BNDigital

O Brasil Encontra o Extremo Oriente: a Missão Chinesa (1880)

< Voltar para Dossiês

Macau e a experiência portuguesa

Na China, a comitiva passou por Hong Kong e Cantão até de chegar em Macau, a quase lendária colônia portuguesa encravada no Extremo Oriente. Para os brasileiros, o relacionamento secular entre lusos e chineses era praticamente uma porta de entrada para essa civilização. Lisboa, revelando-se um sinólogo arguto, reconheceu a primazia da experiência portuguesa, bem como seus sucessos e fracassos:

Não são, porém, somente os janotas e as elegantes de Macau que lhe dão um cunho especial entre as cidades da China. As suas ruas escabrosas, com suas escadinhas que lembram as velhas calçadas lisbonenses; as suas casas de construção irregular, ornadas de balcões de madeira verde, estilo árabe, ou de janelas engradadas; as numerosas igrejas e os conventos empoeirados, residências de padres que circulam gravemente, como quem tem consciência da sua influência, vestindo amplas batinas e deitando a benção sobre os transeuntes; o contínuo repique dos sinos e o retumbar dos tambores da guarnição, tudo dá a Macau uma fisionomia que contrasta com a das outras cidades, onde predomina o espírito prático dos ingleses e em que a atividade comercial absorve todas as outras manifestações da vida. Mas o comércio de Macau está em constante decadência e não parece longe de limitar-se às necessidades locais. Em vinte anos, o número anual das saídas de navios do seu porto caiu de 1.000 a 200, sendo estes, pela maior parte, embarcações de cabotagem que transportam a Hong Kong o chá ainda exportado da colônia portuguesa no valor de dois mil e quinhentos contos. A sua importação é mais considerável, chegando à cifra de dez mil contos, quantia quase totalmente representada pelas sete mil caixas de ópio introduzidas anualmente. Estas cifras, tão inferiores às que indicam o movimento comercial da maior parte dos outros portos abertos aos estrangeiros, mostram a decadência dessa cidade, que durante alguns séculos monopolizou as transações da Europa com a China. Essa triste situação de Macau é uma aproveitável lição para aqueles governos que descuidam de ocorrer às medidas indispensáveis para o desenvolvimento da riqueza comercial e para a exaltação da nação que lhes confia os seus destinos. Se Portugal não houvesse, durante tantos anos, abandonado a sua afastada colônia; se lhe concedesse em tempo as facilidades comerciais de que precisava; se a não tivesse apenas considerado como fonte de uma insignificante renda e fizesse o reprodutivo sacrifício necessário para o melhoramento do seu porto, a muitos respeitos o primeiro dessa costa, não há dúvida (de) que seria hoje Macau o principal empório desse remunerador comércio, em benefício e para a glorificação da nação portuguesa. Mas, a estas reflexões do economista podem-se opor, e talvez com vantagem, as do moralista. A imensa riqueza comercial que, a custo de ingente trabalho e de uma vertiginosa ambição, atesouram anualmente Hong Kong e outros centros europeus na China, poderá por acaso compensar o ideal bem-estar em que vivem os modestos habitantes de Macau, à sombra dos seus pitorescos morros, no gozo de um clima privilegiado e embalados pelas gloriosas recordações do passado? (...) Com efeito, os moradores de Macau vivem sonhando com a sua mudança para Hong Kong e, em compensação, muitos residentes desta última cidade só almejam enriquecer para retirar-se a Macau. Alguns já aí se estabeleceram definitivamente, outros possuem na colônia portuguesa bonitas chácaras, onde vêm passar o verão, muito mais suave do que em Hong Kong.



Fig. 30 - Mapa da Vila de Macau
Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional


Fig. 31 - Igreja de São Paulo, gravura publicada no livro 'A China e os chins' [Lisboa, 1888, p. 120-121]. Imagem captura na Biblioteca Nacional de Portugal.
Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional


Fig. 32 - Vista da mesma igreja por Peter Heine, 1854. Imagem capturada na Wikimedia Commons.
Fonte: Wikipedia.


Fig. 33 - Vista da Praia grande de Macau, por Eduard Hildebrandt (data incerta, 1862). As aquarelas de Hildebrandt estão no livro 'Hildebrandt's Aquarellen : auf seiner Reise um die Erde nach der Natur aufgenommen in Egypten, Indien, China, Japan, manilla, Amerika, etc' [1868]. Imagem capturada em macauantigo.blogspot.com.
Fonte: Acervo digital da Fundação Biblioteca Nacional.


Fig. 34 - Visão de Hong Kong, em 'A China e os chins' [Lisboa, 1888, p. 10-11]. Imagem capturada na Biblioteca Nacional de Portugal.
Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional


Fig. 35 - Foto de Macau tirada na mesma época da chegada da comitiva brasileira na China.
Documento raríssimo, pertencente à coleção do fotógrafo chinês Lai Afong (1839-1890), e está disponível em Wikimedia Commons.
Fonte: Coleção Lai Afong – Wikipedia

Visão distinta e muito mais sutil do que aquela proporcionada por Francisco Almeida (1879), ao passar pela cidade alguns anos antes:

Foi com amargura que nos lembramos dos antigos feitos de que foi teatro a cidade, então florescente, de Macao, e dificilmente se reconhecem os filhos dos autores de tão grande empresa (...) hoje apenas habitada pelos descendentes de uma raça europeia, atrozmente degenerada pelo sangue indiano e chinês.


Almeida passou de relance por Macau, e não teve tempo ou interesse de fazer outro juízo. Lisboa demorou-se mais, e foi bem mais cuidadoso. Afinal, Macau estava ligada, de alguma maneira, aos projetos de emigração chinesa para o Brasil, já que a cidade era uma das principais exportadoras de coolies chins, como observou o historiador de Macau Manuel Teixeira (1976).  Lisboa se preocupava com a imigração descontrolada, e de que os expedientes da escravidão se repetissem com os chineses. O relatório de Marques Pereira sobre a emigração de Macau (1861), assim como trabalho de seu colega e amigo Salvador Mendonça (1879) o alertaram para isso. Era preciso que os brasileiros fizessem diferente, como afirmou Lisboa:

Outras ruínas que ainda causam mais triste impressão são os barracões onde, até 1874, eram armazenados os infelizes coolies destinados à exportação para Cuba e o Peru. Quantas lágrimas, quanto sangue não verteram aí essas desgraçadas vítimas da odiosa especulação, em cujos lucros participavam desde os insensíveis governantes de Portugal até os ávidos recrutadores, que, com falaciosas informações, iam seduzir nos confins de remotas províncias os futuros mártires das fazendas de Cuba ou do guano das Ilhas Chinchas?


Fig. 36 - A visão chinesa sobre o destino do cules no livro A China e os chins. [Lisboa, 1888, p.344-345]. Imagem capturada na Biblioteca Nacional de Portugal.
Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional.

»Veja mais: “Como eram recrutados os trabalhadores chineses?” por Kamila Czepula.

Para ele, Macau – e os macaenses - eram um modelo de diálogo intercultural, que poderiam inspirar os brasileiros em suas iniciativas na China:

A introdução de algumas palavras portuguesas nesta língua provém da preferência que se dá aos macaístas para os empregos comerciais. Verdadeira raça híbrida, os filhos de Macau conservam do português e do chin paciência, submissão e hábitos sóbrios, que não admitem a competência dos europeus. Desde Hong Kong até Pequim e o Japão encontra-se esse tipo original, a cuja vista fica-se em dúvida se é o europeu com cara de chin ou o chin disfarçado de europeu. Para chin, falta-lhe o traje e o rabicho; para europeu, sobram-lhe a cor, os olhos torcidos e os pômulos salientes. Levam, entretanto, os macaístas grandes vantagens sobre os estrangeiros estabelecidos na China. Conhecem o dialeto de Cantão, aprendem os outros com facilidade e estão afeitos aos hábitos chineses, o que os torna excelentes intérpretes e compradores; não ambicionam, como os europeus, reunir caudais para retirar-se do país; são modestos nas suas pretensões e só almejam viver e morrer na sua pátria querida, a China e Macau. Tomaram do chin a modéstia, a urbanidade; do português a perseverança, a frugalidade. São simpáticos, apreciados por chins e estrangeiros e respeitados mesmo pelos ingleses, que tiram grande utilidade dos seus serviços. Em Hong Kong, existem muitas casas de alto e baixo comércio dirigidas por macaístas. Em Queen’s Road, principal artéria da cidade, leem-se nas tabuletas das lojas os nomes de Ferreira, Guimarães, Pinto, merceeiros, ourives ou algibebe, ao lado da Stationery ou Dispensary de Smith ou Williams.

Macau contrastava com Hong Kong, a dinâmica colônia inglesa que reproduzia os projetos imperiais europeus do século 19. Rica, pujante, “curiosa combinação do materialismo britânico com o ingênuo sentimentalismo das raças orientais”, e ao mesmo tempo partida pelas tensões raciais, não era o modelo que o diplomata buscava. Lisboa seria ainda surpreendido por João, cozinheiro da corveta imperial, que se revelou chinês de nascimento, apesar de morar no Brasil há anos. Ele se engajou na viagem para retornar a sua terra natal:

No momento em que nos retirávamos fui surpreendido por um celestial de longo rabicho e cabeça frescamente rapada, o qual, chamando-me pelo meu título, indagou da minha saúde em bastante bom português. Com dificuldade reconheci o João, cozinheiro de bordo, transformado da cabeça aos pés e rodeado de amigos que festejavam o seu regresso à pátria. Com efeito, o João Chin tinha saído havia 15 anos de Hong Kong para o Peru e daí para o Brasil, onde depressa identificou-se com os hábitos europeus. Ao ter notícia da partida de uma missão à China, ofereceu-se para cozinheiro, com o único objeto de voltar à sua terra, e essa manhã tinha desembarcado com sentimento geral de oficiais e marinheiros, que devidamente apreciavam as suas qualidades morais e culinárias. O seu primeiro cuidado, ao pisar o solo natal, foi entregar a cabeça a um artista competente, o qual além de rapá-la à última moda, agregou-lhe um apêndice postiço, em lugar do natural, desaparecido ao bárbaro corte de tesouras ocidentais. Assim refrescado e ataviado por um diligente algibebe, não encontrou João obstáculos ao seu reconhecimento por numerosos patrícios, que depressa o rodearam, ávidos das suas surpreendentes narrações de longínquas peregrinações. Ao despedir-me de tão simpático companheiro de viagem, ouvi com satisfação as suas palavras de gratidão pela hospitalidade que tinha recebido no Brasil e as seguranças que me deu do seu concurso para o objeto da nossa missão, prometendo induzir os seus amigos a emigrar para um país onde ele tinha vivido prosperamente durante longos anos, chegando a ajuntar uma pequena fortuna.



Fig. 37 - Mandarim com o 'queue', corte de cabelo institucionalizado pela dinastia Qing. A fotografia foi feita por Adolf Boiarski [1801-1900], que acompanhou a missão comercial russa de 1874-1875, e cuja coleção, única no mundo, se encontra atualmente na BN.
Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional


»Saiba mais: Entre 1874 e 1875, o governo russo enviou uma missão de pesquisa e comércio à China para buscar novas rotas terrestres para o mercado chinês, relatar as probabilidades de um aumento no comércio e de locais para consulados e fábricas, além de obter informações sobre a Revolta Dungan que, naquela época, assolava partes da China Ocidental. Liderada pelo tenente-coronel Iulian A. Sosnovskii, do Estado-Maior do Exército, a missão com nove homens incluía um topógrafo, o capitão Matusovskii; um oficial científico, o doutor Pavel Iakovlevich Piasetskii; intérpretes chineses e russos; três soldados cossacos não comissionados e o fotógrafo da missão, Adolf Erazmovich Boiarskii. A missão saiu de São Petersburgo para Xangai através de Ulan Bator (Mongólia), Pequim e Tianjin, e depois seguiu uma rota ao longo do rio Yangtze, ao longo da Rota da Seda através do oásis de Hami, até o lago Zaysan, e de volta à Rússia. Boiarskii tirou cerca de 200 fotos, que compõem uma fonte única para o estudo da China neste período. A maioria das fotos está neste álbum, que depois se tornou parte da Coleção Thereza Christina Maria, montada pelo Imperador Pedro II do Brasil, e doada por ele à Biblioteca Nacional do Brasil. Fonte: https://www.wdl.org/en/item/1897/



Fig. 38 - O 'queue', estilo de cabelo próprio da dinastia Qing, e que 'João' voltaria a usar em sua terra natal. Imagem capturada em Wikimedia Commons.
Fonte: Wikipedia


»Veja mais: “Os primórdios do turismo em Macau e Cantão no século XIX”, por Frederic Vidal.



Parceiros