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História da Ciência no Brasil

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Um brasileiro na Academia Internacional de História das Ciências

por Maria Gabriela Bernardino/MAST

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Pesquisar sobre a trajetória de cientistas é uma forma de investigar a história das ciências além dos “grandes feitos” por “grandes nomes”. Temos a oportunidade de ir além. O primeiro benefício é, sem dúvidas, a humanização da ciência: tirá-la do “sagrado” e perceber que a produção científica é realizada por pessoas imperfeitas. A partir disso, é possível pensar que a profissão de cientista não é restrita a heróis, seres iluminados ou qualquer outro título que coloque tais profissionais como divindades na Terra. Explorar a trajetória de um homem nos leva a caminhos inesperados e acabamos por descobrir fatos surpreendentes que nos revelam múltiplas e incoerentes facetas de um mesmo ser, onde nem tudo é louvável. Por último, ao buscar os feitos científicos de um indivíduo, localizamos os grupos dos quais o biografado fazia parte, seus respectivos interesses, o “estado da arte” da ciência naquele momento e, sobretudo, os contextos políticos e sociais que inevitavelmente exercem influência nas escolhas individuais e coletivas.

Como exemplo das investigações biográficas, apresentamos o cartógrafo Francisco Jaguaribe Gomes de Mattos (1881-1974) responsável por chefiar a seção de Cartografia da popular Comissão Rondon que, embora tenha desempenhado tal trabalho ao longo de 42 anos, é uma figura pouco conhecida. Como nós, Jaguaribe também possuía suas particularidades, uma delas é o fato de que, mesmo sendo cartógrafo, não gostava de ir a campo, não abria mão de sua cama confortável e, talvez, não devia ser chegado a pernilongos. Apesar disso, Jaguaribe produziu notáveis mapas das regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil a partir de esboços e levantamentos realizados por sertanistas em seu gabinete no Rio de Janeiro. As realizações de Jaguaribe, entretanto, não se limitaram à confecção cartográfica.

O Brasil possuiu uma Academia Brasileira de História das Ciências (ABHC) vinculada ao então principal órgão internacional da área, a Academia Internacional de História das Ciências. Uma das empreitadas de Francisco Jaguaribe foi ser presidente/fundador da instituição de 1937 até 1963. É significativo lembrar que os primeiros registros encontrados sobre a existência da ABHC estão nos periódicos da Biblioteca Nacional.

A ideia da fundação de uma Academia Brasileira de História das Ciências teve origem em Portugal, como consequência da participação de Jaguaribe no III Congresso de História das Ciências (1934) e sua aproximação com os intelectuais que compunham o núcleo da Academie Internationale d’Histoire des Sciences naquele período.

No dia 30 de junho de 1937, o Jornal do Brasil publicou uma notícia sobre a fundação da Academia de História das Ciências:
No sábado último realizou-se a quarta reunião preparatória para fundação desta sociedade sob a presidência do Coronel Francisco Jaguaribe de Mattos, no salão da reitoria do Brasil. Aberta a sessão, lida e aprovada a ata do estatuto, cuja comissão fora constituída pelos seguintes acadêmicos: Francisco Jaguaribe de Mattos, Raul Leitão da Cunha, Adalberto Menezes e Saladino Gusmão. Após ligeira discussão foi o estatuto aprovado. Em seguida procedeu-se a eleição para a primeira diretoria da academia. Foram escolhidos para escrutinadores os acadêmicos: A. L Pereira Ferraz e Saladino Gusmão. Apurados os votos, foi verificado o resultado a seguir: Presidente: Jaguaribe de Mattos; vice-presidente: Inácio Azevedo do Amaral; secretário geral: Luis de Faria; 1º secretário A. L. Pereira Ferraz; 2º secretário: Martins Roxo; tesoureiro: Jenuíno de Albuquerque; conselho consultivo: Raul Leitão da Cunha, Joaquim marques da Cunha e Rodolfo Garcia. O Sr. Presidente lê os nomes dos recém-eleitos e a assembleia recebe essa divulgação com prolongada salva de palmas. O Sr. Presidente agradece a honra da qual acaba de ser investido, muito embora estivesse convencido de que outros nomes poderiam substituir o seu com grande vantagem. Educado, porém, na escola da disciplina militar, não costumava recusar os percalços. Por isso, aceitava o mandato e procuraria desempenhá-lo empregando o melhor do seu esforço e da sua fé para o engrandecimento da nova sociedade […] A Academia Brasileira de História das Ciências, fundada de acordo com o estatuto e com a delegação que recebeu da Academie Internationale d’Histoire des Sciences ,é a representante desse grande organismo internacional no Brasil, junto às autoridades e aos cientistas do país. (Jornal do Brasil, 1937)

No que tange à posição de Jaguaribe como presidente, me parece que isso não foi uma questão, tendo em vista que era fundador da Academia no Brasil e, talvez por isso, se sentisse credenciado a desempenhar tal papel, até porque àquela altura era o único brasileiro a ser membro efetivo da Academie Internationale d’Histoire des Sciences. Ainda assim, como apresentado na notícia, ocorreu uma eleição e o cartógrafo foi diplomático ao ser eleito.

A Academia Brasileira de História de Ciências existiu muito mais para constar nos quadros de expansão do campo científico do que para desempenhar atividades em prol da ciência, com algumas exceções, como, por exemplo, a Sessão Plena Especial que ocorreu no Rio de Janeiro, no mês de julho de 1941, diferentes jornais anunciaram a recepção:
Amanhã, às 16 horas, na sala de sessões do antigo Conselho Municipal, será realizada uma sessão plena especial, promovida pela Academia Brasileira de História das Ciências para receber representantes argentinos e portugueses, ligados ao movimento da História das Ciências e presentemente nesta capital […] No início da sessão, serão entregues os diplomas dos sócios brasileiros eleitos para a ―Academie Internationale d‘Histtoire des Sciences. A entrada é facultativa às pessoas interessadas. (Diário de Notícias, 15 de julho de 1941)

Segundo o Jornal do Commercio de 29 de julho de 1941, a cerimônia revestiu-se de muito brilho: o local estava ornamentado com flores e bandeiras de nações amigas (é preciso lembrar que a Segunda Guerra Mundial acontecia), sobretudo sul-americanas. Em destaque se encontravam ao fundo as bandeiras de Brasil, Argentina e Portugal. Durante a abertura, Jaguaribe fez um discurso que trouxe elementos interessantes para a pesquisa. O primeiro é o caráter evocativo de seu discurso acerca da necessidade de colaboração entre Portugal, Argentina e Brasil para estudo e divulgação da História das Ciências. Utilizando um termo contemporâneo, o encontro pode ser caracterizado como uma iniciativa de cooperação científica entre os três países. Sendo assim, as bandeiras decorativas foram harmônicas com a fala do presidente. Ainda sobre a comunicação, Jaguaribe comentou sobre a fundação da Academia Brasileira de História das Ciências, concluindo que a mesma se devia a instâncias e credenciais portuguesas.
O haver-lhe confiado, em nome do Comitê Internacional, a incumbência oficial de fundar no Brasil um organismo federado à grande instituição internacional, então sediada em Paris. [...] Tendes assim o quadro vivo dos que operaram o ressurgimento de nossa Academia, que tanta esperança e tão grande interesse vem despertando. (Archeion XXIII, 1941)

Além de ter cobertura da imprensa local, o evento obteve destaque na revista Archeion, conhecida publicação internacional da História das Ciências à época.

Sua fala confirma a hipótese de que a rede de sociabilidade, com destaque para os intelectuais portugueses engajados na História das Ciências, foi o fator fundamental para a fundação da academia brasileira. Outro ponto que merece distinção foi a proposta do cientista argentino Ramón Beltran para que o I Congresso Pan-Americano de História das Ciências ocorresse no Rio de Janeiro ao defender que o Brasil deveria ocupar um lugar de prestígio:
Peço a Vossa Excelência Senhor Presidente, se digne tornar concreta a ideia de realização de um Congresso de História das Ciências – O I Congresso Americano de História das Ciências – e formulo a moção para que o Rio de Janeiro seja a sede do dito congresso. (Archeion XXIII, 1941)

A sugestão causou enorme comoção no público presente. Segundo a revista Archeion:
Cessados os vibrantes aplausos, o Coronel Jaguaribe de Mattos agradeceu ao Professor Beltran os conceitos elogiosos emitidos sobre o Brasil e sobre a cultura dos cientistas brasileiros, assim como a distinção de que era alvo a Academia, com o objeto de sua proposta. Explicou que os aplausos prolongados teriam dado mostra do agrado com que a Academia acatava as suas palavras. Tratava-se, porém de uma questão complexa com feição administrativa que só poderia ser resolvida com assentimento e auxílio do governo, tanto no terreno das possibilidades, como no da oportunidade. Para

que o ilustre orador tivesse a sensação do interesse que as suas palavras despertaram, ali mesmo ia organizar uma comissão para encaminhar a moção do Sr. Beltran, e convidou para esse fim os Srs. Prof. Raul Leitão da Cunha, Coronel Jesuíno de Albuquerque e Prof. Dr. Luiz Afonso de Faria, aos quais se uniria para juntos levarem a moção aos Srs. Ministros da Educação e das Relações Exteriores e por intermédio dos mesmos, ao Sr. Presidente da República. (Archeion, XXIII, 1941)

Aspectos importantes precisam ser destacados sobre a existência da ABHC: a presença de Jaguaribe, um cartógrafo na história da ciência, desconstrói a ideia de que o campo abarque as ciências mais óbvias como física, matemática, medicina e a química. Além disso, a Academia Brasileira de História das Ciências significou uma espécie de institucionalização e inscrição do Brasil no quadro internacional da História das Ciências. Também é relevante destacar que a ABHC não significou que somente a partir daquele momento passou a se produzir história da ciência no Brasil: a ABHC pode representar uma formalização do campo de estudo. Embora a academia brasileira não tenha tido fôlego de continuar e acabou por esvair-se na década de 1960, Francisco Jaguaribe, além de inaugurar a presença brasileira na Associação Internacional de História das Ciências, permaneceu como membro da instituição até a sua morte, em 1974.



FIGURA 66: O embaixador Paulo Carneiro (à esquerda) junto com Francisco Jaguaribe e o então novo presidente da ABHC Olympio da Fonseca em conferência sobre “A elaboração e a impressão da História Científica e Cultural da Humanidade” na Academia Brasileira de História das Ciências. Na palestra também foi discutido sobre a falta da cadeira de História das Ciências nos cursos superiores. Fonte: Correio da Manhã, 26 de abril de 1963. Biblioteca Nacional

 

Fontes:

Diário de Noticias, 15 de julho de 1941, ano XII, n° 5741. Rio de Janeiro. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/093718_02/6253

Jornal do Brasil, 30 de junho de 1937, ano XLVII, n° 151. Rio de Janeiro. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_05/75976

Jornal do Commercio, 29 de julho de 1941, ano 114, n° 253. Rio de Janeiro. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/364568_13/7901

MATTOS, Francisco Jaguaribe Gomes de. Fraternidade ciêntifica argentino-brasileira. Revista Archeion, vol 23, n° 3-4, 1941, p. 373-379. Disponível em: https://www.brepolsonline.net/doi/10.1484/J.arch.3.752

 

Referências bibliográficas

Bernardino, Maria Gabriela de Almeida. Mapeando saberes: a trajetória de Francisco Jaguaribe Gomes de Mattos (1910-1952). – Rio de Janeiro : s.n., 2020. 197 f. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz, 2020. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/50361/2/va_Maria_Bernardino_COC_2020.pdf


 

Para saber mais:

BISPO, A.A. Da História das Ciências como objeto de estudos culturais e dos Science Studies. Revendo o III Congresso da Academia Internacional de História das Ciências em Portugal (1934) e a participação do Brasil: Francisco Jaguaribe Gomes de Mattos". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 130/10 (2011:2). Disponível em: http://www.revista.brasil-europa.eu/130/Congresso_Historia_das_Ciencias.html

NUNES, Maria de Fátima. Construção de identidades europeias: os Congressos científicos, laboratórios de construção de identidades, Breves considerações. Debater a Europa. Periódico do CIEDA e do CEIS20, em parceria com GPE e a RCE. N.5 Julho/Dezembro 2011. Disponível em: https://dspace.uevora.pt/rdpc/handle/10174/7380?mode=full

NUNES. Maria de Fátima. O III Congresso Internacional de História da Ciência Portugal, 1934: Contextos Científicos, contextos culturais e políticos. Caminhos de Cultura em Portugal. Homenagem ao Professor Doutor Norberto Cunha (org.: F.A. Machado, M.R. G. Gama, J.M. Fernandes), Braga, Ed. Húmus:321-336. Disponível em: https://dspace.uevora.pt/rdpc/handle/10174/16905?locale=pt

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