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Lorenzo Perosi e o Brasil

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A influência de Perosi na música brasileira: A música religiosa de Alberto Nepomuceno

por Thiago Plaça Teixeira
1. Perosi e a música católica brasileira. Um tema ainda não suficientemente explorado nos estudos musicológicos é a influência que as composições de Lorenzo Perosi eventualmente tenham exercido sobre os compositores brasileiros que se dedicaram à música sacra no final do século XIX ou no início do século XX. Como uma primeira amostra dessa influência, apresentamos aqui alguns apontamentos, a partir de estudo anterior já realizado, sobre a influência de Perosi na obra sacra de um dos mais importantes compositores brasileiros, Alberto Nepomuceno (1864-1920).

O prestígio que Perosi gozava junto à crítica musical e a ampla utilização de sua música sacra nas igrejas brasileiras parecem tê-lo colocado como referência no que tange à música litúrgica católica. Exemplo curioso é um texto de Manuel Bandeira (1886-1968) em que o autor mostra, com bom humor, como até Heitor Villa-Lobos (1887-1959), reconhecidamente zeloso de sua pretensa originalidade artística, teria Perosi como modelo a ser seguido:
Havia muito tempo que eu não tinha o prazer de abraçar o nosso grande Vila [sic], que é como costumamos chamar, os seus íntimos, Heitor Vila-Lobos. Sabendo que ele estava de volta à terrinha, fui logo procurá-lo no seu apartamento da Rua Araújo Porto Alegre. Encontrei-o como ele é sempre encontrado a qualquer hora do dia ou da noite: trabalhando. Desta vez estava trabalhando no Magnificat que lhe foi encomendado pelo Vaticano. – Então, bichão, agora na música sacra? – Agora? Você se esquece que eu já escrevi quatro missas, uma de Requiem, que tenho dois volumes de motetos, e muitas outras coisas avulsas. Fiquei encabulado. Mas quem já deu a volta do Vila? No outro dia Mariuccia Jacovino disse-me que o Quarteto do Rio de Janeiro estava ensaiando o 16º quarteto do Vila. O último de que eu tinha notícia era o oitavo. E me lembrava da conversa que a propósito dele tivera com o compositor. – A verdadeira sonoridade do quarteto é a de Haydn, dissera-me Villa. Beethoven é demasiado egocêntrico: é ele, ele e mais nada. Beethoven, sinfonia; Haydn, quarteto. E na música sacra quem é que é? Perguntei agora, que ouvia falar do Magnificat para o Vaticano. Vila sorriu: – Perosi! Mas eu: – E Palestrina? – Palestrina, Vitória são muito rigorosos, muito rígidos. Sabes que eu sou pecador: tenho pecado muito![1]

2. Alberto Nepomuceno. O regente e compositor brasileiro Alberto Nepomuceno é comumente considerado pela historiografia musical um expoente da música erudita do Brasil no período marcado pelas primeiras décadas do regime republicano, no final do século XIX e início do século XX. De fato, Nepomuceno exerceu intensa atividade musical em sua época, seja pelo fecundo trabalho à frente do Instituto Nacional de Música, seja por seu trabalho como compositor.

Entre os muitos gêneros musicais aos quais Nepomuceno se dedicou como compositor, encontra-se o da música sacra, isto é, aquela música destinada ao culto público da Igreja Católica; e também a música puramente religiosa, sem uso litúrgico.



Fig. 23- Alberto Nepomuceno (1864-1920), criador da Sinfonia em sol menor (1897) e de importantes obras sacras. Exposição comemorativa do centenário do nascimento de Alberto Nepomuceno. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional; Fortaleza: Universidade do Ceará, 1964. Capa. Biblioteca Nacional.

Na vida de Nepomuceno, verifica-se que seu contato com a música sacra e religiosa se dá basicamente em cinco âmbitos distintos, mas diretamente interligados: (1) na sua formação religiosa, (2) na sua formação musical, (3) na sua filiação ao movimento de resgate da obra musical do Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), (4) na sua atuação em prol da regulamentação da música sacra na Arquidiocese do Rio de Janeiro e, finalmente, (5) nas suas próprias composições musicais.

3. Missa de Nepomuceno. Entre as composições sacras e religiosas de Alberto Nepomuceno, nota-se que há apenas uma Missa, cuja edição, pela Bevilacqua & C., apresenta o seguinte título: “Missa duabus vocibus aequalibus quam in honorem Virginis Immaculatae concinnavit et Eminentissimo Domino Cardinali Arcoverde dicavit. Die 26 Octobris Anni 1915. A. Nepomucenus” [Missa a duas vozes iguais composta em honra da Virgem Imaculada e dedicada ao Sr. Eminentíssimo Cardeal Arcoverde. Dia 26 de outubro de 1915. A. Nepomuceno]. A referida data de 26 de outubro de 1915 marcou o jubileu episcopal, isto é, o aniversário de vinte e cinco anos da sagração episcopal, de Dom Joaquim Arcoverde, então arcebispo do Rio de Janeiro e primeiro dos prelados sul-americanos a se tornar cardeal.

Nessa ocasião, o próprio cardeal celebrou uma solene missa pontifical na Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro, com a assistência de bispos e arcebispos de todo o Brasil, sendo executada, então, a Missa que Nepomuceno lhe dedicou. Digno de nota é o fato de que a obra foi executada pela Schola Cantorum Santa Cecília, conduzida pelo Pe. José Alpheu Lopes de Araújo, muito ativo em sua época quanto à restauração da música sacra católica no Rio de Janeiro.

4. Forma musical. A Missa de Nepomuceno segue um modelo bastante comum dentro do repertório produzido pelos compositores ligados ao Cecilianismo. Trata-se de uma composição destinada a coro a duas vozes iguais com acompanhamento de órgão. Não há árias para cantores solistas e os solos vocais ficam restritos a pequenas frases musicais intercalando os trechos corais. Nota-se, assim, um alinhamento às diretrizes dos documentos eclesiásticos da época, que visavam eliminar o caráter teatral na música de igreja. Predomina a escrita coral e a alternância entre texturas (imitativa/homofônica), andamentos e fórmulas de compasso como maneira de inserir variedade dentro de uma concepção geral em que a forma musical é determinada primordialmente pela estrutura do texto litúrgico. Preza-se igualmente pela inteligibilidade do mesmo texto e pela referência a modelos musicais do passado, sobretudo o cantochão e a polifonia de Palestrina (1525-1594).



Fig. 24 - Nepomuceno, Alberto. Missa [a duas vozes e órgão]. Manuscrito autógrafo com data de 8 de dezembro de 1914, festa da Imaculada Conceição. Excerto do Agnus Dei. Biblioteca Nacional.

Os esquemas formais utilizados em cada peça que compõe o Ordinário da Missa são compartilhados pelos compositores que de alguma forma estiveram ligados ao Cecilianismo. Em seu célebre tratado de forma musical, editado entre 1920-22, Giulio Bas (1874-1929), que atuou também diretamente no processo de restauração da música litúrgica católica no início do século XX, detalha os procedimentos formais próprios da Missa católica.

No Kyrie, por exemplo, a música moderna (pós-renascentista), segundo Bas, mantém a tradicional divisão A-B-A ou A-B-C, mas a distinção das partes não se fundamenta simplesmente na caracterização temática, mas sim em relações tonais. O Christe geralmente assume um caráter contrastante em relação ao primeiro e ao último Kyrie, seja no caráter, seja na tonalidade ou ainda na alternância de texturas (solo/coro, polifonia/homofonia etc.).[2]

Para o Gloria, por sua vez, Bas apresenta a divisão dos versículos em quatro grupos distintos. A primeira (A), do início até Glorificamus te; a segunda (B), de Gratias agimus até Filius Patris; a terceira (C), de Qui tollis peccata mundi até Qui sedes ad dexteram Patris; e a quarta (A’), enfim, a partir de Quoniam tu solus sanctus até o final.[3]

No que concerne ao Credo, Bas indica tríplice divisão em grandes partes, cada uma das quais inicia-se com um versículo característico, na tonalidade principal, cada parte compreendendo 5 versículos, agrupados 2+3 e 3+2.[4]

Para o Sanctus-Benedictus, a constituição do texto já claramente impõe a forma de Responsório, ou seja, o modelo a–b–a’: após uma primeira parte (chamada corpo do responsório), sucede outra (o versículo) e, em seguida, retorna-se à primeira parte, que não é repetida inteiramente, sendo executada somente sua última frase (a frase de repetição).[5]

O Agnus Dei, enfim, possui estreita afinidade de significado com o Kyrie, o que, segundo Bas, sugere frequentemente uma repetição ou adaptação da forma empregada no Kyrie, ou, ao menos, um desenvolvimento sobre os mesmos temas.[6]

5. Intertextualidade musical. Uma análise musical da forma empregada por Nepomuceno em sua Missa indica uma clara adequação aos modelos formais tipicamente cecilianistas, o mesmo ocorrendo, de modo geral, nas várias Missas compostas por Lorenzo Perosi. Entretanto, o modo concreto como Nepomuceno opta por trabalhar as articulações das texturas musicais aliado a outras características, tais como a função estrutural conferida ao tema instrumental introdutório e inclusive algumas citações temáticas diretas, permitem afirmar que o compositor brasileiro usa como modelo para sua composição a Missa Te Deum laudamus (1899) de Perosi, também para duas vozes e órgão. Com efeito, sabe-se que essa era uma das obras litúrgicas de Perosi já conhecidas e executadas em cerimônias católicas no Brasil.

Em primeiro lugar, Nepomuceno elabora uma introdução para sua Missa com um solo de órgão com um perfil melódico que remete diretamente a padrões encontrados no repertório do canto gregoriano. Esse mesmo tema é utilizado nas demais peças da Missa, seja como prelúdio, interlúdio ou poslúdio. Tal recorrência do tema de órgão introdutório ao longo da Missa coincide exatamente com aquele empregado por Lorenzo Perosi na Missa Te Deum laudamus. Além disso, o próprio desenho melódico empregado por Nepomuceno parece remeter ao utilizado por Perosi em seu moteto Ecce Panis angelorum, de 1910. Na obra sacra de Perosi, deparamo-nos com essa mesma recorrência de um tema instrumental na Missa Prima Pontificalis (1897), uma de suas obras mais célebres.

6. Gloria e Credo. Comparando-se o Gloria de Nepomuceno ao da Missa Te Deum laudamus de Perosi, observa-se que há dois tipos de intertextualidade musical. Em primeiro lugar, uma citação de esquema formal: emprego do tema introdutório com solo de órgão utilizado nos respectivos Kyries; alternância de andamentos e de fórmulas de compasso da mesma maneira em ambas as peças; e os pontos em que ocorrem mudanças na textura musical (tutti-solo ou homofonia-imitação), são praticamente os mesmos em ambos os Glorias. Esse mesmo tipo de citação de esquema formal será constatado no Credo. O segundo tipo de intertextualidade no Gloria corresponde a uma apropriação de elemento temático. Trata-se do trecho Domine Deus, agnus Dei, Filius Patris, com constituição melódico-harmônica muito semelhante em ambas as obras.

7. Sanctus. A maior aproximação entre a Missa de Nepomuceno e a Missa Te Deum laudamus de Perosi se dá, entretanto, no Sanctus. De fato, quanto à estrutura geral, no que concerne à divisão dos diversos períodos do texto litúrgico entre as vozes e à respectiva textura coral empregada, verifica-se que as duas peças podem ser consideradas praticamente idênticas, valendo-se ambos os compositores da forma de Responsório, fundamentando a distinção das partes na maior ou menor orquestração vocal e no emprego de texturas homofônicas e imitativas.

Além da citação de esquema formal, o Sanctus de Nepomuceno reproduz determinados desenhos melódicos e, algumas vezes, até as mesmas relações intervalares presentes em determinados trechos da obra de Perosi, refletindo assim uma citação textual, isto é, uma incorporação de materiais reconhecíveis tomados de outra obra preexistente. Configura-se, assim, uma paráfrase (citação reelaborada livremente), abrangendo desde a forma geral até o nível das frases musicais, por meio de citação de elementos musicais de pequena dimensão. Destacamos a grande semelhança no tema inicial, intercalado entre as duas vozes; a semelhança de perfil melódico e de estruturação harmônica em Pleni sunt coeli et terra; a idêntica textura imitativa em gloria tua; e a estrutura fraseológica e os procedimentos cadenciais na frase final.

8. Gregoriano e Oratório. Há ainda outras duas obras em que se nota uma proximidade estilística entre Nepomuceno e Perosi: sua obra Em Bethleem, considerada comumente como um oratório; e Cloches de Nöel, para piano solo. Na primeira encontram-se elementos representativos e de tópicas pastoris tradicionalmente empregadas em temáticas natalinas e, especificamente, em oratórios dedicados ao nascimento de Cristo, tais como o Il Natale del Redentore (1901), de Perosi. Na segunda, nota-se um tipo de citação e de tratamento harmônico dado ao canto gregoriano que também é encontrado em obras de Perosi.



Fig. 25 - Nepomuceno, Alberto. Sinos de Natal [Cloches de Noël]. Manuscrito autógrafo datado de 27 de dezembro de 1915. Excerto (primeira página). Note-se a inscrição do texto latino na última linha, cuja melodia remete ao canto gregoriano natalino. Biblioteca Nacional.

Assim, pois, seja pela comum filiação a ideais cecilianistas, seja pela citação direta de esquemas formais ou de temas musicais específicos, nota-se como a música de Perosi encontra-se muitas vezes como modelo de referência para compositores como Alberto Nepomuceno. Há ainda um caminho a ser explorado no que tange a outros compositores.



Fig. 26 – Don Lorenzo Perosi. Revista Moderna. Rio de Janeiro, nº. 28, fevereiro de 1899.

 

[1] BANDEIRA, Manuel. “Vila”. Boletim da Associação Brasileira de Imprensa, nº. 77. Rio de Janeiro, setembro de 1958, p. 1 (grifo nosso).

[2] BAS, 1957, p. 148.

[3] Ibid., p. 149.

[4] Ibid., p. 146.

[5] Ibid., p. 129-133.

[6] Ibid., p. 153.

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