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Histórias da Nova Holanda

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A jornada de Caspar Schmalkalden ao Brasil (1642-1645)

por Bruno Miranda
Em uma tarde do dia 18 de setembro de 1642, compareceram perante Hendrik Schaef, notário na cidade de Amsterdã que atendia na Casa da Companhia das Índias Ocidentais, Philips Hendricx, Anthonij Schoelenborch e Caspar Schmalkalden. Planejando embarcar para o Brasil a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, os três foram registrar dívidas que tinham contraído com o capitão do navio Sampson. Não sabemos qual era a relação deles para com o capitão, mas Caspar Schmalkalden, personagem principal dessa história, e seus companheiros precisavam dar garantias de que quitariam suas dívidas antes de deixarem a República das Províncias Unidas dos Países Baixos. Por isso, lavrariam no notário as chamadas cartas de transporte, espécie de nota de crédito que penhorava futuros salários a vencer na Companhia.

Como qualquer documento testemunhal registrado em notário, havia a necessidade de anotar os nomes das testemunhas. Schmalkalden servira a esse propósito nas cartas de transporte que atestaram as dívidas de Hendricx e de Schoelenborch, enquanto eles declararam a Schaef que Schmalkalden tinha um débito de 22 florins carolíngios, o equivalente a alguns meses de pagamento do posto de soldado, posição para a qual o jovem oriundo de Friedrichroda, na Turíngia, havia sido contratado. Caspar Schmalkalden deixaria as Províncias Unidas no mês de outubro e seguiria para uma jornada que marcaria não apenas sua vida, mas a própria história da representação textual e – sobretudo – iconográfica do Brasil no século XVII.

Antes de adentrar nos detalhes dessa viagem e suas repercussões para a história, é importante relacionar essa jornada de Schmalkalden a um contexto mais amplo, que é o da migração de milhares de pessoas que seguiam para as Províncias Unidas em busca de trabalho. Gente como Schmalkalden integraria um fluxo aproximado de dois milhões de indivíduos que, entre os anos de 1600 e 1800, saiu de diversas localidades da Europa para buscar ocupação nos Países Baixos. A República, que carecia amplamente de mão-de-obra para os trabalhos agrícolas e industriais, acabou redirecionando parte desses migrantes para suas forças navais e terrestres e para compor os contingentes das companhias de comércio que atuavam nas Índias Ocidentais e Orientais.

Caspar Schmalkalden pertencia ao grupo de migrantes provenientes dos Estados Alemães, que compunha em ambas as companhias de comércio número majoritário entre estrangeiros empregados nelas. A decadência econômica de parte dos Estados Alemães durante a primeira metade do século XVII impulsionou a movimentação de muitas pessoas para a República. Além disso, as destruições promovidas pela Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), especialmente em áreas do Sudoeste, nas vizinhanças de Nuremberg e em partes da Saxônia, foram decisivas para o deslocamento de pessoas. As regiões mais próximas, entre as cidades e os estados de Schleswig-Holstein, Hamburgo (Baixa Saxônia), Bremen, Ostfriesland (Noroeste da Baixa Saxônia) e Oldenburg (Baixa Saxônia), foram as que mais contribuíram com migrantes. Friedrichroda, cidade de origem de Schmalkalden, fora brutalmente pilhada durante a guerra, e talvez esteja aí a motivação para a saída do jovem para os Países Baixos.

Caspar Schmalkalden era um dos muitos filhos de Liborius Schmalkalden, que foi burgomestre de Friedrichroda, e sua esposa Magdalena. Pouco se sabe sobre sua infância e adolescência, mas aparentemente era de uma família com alguma posse, pois foi treinado para fazer levantamentos topográficos em Ghota quando jovem e iniciou estudos em astronomia na Universidade de Groningen, nos Países Baixos. Talvez tenha sido por lá que ele tenha ouvido falar das companhias de comércio neerlandesas e sobre suas colônias nas Índias Ocidental e Oriental. O fato é que Schmalkalden foi parar em Amsterdã, onde encontrou ocupação na Companhia das Índias Ocidentais.

Apesar de sua formação, ele foi contratado como soldado e, uma vez no Brasil, não conseguiu ascender dentro da Companhia, o que pode explicar, junto com as asperezas da faina de soldado, seu retorno para Europa após quatro anos de serviço. Seis meses depois de seu retorno à Europa, em 1646, empreendeu uma nova viagem às Índias. Dessa vez, conseguiu um cargo melhor, sendo empregado como medidor de terras e cartógrafo pela Companhia das Índias Orientais entre 1648-1650 em Formosa (Taiwan). Possivelmente ele foi assistente do agrimensor comissionado pela Companhia das Índias Orientais Cornelis Jansz Plockhoy. Schmalkalden voltaria para a Europa em 1652, após ter passado pela Batávia, Java, Malaca, China, Formosa e Japão.

Sua trajetória no Brasil não foi das mais fáceis. Como referido, foi recrutado para a função de soldado, o que o expunha usualmente a tratamento mais severo por parte dos oficiais, alojamento precário, privações alimentares e soldo baixo. Mal chegou ao Brasil, Schmalkalden juntou-se, em janeiro de 1643, aos membros da expedição comandada por Hendrik Brouwer ao Chile. A empreitada tinha por objetivo fundar uma base de apoio à navegação nas Índias Orientais, combater os espanhóis na região e procurar minas de ouro. Foi, contudo, uma viagem conturbada, principalmente pela falta de planejamento logístico e pelo falecimento do comandante Brouwer logo no início da jornada, seguida de uma recepção neutra dos indígenas araucanos aos neerlandeses, pois percebiam os objetivos colonizadores da gente da Companhia. Para completar o fiasco, uma rebelião de soldados estourou em decorrência de privações alimentares e da falta de pulso dos oficiais em disciplinar as tropas, forçando o regresso dos neerlandeses ao Recife.


Mapa do século XVII de parte da costa do Chile, Arquivos Nacionais, Coleção

Caspar Schmalkalden acompanhou de perto tudo isso e registrou em seu diário parte dos acontecimentos que nos ajudam a entender a má-sucedida expedição ao Chile. Schmalkalden foi testemunha de alterações entre a tropa, de boatos sobre conspirações de soldados e da punição de militares desertores. Outro jornal, escrito pelo assistente administrativo integrante da expedição, Johan van Loon, confirma os eventos relatados pelo soldado.

As insubordinações da tropa foram majoritariamente decorrência da diminuição da ração entregue aos integrantes da expedição. Antes mesmo de chegar em Valdívia, em agosto de 1643, os comandantes dos navios reduziram a comida distribuída. Pequenos atos de insubordinação ocorreram nesse trajeto, principalmente o roubo de provisões. Brouwer fez reprimendas aos larápios no mês seguinte à saída do Recife, fevereiro, mas isso não foi suficiente para conter os delitos, que continuaram a ocorrer. Em julho seria instituída pena capital aos que cometessem o crime. O mal-estar entre a tropa e o comando já estava instalado, pois marujos e soldados achavam que estavam sendo prejudicados e que os oficiais não tinham suas rações racionadas. Um edital foi lido em público para dirimir as desconfianças. Nele, se afirmava que o esforço era conjunto.

Chegando ao Chile e com parte majoritária dos víveres já consumidos, o comando tentou negociar com os indígenas locais a obtenção de comida. Mesmo oferecendo armas e outras mercadorias, houve resistência dos índios araucanos em fornecer assistência aos neerlandeses, principalmente quando Elias Herckmans, que sucedeu Brouwer, fez sondagem sobre a existência de ouro na região. Com os objetivos da expedição dos neerlandeses evidentes, e a insistência na questão das minas, os chefes indígenas trataram de dizer, em fins de setembro, que estavam incapacitados de fornecer mais provisões para os expedicionários por um período de 4 a 5 meses.


Arara, Casper Schmalkalden

A situação complicou-se ainda mais quando, em meados de outubro, um prisioneiro espanhol, Antonio Zanchies Zines, relatou ter visto um fiscal da frota, de nome Cornelis Faber, em uma mata com quatro soldados. Zines revelou que eles lhe propuseram desertar para o interior e mencionaram ainda que entre 50 e 60 soldados estavam dispostos a fazer o mesmo. No outro dia, os comandantes da expedição, após reunião em conselho (Breede Raad) decidiram iniciar os preparativos para retornar ao Brasil. Alegou-se a impossibilidade de esperar pela ajuda dos “chilenos” no abastecimento da tropa, a insuficiência de víveres e a instabilidade da tropa. A denúncia do espanhol verificou-se verdadeira quando no dia 14, quatro soldados foram avistados por indígenas a caminho de Concepción. Um alferes foi enviado com uma pequena tropa para capturá-los. Dois deles foram mortos e os outros capturados. Em fins de outubro, antes de a frota levantar velas para a jornada de volta, um tribunal de guerra foi organizado para examinar e julgar o caso dos aprisionados. Schmalkalden relata que, no dia 26, doze pessoas foram condenadas. Quase a metade seria morta por fuzilamento e a outra obrigada a pular de uma verga do navio no mar. O saldo da insubordinação foi de cinco mortos e um perdoado pouco antes da execução. Não se fala sobre o que ocorreu com os outros seis que saltaram da verga do navio, mas é fácil supor que no mínimo eles ficaram bastante machucados e não resistiram aos ferimentos.

As embarcações da expedição ao Chile chegaram no Brasil em dias diferentes no começo de janeiro de 1644. A 8 de janeiro, uma ata do Alto e Secreto Conselho confirmou o motivo que levou ao retorno da força expedicionária ao Brasil, confirmando os relatos de Caspar Schmalkalden e de Johan van Loon. O retorno ocorreu por causa da falta de provisões e da “desobediência e malevolência” dos soldados. Fica evidente que o comportamento sedicioso da tropa, que evoluiu na medida em que as provisões foram escasseando, foi importante para acelerar a decisão tomada em outubro de 1643. Ainda em janeiro de 1644 foram abertos procedimentos para apurar a responsabilidade dos oficiais no fracasso da expedição, mas o assunto deixou de ser tratado nos registros de governo do Brasil. Em abril de 1644, os comandantes citados na ata de 8 de janeiro, o major Johan Blaubeeck, o capitão Albert Volterman e o capitão Pierre Johan Flory estavam estacionados respectivamente em guarnições na Paraíba, em Sergipe e no Sul de Pernambuco. Não parece que foram responsabilizados pelo fiasco da operação. Elias Herckmans, o cabeça de toda a frota, faleceria pouco depois do retorno ao Brasil.

Caspar Schmalkalden continuaria sua vida no Brasil, embora tenha passado quase um ano e meio sem registrar informações no seu diário após chegar do Chile, o que nos impossibilita de contar algo a respeito dessa fase de sua vida. Faria, contudo, detalhados apontamentos e desenhos da gente, da flora e da fauna das terras por onde passou na América do Sul.

Especificamente produziu mapas e cenas do território, desenhou animais, plantas e a gente do Brasil e do Chile. Ele pouco escreveu sobre sua própria vida no Brasil e sobre os contatos e amizades que travou, o que é lamentável quando sua produção tem tanto em comum com o material produzido por pessoas empregadas por Johan Maurits van Nassau-Siegen para documentar o território, a exemplo do doutor em medicina Willem Piso, do cartógrafo, astrônomo e multitalentos Georg Marcgraf e dos pintores Albert Eckhout e Frans Post. Suas produções parecem ter sido influenciadoras dos desenhos de Schmalkalden. Todavia, ele não indicou qualquer fonte de inspiração, o que levou alguns a suporem que seus desenhos fossem simplesmente cópias com alguma modificação. Independente da originalidade, seus registros são testemunhos de uma incrível jornada ao continente sul-americano e documentam a ocupação da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil e áreas circunvizinhas.


Fontes utilizadas no texto:

Stadsarchief Amsterdam, Notarieel Archief, inv. 5057, 185v, 186, 186v, 18/09/1642 (transportakte).

‘Journael nopende op de Reijse in Chili onder het Beleijt van de Generael d’Heer Henrique Brouwer 1643. Door Johan van Loon, commies’. In Het jacht Dolphijn van Hoorn. Verkenner in de vloot van Hendrick Brouwer 1643. Hoorn: Stichting Nederlandse Kaap Hoorn-vaarders, 2007.

Nederland Nationaal Archief, Oude West Indische Compagnie, 1.05.01.01, inv. nr. 44.

Nederland Nationaal Archief, Oude West Indische Compagnie, 1.05.01.01, inv. nr. 70, DN 08-01-1644.

Nederland Nationaal Archief, Oude West Indische Compagnie, 1.05.01.01, inv. nr. 70, DN 12-01-1644.

Nederland Nationaal Archief, Oude West Indische Compagnie, 1.05.01.01, inv. nr. 70, DN 08-04-1644.

SCHMALKALDEN, Caspar. The voyage of Caspar Schmalkalden from Amsterdam to Pernambuco in Brazil. Volume II. Rio de Janeiro: Editora Index, 1998.


Saiba mais:

FRANÇOZO, Mariana de Campos. De Olinda a Holanda. O gabinete de curiosidades de Nassau. São Paulo: Editora Unicamp, 2014.

GELDER, Roelof van. Het Oost-Indisch avontuur. Duitsers in dienst van de VOC. Nijmegen: Uijtgeverij SUN, 1997.

JOPPIEN, “The Dutch Vision of Brazil. Johan Maurits and his artists”. In BOOGAART, Ernst van den (ed.). Johan Maurits van Nassau-Siegen 1604-1679. A Humanist Prince in Europe and Brazil. The Hague: The Johan Maurits van Nassau Stichting, 1979.

TEIXEIRA, Dante Martins. ‘The Travel Diary of Caspar Schmalkalden to the New World (1642-1645)’. In Schmalkalden, Caspar. The voyage of Caspar Schmalkalden from Amsterdam to Pernambuco in Brazil. Volume II. Rio de Janeiro: Editora Index, 1998.

WHITEHEAD, P. J. P.; BOESEMAN, M. A portrait of Dutch 17th century Brazil. Animals, plants and people by the artists of Johan Maurits of Nassau. Amsterdam: North-Holland Publishing Company, 1989.

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