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Histórias da Nova Holanda

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Gaspar Dias Ferreira, um Iago nos Trópicos

por Kleber Clementino

“Divindade do Inferno!
Os diabos, quando obram seus pecados,
Pintam-nos antes com cores celestes,
Tal como eu faço agora”
Shakespeare, Otelo, ato 2, cena 3.


“Coração danado”, “espírito mau”, “falto de escrúpulos”, corrupto, perito em mil tramoias: eis algumas das acusações que, por quatro séculos, se acumularam nas costas de Gaspar Dias Ferreira (1595-1656). Que personagem! Assombra que, no Brasil, em Portugal ou nos Países Baixos, não se tenha ainda escrito obra dedicada a tão fascinante anti-herói. Frei Manuel Calado, contemporâneo que o detestava, declarou-o “maior inimigo que os portugueses tinham em Pernambuco” – e isso em um Brasil ocupado por potência inimiga. Charles Boxer, resumindo no século XX um oceano de juízos desfavoráveis, sentenciou: “o homem mais odiado na colônia”.

But wait a minute, Mr. Boxer! Sim, relatos seiscentistas o retratam como bandido de faroeste, enquanto outros sujeitos aparecem justos, heroicos... Mentira, Gaspar era fera entre feras. Por que logo ele, então, o demônio em Capricórnio?

Ora, devia mesmo ser odioso para alguns: não ascendeu com doçuras. Talvez, suponhamos, pudesse ter batalhado idoneamente, com modéstia, longe das falcatruas do governo. Nesse caso, provavelmente, não teria deixado rastros e hoje sequer saberíamos seu nome, como os dos milhões de anônimos do Brasil Holandês (1624-1654). Teria acaso morrido moço, pobre, varado por bala da Companhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compagnie - WIC) ou por alguma flecha indígena, em Pernambuco ou na Paraíba – se é que migraria para o Brasil. Ao contrário, pela vida pouco morigerada, extorquindo e trapaceando, viajou pelo mundo, palestrou com altos dignitários, frequentou a corte portuguesa e envelheceu rico e fidalgo. Os historiadores sempre se interessaram pelos heróis, mas mais ainda pelos cafajestes, cujas pegadas devassam com deliciosa curiosidade. Entender o percurso, as escolhas de Ferreira, bem como as razões que, após sua morte, o converteram num Iago (o imortal vilão shakespeariano) descido aos Trópicos, ajuda a vislumbrar o que era transitar na encruzilhada entre Lisboa, Recife e Amsterdã, no século XVII, sobretudo para quem não provinha dos círculos abastados.

Gaspar nasceu em Lisboa, em 1595. Não há notícias de sua juventude. Provavelmente cresceu entre grupos urbanos desfavorecidos, no período da União Ibérica (1580-1640). Adulto, lia e escrevia em português, holandês e latim; supõe-se que recebeu educação formal. Embora inteligente e ambicioso, não terá prosperado em Lisboa, porque eram estreitas as vias de promoção social, na Ibéria do Seiscentos. A sociedade do Antigo Regime se propõe estática, com estamentos “naturais” determinados por Deus, e Ferreira ocupava a camada inferior, dos que deveriam trabalhar, sustentar os superiores e rezar para ser compensados no além. A norma era alguém como Gaspar morrer como nasceu. Porém, em 1618, esticou os olhos por cima do Tejo, mandou aquela vida às favas: “vou-me embora para o Brasil”.

Porque na América a história era outra, a mobilidade era maior. A economia canavieira exuberava: os preços subiam, a produção também e, em Olinda e Salvador, senhores de engenho gastavam como nababos: cavalos, pratarias, roupas e joias finíssimas, etc. Economia enormemente concentrada, lembremos, sustentada pelo trabalho escravo, com parcos mecanismos de distribuição da renda, mas na qual a prosperidade beneficiava marginalmente comerciantes e artesãos. Existia, em todo caso, um ideário de “tentar a sorte” – o que, comparado ao Velho Mundo, comportava seu tanto de verdade. No primeiro século da indústria açucareira em Pernambuco (1535-1630), numerosos europeus de origens nada nobres enriqueceram, sobretudo no fabrico da cana, mas também no plantio e no comércio.


Frans Post, Vista da Ilha de Itamaracá no Brasil, 1637 (Mauritshuis).

No Brasil, Gaspar fez-se negociante, porém, ao que parece, não ganhou muito dinheiro. A conquista holandesa de Olinda e do Recife (1630) mudaria seu destino. A invasão era parte da guerra neerlandesa de independência contra a casa reinante em Espanha e Portugal, os Habsburgo, que reivindicavam direitos sucessórios nos Países Baixos. Depois da ocupação da Bahia (1624-1625), os “flamengos” atacam Pernambuco. Primeiramente limitados ao litoral e sujeitos a apertos materiais, no período 1632-1641 ampliariam a área sob seu poder que, no apogeu, se estenderá do Maranhão a Sergipe, além dos enclaves na África, sobretudo na costa angolana.

Em Recife, os holandeses iniciaram a construção do espaço urbano, trazendo oportunidades para comerciantes e artesãos. Gaspar, no epicentro do processo, pôs-se depressa aliado dos invasores, de olho nos ganhos. O que Portugal lhe negou, a Holanda lhe deu. Em 1636, pedia licença às autoridades municipais para alugar casa em Antônio Vaz (ilha em frente ao istmo do Recife, onde hoje está o bairro de São José), por quatrocentos florins, quantia razoável. Em 1637, seria escolhido escabino da Câmara de Olinda, indicativo de relevância socioeconômica e proximidade com o poder. Ocuparia o cargo até 1640 e seria o responsável por renomear a instituição: Câmara de Maurícia, nome dado ao Recife. Bajulava seu benfeitor, o conde Maurício de Nassau, governador do Brasil de 1637 a 1644. Era seu conselheiro e “testa de ferro”.

Sob Nassau, Ferreira atuou no governo (participou da construção das pontes que ligavam as ilhas do Recife) e prosperou. Vencidos os derradeiros focos de resistência luso-brasileira, entre 1635 e 1637, diversos senhores se refugiaram na Bahia. Engenhos e plantações foram leiloados por preços baixos, a prazo. Gaspar arrematou dois engenhos, outrora pertencentes à família Sá Maia: o Novo e o Santo André, na freguesia de Muribeca, atual Jaboatão dos Guararapes. Senhor de engenho, alcançava o topo da hierarquia da capitania. Não era o único: outros como João Fernandes Vieira, imigrante de berço humilde, seguiam trajetória semelhante, ascendendo – nem sempre de maneira honesta – nas brechas propiciadas pela mudança de conjuntura.


Coleção Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Brasil.

Para gente disposta a arriscar e com poucos escrúpulos, aqueles eram anos alvissareiros. Além desse investimento, Gaspar mobilizou estratagemas para apropriar-se ilegalmente de engenhos e gado de ordens religiosas (beneditina, franciscana e carmelita), em Pernambuco e Paraíba, abocanhando lucros. Explorava as desgraças desses religiosos, expulsos do Brasil sob domínio dos protestantes. A essa impiedade relatos contemporâneos somam outras. Valendo-se da proximidade com Nassau, o conselheiro trapaceava moradores a lhe repassarem caixas de açúcar, garantindo que assim comprariam a simpatia do conde, porém vendia-as e embolsava o ganho. Para os que tinham problemas com o governo, criava obstáculos, chantageando-os. Frei Calado descreve verdadeiro clima de terror no Recife nassoviano: mancomunado com facínora neerlandeses, portugueses “e alguns judeus, que também andavam nesses enredos”, o endiabrado Gaspar subornava ou coagia falsas testemunhas (soldados ou escravos ameaçados de torturas) para delatarem moradores por traição contra a Holanda, prendendo-os e, sob a ameaça de execução, extorquindo-lhes perdões por grossas quantias.

Entretanto, orquestrando este sinistro festim, Ferreira captou mudança nos ventos. Finda a União Ibérica e aclamado o rei D. João IV, em 1640, a recuperação do Brasil tornava-se prioridade para Portugal. Igualmente, em meio à Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), o comércio açucareiro sofria, as ações da WIC perdiam valor, deixando de pagar dividendos em 1643. Após uma década em Pernambuco, os holandeses sequer dominavam técnicas de fabrico do açúcar, dependendo dos luso-brasileiros. Assim ponderando, Ferreira concluirá que havia boa probabilidade de Portugal retomar o Nordeste, por compra ou guerra. Convinha-lhe, naquele cenário, preservar boas relações com os flamengos, porém simultaneamente engajar-se nas maquinações lisboetas para angariar apoios contra a Holanda. Já em 1642, um “agente secreto” português, frei Estevão de Jesus, viajava a Pernambuco para avaliar o ânimo da açucarocracia face aos estrangeiros, então não dos melhores, dadas as restrições à religião católica e as vultosas dívidas contraídas com a WIC. Quem custeou sua viagem? Gaspar! E ambos trocariam cartas, nas quais frei Estevão informava que D. João IV autorizara uma insurreição em Pernambuco. Nas boas graças de Nassau e do rei, Ferreira comprometia-se com todos e com ninguém.

Em 1644, Nassau retornou à Europa. Seu conselheiro, que angariara poderosos inimigos em Pernambuco, tido por judeu (uma mácula na época), traidor e celerado, partiu com ele, deixando a mulher, Ana Clara, cuidando dos engenhos. Pretendia retornar, confessava em cartas. Em Amsterdã, levaria adiante seu projeto de resguardar ambas as frentes: do lado holandês, peticionaria para naturalizar-se, o que obteve em 1645, seguia cultivando a amizade de Nassau e redigindo pareceres sobre os assuntos do Brasil; do lado luso, aproximou-se do embaixador Francisco de Sousa Coutinho, a quem orientaria nas tratativas sobre a guerra ultramarina e recuperação dos territórios perdidos. O embaixador respeitava-o, mesmo conhecendo-lhe o jogo duplo, fazendo chegarem seus conselhos ao rei. Gaspar carteava-se também com os marqueses de Montalvão e de Alegrete, membros do governo em Lisboa. Sendo ele agora neerlandês naturalizado, cometia crime de traição.

Para miséria sua, tais papéis cairiam nas mãos das autoridades em Amsterdã, em meados de 1645. Foi preso, processado e condenado em 1646 a banimento e a multa de doze mil florins. Em 1647, o Supremo Conselho da Holanda aumentaria a pena: sete anos de prisão, multa devastadora de trinta mil florins, perda da naturalização e banimento perpétuo.

Acabava-se sua ascensão? Não.

Da cadeia, continuou correspondendo-se com as autoridades lusitanas. Enfatizava, desde que estourara a Insurreição Pernambucana (1645-1654), a vantagem de recomprar o Brasil aos Países Baixos por três milhões de cruzados, explorando as fragilidades econômicas da WIC, cujas ações então valiam menos da metade do preço inicial. Antes de ser preso, aliás, fizera idêntica recomendação a Nassau e a deputados flamengos: vender o Brasil, cujo domínio seria canoa furada. Custear a guerra sairia muito mais caro, explicava a D. João IV, acrescentando que, tão logo se acertasse o fim da Guerra dos Trinta Anos, o preço do açúcar subiria e os holandeses não mais aceitariam o acordo. Negócio para já.

Amargou quase quatro anos encarcerado. Na noite de 17 de agosto de 1649, o prisioneiro pegou pena e papel, redigiu elegante missiva em latim destinada aos “Senhores Deputados” neerlandeses, intitulada “Epístola de Gaspar Dias Ferreira, escrita no cárcere, de onde escapou”, deixou-a sobre a mesa e, na calada da noite, foi-se embora. À época, contou-se que espetacularmente serrara as grades com uma corda de guitarra! É mais provável que tenha obtido a chave da cela. Dois dias depois, as autoridades lançavam edital, prometendo recompensa a quem auxiliasse em sua captura. Era tarde: o foragido só emergiria agora em Lisboa. Este edital nos dá breve descrição física dele: baixo, gordo, moreno – nada do prisioneiro pálido e emagrecido. Já passara dos cinquenta anos.

Chegava em má hora. Pouco antes, fora publicado O valeroso Lucideno (1648), de frei Calado, que descrevia a vida no Recife holandês e denunciava as safadezas do nosso Iago moreno.

Ademais, embora os insurretos de Pernambuco conquistassem duas estrondosas vitórias contra os holandeses, nos montes Guararapes (1648-1649) – e a esposa, Ana Clara, teria acolhido os feridos em seu engenho – a posição geopolítica de Portugal seguia delicada. O reino, empobrecido, em guerra de independência contra a Espanha, à beira da guerra com a Holanda, sequer fora aceito como nação soberana nas discussões de Münster, que selaram o fim da Guerra dos Trinta Anos (1648). O Pe. Antônio Vieira qualificava aquelas vitórias nos Guararapes como milagres, mas que em verdade prejudicavam a situação da Coroa, pois a revanche da Holanda, militarmente superior, poderia determinar o fim do Portugal independente. Recomendava, por isso, que se devolvesse o Norte brasileiro aos holandeses, indenizando-os pelos prejuízos de guerra, e apelidava de “valentões” os conselheiros do rei que repudiavam essa medida.

Ferreira, apesar do cenário adverso, conservou-se nos círculos do poder, protegido pelo marquês de Montalvão, presidente do Conselho Ultramarino. Escreveu cartas conciliatórias a pró-homens como Francisco Barreto de Menezes e ao antigo desafeto João Fernandes Vieira (a quem, em carta a Nassau de 1645, referira-se pejorativamente como “mulato Vieira” e acusara de “crime e perfídia”, ao ouvir da rebelião que liderava), parabenizando-os agora pelos sucessos da Insurreição e pedindo que lhe outorgassem o posto de procurador de Pernambuco na Corte. Não lho deram.

Todavia, conquistaria insígnias valiosas: o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo e o foro de fidalgo-cavaleiro da Casa Real, entre 1652 e 1654, promoção social que o integrava à nobreza e abafava formalmente as suspeitas de sangue judaico. Continuava fazendo negócios, intermediando transações até da Companhia de Comércio do Brasil com comerciantes de Amsterdã e fretando navios para transportes de mercadorias pelo Atlântico. Já cavaleiro, moveu processo, em Roma, para que o Valeroso Lucideno fosse proscrito pela Inquisição, por imprimir-se no volume uma falsa bula papal. A obra seria incluída no Índice de Livros Proibidos, em 1655, mas nem por isso deixaria de ser lida, para azar de sua memória na posteridade.

Nosso biografado morreu em 1656, nobre e respeitado, sem jamais voltar ao Brasil. Deixou à família engenhos e plantações de cana, conquanto os Sá Maia e os beneditinos da Paraíba os processassem, para reaver bens que consideravam seus (na disputa patrimonial, um de seus filhos, Francisco, seria assassinado a mando da família Sá Maia, que fizera também ameaças ao velho Gaspar, em Lisboa).

Com o tempo, sua imagem se foi cristalizando: aleivoso, pérfido como aquele Calabar que, nas Alagoas, auxiliou os flamengos contra os portugueses. Diferentemente do Valeroso Lucideno, outras obras históricas posteriores da Guerra Holandesa, como o Castrioto Lusitano (1680), de frei Raphael de Jesus, poupariam sua imagem, calando seus crimes ou atribuindo seus malfeitos a “um judeu”, não nomeado. Não foi o bastante, pois a longevidade do Lucideno desgraçou-o. Ao contrário de Fernandes Vieira, que investiu largamente na heroicização de sua história, o pragmático negociante não cuidou de enaltecer-se em livros, ficando registrado apenas o retrato desfavorável e às vezes monstruoso que os adversários lhe pintaram. Daí Vieira – igualmente enriquecido como colaborador flamengo, metido em canalhices semelhantes, extorsões e até assassinato – ter ocupado, com o tempo, lugar no panteão dos heróis da Guerra Holandesa, como notável “primeiro aclamador da liberdade”, enquanto para Ferreira restou, na narrativa consagrada, o papel do sórdido traidor. Quando ele partiu de Pernambuco com Nassau, alfineta frei Calado, deixou “mui poucas saudades na terra, e levou consigo muitas pragas de pobres”.

Há de ter levado. Contudo não foi pelas pragas dos pobres, e sim pelas folhas dos ricos e letrados que Gaspar acabou para a história como este infame diabo cercado de santos. Útil advertência aos patifes que porventura desejem imitá-lo: lembrem-se de escrever sua versão da história.


Fontes:

CALADO, Manoel. O valeroso Lucideno, e triumpho da liberdade. Primeira parte. Lisboa: por Paulo Craesbeeck, 1648.
JESUS, Raphael de. Castrioto Lusitano: parte I. Entrepresa, e restauraçaõ de Pernambuco; & das capitanias Confinantes. Lisboa: Na impressão de Antônio Craesbeeck de Mello Impressor de sua Alteza, 1680.
“Papéis concernentes a Gaspar Dias Ferreira”. In: Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano. Recife: Typographia Industrial, 1886, n. 31.
Stadsarchief Amsterdam, Notarieel Archief, toegangsnummer 5075, inv. nr. 2439, p. 172-174, 10/03/1654.


Saiba mais:

BOXER, C. R. Os holandeses no Brasil: 1624-1654. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961.
CLEMENTINO, Kleber. Historiografia e política nas narrativas lusocastelhanas seiscentistas da Guerra Holandesa no Atlântico Sul (1625-1698). Recife: Tese doutoral (PPGH-UFPE), 2016.
MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. Rio de Janeiro, Topbooks, 1998.
MELLO, J. A. Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.

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