, situação comum a boa parte dos cerca de 3.000 chineses que estima-se terem chegado ao Brasil durante o século XIX. Parte do problema observado naquela petição pode ser vista como uma constante do trato do Estado Imperial brasileiro dispensado aos chineses, que se justificava pela imagem de inferioridade construída sobre eles naquele período.

E, nessa questão, a ciência tem importante participação.

Os chineses no Brasil

As primeiras iniciativas para trazer imigrantes chineses ao Brasil são do começo do século XIX, sob o reinado de Dom João VI. Na tentativa de penetrar no mercado internacional de chá, Dom João VI traz ao Rio de Janeiro em 1814 cerca de 200 chineses para plantar chá no imperial Jardim Botânico. Os trabalhadores permaneciam confinados no jardim, sob precárias condições de trabalho, e as diversas tentativas de fugas contribuíram para o fracasso do empreendimento (SANTOS, 2020).

Na Figura 2 podemos observar o registro desses trabalhadores feito pelo artista alemão Johann Rugendas (1802-1858) em sua obra Viagem Pitoresca através do Brasil. Feita em 1835, a obra retrata aspectos diversos da cultura e sociabilidade das populações do Brasil durante a passagem do artista em uma de suas viagens pelo país. Na gravura podemos ver alguns trabalhadores chineses e escravizados trabalhando lado a lado no Jardim Botânico.



FIGURA 23: SABATIER. Plantation chinoise de thé: dans le Jardin Botanique de Rio-Janeiro. (Chineses na plantação de chá no Jardim Botânico do Rio de Janeiro).
Paris [França]: Lith. de Thierry Frères, [1835].

Ao longo do século, entradas pontuais de imigrantes são realizadas por iniciativas privadas, em especial de fazendeiros. É na década de 1870, porém, que essa discussão ganha fôlego renovado. Diante de um cenário que apontava cada vez mais para o fim da escravidão, o medo de uma possível falta de mão-de-obra para as lavouras é crescente entre os fazendeiros. Olhando para a experiência de países como Cuba, Peru e Estados Unidos, os chineses passam a ser considerados candidatos à imigração em massa para o Brasil sob o regime de trabalho por contrato.

Logo, políticos, intelectuais, jornalistas e fazendeiros circulam suas opiniões contrárias ou a favor da imigração na imprensa, no Parlamento, nas ruas. No Congresso Agrícola de 1878, o assunto foi debatido com destaque (CZEPULA, 2017). Apesar das divergências de opinião, algo une as posições evocadas por ambos os lados: a identificação do chinês como uma raça. Tratado como “raça amarela” ou “raça coolie”, o chinês é colocado sob a lógica das teorias raciais para discutir a viabilidade de sua entrada no país e qual seu lugar na sociedade brasileira.

Racializando o mundo: ciência e sociedade

Carregando grande legitimidade e autoridade, o discurso científico sustentou diversas práticas e discussões políticas e sociais durante o século XIX. Das principais ideias que circulavam à época, as teorias raciais encontravam muitos adeptos entre os intelectuais e políticos brasileiros, que não deixaram de usá-las em seus argumentos durante a discussão da imigração chinesa, especialmente aqueles contrários à entrada dos chineses.

O racismo era prática social comum e legítima à época, em especial entre as elites políticas e econômicas. Inseridos nas dinâmicas sociais, a ciência e os cientistas não escapavam a essa prática. Através da ideia de raça, a ciência oferecia ainda uma argumentação científica para sustentar políticas e discursos de inferiorização e discriminação racial. Dessa forma, a ideia de que a humanidade é composta por raças superiores e inferiores em aspectos morais, culturais, físicos e intelectuais atravessava as mais diversas áreas de conhecimento, sendo responsável até mesmo pelo surgimento de algumas ciências como a frenologia, que buscava determinar o nível intelectual do indivíduo a partir do tamanho do crânio.

O contato estabelecido com populações de Ásia, África e América desde fins do século XV renovou as teorias sobre a diversidade humana que já existiam no meio europeu. Se, até o século XVII, essas teorias partiam sobretudo de uma visão cristã, a consolidação da ciência enquanto explicação legítima sobre a realidade agrega novas concepções ao assunto (SILVEIRA, 1999).

As teorias raciais são expressão dessa nova visão científica sobre a humanidade. Entendida como um conceito biológico e imutável, a raça era determinada com base em aspectos físicos como o tamanho do cérebro, nariz, maxilar e cor da pele. Toda a cultura e moral dos indivíduos era considerada consequência dos aspectos biológicos, em uma visão determinista e biológica do mundo social. Dessa forma, o mundo era entendido, classificado e organizado sob a ótica racialista da ciência.

A obra Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1883-1885), do francês Arthur de Gobineau, é um importante marco na busca por uma sistematização das diferenças raciais e seu papel na história da humanidade (SILVEIRA, 1999). Na classificação de Gobineau, os brancos europeus aparecem como representantes da superioridade racial, responsáveis pela arte, ciência e civilização conhecidas pela humanidade. No extremo oposto estão os negros africanos e afrodescendentes, bem como os povos do extremo oriente, chamados de amarelos (Figura 24). A eles é atribuída a barbárie eterna e a impossibilidade de crescerem moralmente e enquanto sociedade.



FIGURA 24: "Preto e amarelo. É possível que haja quem entenda que a nossa lavoura só pode ser sustentada por essas duas raças tão feias!....Mau gosto!"  Revista Illustrada, Capa n° 258, 1881.

Aos amarelos cabe ainda o lugar de intermediário entre o branco e o negro, superiores ao último, mas incapazes de atingir o mesmo grau de civilidade dos primeiros.

Logo, os grupos humanos sofrem um processo de racialização que classifica os indivíduos em suas devidas “caixinhas” raciais de maneira hierarquizada, construindo imagens e discursos homogeneizadores e deterministas. Esse processo não é natural, e sim social e político. Produto do colonialismo, a raça era, portanto, a lente pela qual o mundo era visto, demarcando relações de trabalho, cidadania, imigração, lugar social e poder.

Especialmente em países de passado colonial e escravista como o Brasil, a construção da nação estava intimamente ligada à preocupação com o caráter racial da população. Buscava-se um Brasil de maioria branca, raça com a qual os ideais de civilização, modernidade e progresso estavam identificados. A realidade, porém, era uma população de maioria negra, indígena e mestiça. Logo, a entrada de imigrantes no país não poderia ser discutida sem considerar o “tipo” racial desse imigrante, pois a sua presença levaria ao sucesso ou fracasso da nação.

Nesse contexto, racialização e imigração são processos conjuntos. Debater a entrada dos chineses no Brasil passava também por construí-los enquanto sujeitos racializados.

 Construindo o “chim”: o chinês na imprensa ilustrada brasileira

A imigração chinesa no Brasil foi acompanhada da racialização do chinês enquanto “raça amarela” ou “raça coolie”. Um imaginário racial é criado sobre o chinês, partilhando de estereótipos raciais construídos ao longo do século XIX que circulavam globalmente, com variações para cada contexto específico (LEE, 2019). Nesse processo, emerge a figura do "chim", designação pejorativa que demarca racial e socialmente o lugar do chinês na sociedade brasileira.

Uma série de imagens veiculada pela imprensa ilustrada da época contribuiu para a consolidação e propagação de imagens e discursos que atribuíam aos chineses esse lugar de inferioridade. Um dos principais exemplos é a Revista Illustrada (1876-1898). Com editores contrários à entrada dos chineses no país, seus desenhos irônicos apresentam o chinês de forma pejorativa e pouco amistosa, como um sujeito sem higiene, física e moralmente fraco, avesso ao progresso e à civilização, feio e repugnante (Figuras 25 e 26).



FIGURA 25: Charge ironizando os hábitos e cultura dos chineses. Revista Illustrada, n° 154, p. 4, 1879.



Detalhe Figura 25: “Todos os povos tem progredido menos os chineses que consideram o progresso como um precipício a beira do qual estão parados há mais de mil anos”.



Detalhe Figura 25: “E que habilidade para a cozinha! Que limpeza! Pode-se comer sem receio de encontrar cabelos”.



FIGURA 26: "A colonização chinesa". Revista Illustrada, n° 358, p. 4, 1883.



Detalhe Figura 26: "Sim, somos apologistas dos chins porque não conhecemos raça mais bela, tipo mais gracioso, mais simpático! E que belas cores!"

A revista situava esses estereótipos no contexto brasileiro especialmente em suas preocupações com o risco da mistura entre o chinês e o negro, ambos tidos como racialmente inferiores. Na Figura 6, podemos observar como esse medo era retratado. Nela, chineses e negros carregados de traços caricatos e estereotipados estão em festa, interagindo e misturando-se, originando um "samba meio baiano, meio chinês".

A menção pejorativa ao samba, fruto dos processos socioculturais da população negra, reforça a crítica à miscigenação entre os dois grupos. Assim, ironizava a possível mistura entre as duas culturas e seus resultados desastrosos, que impossibilitariam o avanço do país.



FIGURA 27: "Brazil Chim". Revista Illustrada, n° 523, p. 4-5, 1888.



Detalhe Figura 27: “E um samba, meio baiano, meio chinês, que coisa divertida e esplêndida! Está pois decidido, o chim vem […]”.

Através de imagens como essas, mas também de textos, músicas e peças teatrais como O Mandarim, construía-se o “chim”: racialmente marcado, inferior, desumanizado e caricato.

Como “chim”, o chinês é inserido às margens da sociedade brasileira, como sujeitos dispensáveis e substituíveis. Como raça inferior, empregadores e Estado podem se isentar de qualquer responsabilidade sobre ele. Mesmo os direitos estabelecidos no contrato de trabalho são violados frequentemente. O lugar de inferioridade no imaginário brasileiro se reflete nas suas condições materiais. Retenção por dívidas, castigos físicos e longas jornadas de trabalho levaram chineses a abandonar fazendas e migrar para a cidade, onde se juntavam aos escravizados e trabalhadores livres que atuavam no comércio de rua.

Dessa forma, as teorias raciais sustentavam uma rígida hierarquia social baseada na raça, na qual o chinês ocupava um não-lugar: não possuía cidadania reconhecida pelo Estado e, portanto, não gozava de direitos; não era um trabalhador livre, e tampouco escravizado. É esta condição contraditória e precária construída com a ajuda da ciência que marca a experiência dos primeiros imigrantes chineses no Brasil.

Outros chineses chegaram ao país também no século XX e XXI. Apesar das condições e contextos bastante diferentes do século XIX, a pandemia da Covid-19 demonstrou como muitas imagens e discursos criados naquele período ainda permanecem enraizados no imaginário brasileiro.

 

Para saber mais:

CARNEIRO, Sueli. A ciência e o racismo no Brasil. Vídeo: Instituto Serrapilheira, 2020. Disponível em: https://serrapilheira.org/sueli-carneiro-a-ciencia-e-o-racismo-no-brasil/

HWAN, Leo. Volta pra China! Lá não tem Carnaval! Vídeo: YouTube, 2020. Disponível em: https://youtu.be/DIZiaAhLcZc

LEE, Ana Paulina. A estética da exclusão: imigrantes chineses em culturas visuais brasileiras na virada do século XIX. Afro-Ásia, 60 (2019), 149-186. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/28716

SILVEIRA, Renato da. Os selvagens e a massa: papel do racismo científico na montagem da hegemonia ocidental. Afro-Ásia, 23 (1999). Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20980

 

Fontes:

Revista Illustrada, ano 4, n° 154, 1879. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/332747/1086

Revista Illustrada, ano 6, n° 258, 1881. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/332747/1830

Revista Illustrada, ano 8, n° 358, 1883. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/332747/2548 

Revista Illustrada, ano 13, n° 523, 1888. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/332747/3761

SABATIER. Plantation chinoise de thé: dans le Jardin Botanique de Rio-Janeiro. (Chineses na plantação de chá no Jardim Botânico do Rio de Janeiro). Paris [França]: Lith. de Thierry Frères, [1835]. 1 grav, pb. Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=6194

 

Referências:

CZEPULA, Kamila Rosa. Os indesejáveis “chins”: um debate sobre imigração chinesa no Brasil Império (1878-1879). Dissertação (História), UNESP, Assis, 2017.

DEZEM, Rogério Akiti. A Questão Chinesa (1879) no Brasil. Revista de Estudos Brasileiros. Vol. 14. March 2018. Portuguese Dept., Osaka University.

GOBINEAU, Arthur. Essai sur l'inégalité des races humaines. Paris: Firmin-Didot frères, 1853-1855. 4v. Localização: Obras Gerais - V-184,5,17-20.

LEE, Ana Paulina. A estética da exclusão: imigrantes chineses em culturas visuais brasileiras na virada do século XIX. Afro-Ásia,  60  (2019), 149-186. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/28716

LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil: influências, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras. Campinas, Ed. da Unicamp, 1999.

LIMA, Silvio Cezar de Souza. Determinismo biológico e imigração chinesa em Nicolau Moreira (1870-1890). 2005. 123 f. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2005.

SANTOS, Marco Aurélio dos. Chineses no Vale do Paraíba cafeeiro: projetos, perspectivas, transições e fracassos - século XIX. Almanack Guarulhos, n. 25, p. 1-41, 2020.

SILVEIRA, Renato da. Os selvagens e a massa: papel do racismo científico na montagem da hegemonia ocidental. Afro-Ásia, , 23  (1999). Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20980

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