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Projeto Resgate Barão do Rio Branco

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Maranhão

por Jomar Moraes
A Face real de um sonho

No Ano da Graça de 2002, em que o Brasil celebra o centenário de um de seus grandes poetas - Carlos Drummond de Andrade -, vem muito a propósito iniciar falando de um antigo e recorrente sonho que retinha uma zona lúcida / para concretar o fluido. (CDA, poema Sonho de um Sonho).

Com efeito, desse alumbramento onírico tenho conhecimento e participo há quase trinta anos, desde quando decidi reeditar fac-similarmente o Semanário Maranhense, que circulou em São Luís no período de 1° de setembro de 1867 a oito de setembro de 1868, e que fora criminosamente surrupiado da Biblioteca Pública Benedito Leite, do Estado do Maranhão.

Em tais circunstâncias, recorri aos préstimos de Esther Caldas Bertoletti, que prontamente me enviou um microfilme de segunda geração do Semanário, a partir do qual foi possível reeditá-lo (São Luís: Edições Sioge, 1979)* e devolver à consulta, pelos interessados, tão valiosa fonte, representativa de um dos últimos empreendimentos coletivos de nossos românticos, luminosa constelação geracional em que já não figuravam Odorico Mendes, Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Gomes de Sousa e Trajano Galvão, todos desaparecidos, como por encanto, no biênio 1863-64.

Mas o Grupo Maranhense, como celebrizado na história literária nacional, ainda tinha a abrilhantá-lo estrelas da grandeza de Joaquim Serra (Pietro de Castellamare), editor e assíduo colaborador do Semanário, e de, entre outros, Gentil Braga (Flávio Reimar), Dias Carneiro, Sotero dos Reis, Antônio Henriques Leal, César Augusto Marques e Joaquim de Sousândrade, que aí publicou, em fragmentos, as primícias de seu poema épico O Guesa, então ainda denominado Guesa errante.

Esse breve excurso teve por finalidade estabelecer, no território cronológico, os lindes da zona lúcida sem cuja preexistência seria impossível concretar o fluido.

Nos anos 70 do século passado, quando Esther Bertoletti coordenava o Plano Nacional de Microfilmagem de Periódicos Brasileiros, esforço pioneiro que resultou na microfilmagem de mais de sete mil jornais e revistas de todas as Unidades da Federação, conheci-a, por ser diretor da Biblioteca Pública Benedito Leite. Então, nas tratativas relacionadas com a tarefa a que ela especialmente se dedicava, tomei conhecimento de que o desafio que pusera sobre os ombros não se restringia a levar dos Estados para a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro os microfilmes de periódicos brasileiros editados, nos séculos XIX e XX, em todos os pontos do território nacional. Compreendia, também, a decisão de devolver aos locais de origem, seus órgãos de imprensa microrreproduzidos e postos a salvo das mais diversas ameaças, efetivas e potenciais, representadas tanto pelo inadequado manuseio de suportes já acidificados e tornados muito vulneráveis pelos agravos do tempo, quanto pela ação nefasta dos átilas da pesquisa, que não se pejam de mutilar e subtrair, como se após eles nem a relva da informação, que é inalienável patrimônio coletivo, merecesse subsistir.

O presente registro, feito com a intenção de protestar contra a injustiça dos que pretenderam, pela omissão ominosa e pelo silêncio que fala alto, tornar esquecida uma atuação pioneira, incansável e obstinada, estaria incompleto se não consignasse que, por essa época - anos 70 - ouvi de Esther Bertoletti que algo parecido, porém de muito maiores proporções, ela sonhava realizar relativamente à documentação do Brasil colonial: trazer dos arquivos portugueses para seus congêneres regionais brasileiros, mediante microrreproduções, os documentos vinculados, pela origem ou pelo destino, às diversas circunscrições administrativas da América portuguesa, hoje Unidades da República Federativa do Brasil.

O sonho desse sonho era tão ousado, que parecia improvável conseguir, um dia, concretar o fluido de um outro sonho esculpido, sonho que havia e que vinha / com a propriedade mágica / de refletir o melhor, e, por isso mesmo, tão desafiador quanto fascinante. E tão fascinante quanto desafiador, que na caravela onírica dessa bem-aventurada aventura logo embarquei por marinheiro voluntário, convencido da certeza pessoana de que Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

Sob o nome prestigioso e emblemático de Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, o sonho começou a tornar-se realidade a partir de Minas Gerais. Tomei conhecimento detalhado desse fato quando, de passagem pelo Rio de Janeiro, conversei com Esther Bertoletti, que instou comigo para conseguir no Maranhão um patrocínio, pequeno que fosse, porém capaz de dar por iniciada a parte maranhense do Projeto e, assim, lutar para torná-lo irreversível.

Voltei a São Luís desafiado pela idéia auspiciosa. E logo intuí que o empresário Carlos Gaspar, membro da Academia Maranhense de Letras e ex-professor no Curso de História da Universidade Federal do Maranhão, pela qual é licenciado, poderia ser o mecenas que eu precisava urgentemente encontrar.

Num de nossos encontros dominicais, expus-lhe o problema e tive a pronta resposta: através de uma de suas empresas, a Auvepar - Automóveis e Peças Ltda., seria doada uma quantia destinada ao início do Projeto, cuja continuidade e execução total foram custeadas com recursos do Estado, graças à clarividência da governadora Roseana Sarney, que, assim, associou seu Governo a um marco pinacular da documentação histórica do Maranhão.

Devidamente informada dessa primeira vitória, Esther Bertoletti fez questão de vir a São Luís para, numa tarde de sol no ocaso que mais parecia arrebol de alvorecer, o grupo formado por ela, por Eliézer Moreira Filho, então secretário de Estado da Cultura, e por mim, ir ao encontro de Carlos Gaspar, que reiterou seu compromisso de patrocínio. Ali mesmo, sonhamos a mais da conta, e já vimos o projeto concluído, com seus diversos resultados: reproduções dos documentos em microfilmes, CD-ROMs com a íntegra dos documentos digitalizados e o catálogo das fichas a eles correspondentes. Do último suporte fui logo nomeado editor e, conseqüentemente, o agente encarregado de captar os recursos financeiros indispensáveis ao custeio da edição.

Em dias de um mês de 2000 que não saberia precisar, Maria Raymunda Araújo, proficiente diretora do Arquivo Público do Estado do Maranhão, entregou-me o CD-ROM na versão Word, com todo o conteúdo do Catálogo.

Dei-me pressa em transferir para provas gráficas a íntegra do material digitalizado, e então tive a idéia exata de sua extensão física: eram 2.573 páginas com manchas de 19 x 19 cm, compostas no tipo Courier New, no corpo 10 para a Introdução e fichas, estas em número de 13.118, e, no corpo 9, para os índices - onomástico, toponímico e ideográfico. Material para três volumes, logo admiti. Mas também prontamente me ocorreu a idéia de economia que não prejudicasse a eficiência e eficácia do Catálogo como instrumento de trabalho do pesquisador, e ao mesmo tempo contemplasse o menor dispêndio financeiro da edição. Talvez a redução do corpo da composição até o limite do perfeitamente legível, e a ampliação do formato de modo que não dificultasse seu manuseio e ainda, quem sabe, a transformação do Catálogo em volume único, fossem
critérios a adotar, juntamente com a dispensa de tudo quanto não afetasse a integridade da obra.

Salutar, num Estado cuja carência de recursos ainda não lhe permitiu saldar a imensa dívida social, que os dispêndios não se extraviem nos descaminhos do dispensável, que em tais circunstâncias vira supérfluo. Assim, procurei dar nova disposição às fichas, que da primeira à última, deste modo se apresentavam:

00005
1616 Março 7

CARTA RÉGIA (capítulo) do rei D. Filipe II, para o vedor da Repartição da Índia, Luís da Silva, sobre a recusa de Francisco Nunes Marinho em ir para o Maranhão como provedor da Fazenda Real e em distribuir as terras pelos povoadores, tal como tinha feito o capitão-mor do Maranhão, Alexandre de Moura. (Documento em mau estado).

AHU-ACL-CU-009 Caixa: 1 Doc.: 0005

Supondo perfeitamente dispensável a inscrição do número à esquerda, posto que ele era repetido ao final do documento sumariado, e também convencido de que a linha de data, porque em negrito, poderia iniciar a descrição do documento, adotei este partido:

1616 Março 7 - CR (cap.) do rei D. Filipe II, para o vedor da Repartição da Índia, Luís da Silva, sobre a recusa de Francisco Nunes Marinho em ir para o Maranhão como provedor da Fazenda Real e em distribuir as terras pelos povoadores, tal como tinha feito o capitão-mor do Maranhão Alexandre de Moura. (Doc. em mau estado).

AHU-ACL-CU-009 Caixa: Doc.: 0005

O ganho aparentemente pequeno de uma linha é muito expressivo, porque imensamente maior, no cômputo das 13.118 fichas, sobretudo se levado em conta que a primeira página que as reproduz em colunas duplas comportou quase 24 fichas, e que a versão original, para chegar a essa quantidade, exigia 4 páginas. Com o mesmo objetivo, foram adotadas abreviaturas de uso corrente, e das quais é dado o respectivo rol, no vestíbulo do Catálogo propriamente dito.

Tudo quanto até aqui foi afirmado, e continuará a sê-lo em seguida, pode ser comprovado à vista do CD-ROM original. Para contrapeso das observações que a seguir farei, abro este parágrafo, com o fim específico de reconhecer e proclamar a admiração e o respeito que me inspira a equipe multidisciplinar formada pelos profissionais que neste Catálogo trabalharam empenhadamente, e que são, na maioria, portugueses. Eles,
embora cumprindo contratos onerosos de trabalho, como não poderia deixar de ser, deram muito de si, e talvez mais do que receberam como remuneração pelo trabalho de decifrar velhos documentos ilegíveis aos olhos de leigos, e descrevê-los sumariamente, com o que possibilitaram que se tornasse acessível aos interessados um mundo rico, pulsante e capaz de renovar significativamente a História maranhense e brasileira.

Agora, os fatos. O reiterado manuseio das provas impressas do Catálogo a ser editado, cedo mostrou-me que, para além de intervenções de natureza morfológica (determinação do formato, do tipo e do corpo da composição, e sua distribuição nas páginas etc.), todas da competência do editor, cedo mostrou-me, dizia, que algo a mais me impunha o dever e me autorizava o direito de fazer intervenções. Não as que de algum modo afetassem a incolumidade conteudística das fichas, mas as que delas expurgassem ocorrências perfeitamente compreensíveis numa equipe numerosa e que teve por tarefa sintetizar em fichas um vasto universo documental.

Incursionar nesse território, custou-me hesitações. Ao receio de exercer o papel de Pilatos no Credo, contrapôs-se-me a certeza de haver contribuído para que o Credo existisse. Pensei na inócua e oportunista função do engenheiro da obra feita, mas prontamente tomei consciência de que a obra estava, em parte, por fazer, apesar do non plus ultra “decretado” sob a fórmula que informa “haver sido acordado previamente, como norma de trabalho, que os sumários teriam suas respectivas autorias respeitadas.” (Vd. Apresentação).

Que autorias respeitar, se o exaustivo e louvável trabalho não é de autores, mas de descritores? A distinção faz-se imperativa, não para hierarquizar nem tampouco desqualificar, mas para, truisticamente, distinguir, sem valorar, funções que não podem ser confundidas.

Autor, ensina o Aurélio, é “1. A causa principal, a origem de: o autor do Universo. 2. Inventor, descobridor: o autor do sistema de propulsão a jacto. 3. Criador, instituidor, fundador: o autor do protestantismo. 4. Escritor de obra artística, literária ou científica.” [...] O mesmo Aurélio, no verbete descritor, na acepção que vai diretamente ao ponto para o caso, preleciona: “3. Docum. palavra ou expressão utilizada em indexação e tesauro para representar, sem ambigüidade, um determinado conceito.”

Embora tendo presente que o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa assinado em Lisboa a 16 de dezembro de 1990, quando e se entrar em vigor nos países lusófonos, tornará superadas certas ocorrências ortográficas do Catálogo, o fato é que o Sistema Ortográfico ainda vigente no Brasil, é de compulsória observância entre nós.

O primeiro problema que se me apresentou tinha a ver com o emprego dos acentos gráficos, que estava em desacordo com as normas brasileiras. Vime, então, compelido a substituir por acentos circunflexos os acentos agudos dos antropônimos António/Antónia, Eugénio, Estévão, Jerónimo, Possidónio e muitos outros mais; e de palavras como género, cómodo, anónimo, matrimónio e por aí vai. Diversas sequências consonânticas mudas, na pronúncia culta do Brasil, tiveram que ser eliminadas, a exemplo de acto, actual, facto, director, Inspector, protecção, efectuar, projecto, objecto, victória e casos semelhantes.

O repasse, uma a uma, das 13.118 fichas, à procura de remo¬ver delas lusitanismos ortográficos que não podiam ser deletados por um comando de busca e correção, levou-me a deparar com situações diante das quais não deveria ficar indiferente.

Casos, entre muitos outros, porque os refiro apenas exemplificativamente, de encarregue, particípio do verbo encarregar não corrente no Brasil; de terramoto ou das numerosas incidências de treslado. Essa variante arcaica de traslado, que tem a forma paralela pouco usada translado, se teve acolhida no Dicionário de Moraes, ed. de 1813, não a tem em nenhum dos três mais prestigiosos dicionários da atualidade, a saber: Aurélio, Houaiss e da Academia das Ciências de Lisboa.

E somente o último deles consigna o tantas vezes empregado aquando, porém com a observação de que é forma de uso popular. As confusões com parônimos levaram-me a corrigir a conjugação do verbo prover, tomado como se fora provir, e a distinguir iminência de eminência ou despensa de dispensa.

lntrepor e suas flexões foram corrigidas para interpor. O modo subjuntivo do verbo averiguar, flexionado como averigue, foi corrigido para averigúe. E assistir, na acepção de dar assistência a, teve sua regência compatibilizada com a dos verbos transitivos diretos. Visita de ouro, passou a visita do ouro, já que a locução adjetiva não corresponde a visita áurea, mas a visita de inspeção a embarcações, criada para fiscalizar o ouro e outros produtos procedentes da colônia. O mesmo se diga da alternada menção a Secretaria do Estado do Maranhão e a Secretaria de Estado do Maranhão, órgão este que jamais houve na estrutura administrativa colonial do Maranhão.

Como visto, as intervenções objetivaram uniformizar discrepâncias, naturais em trabalho coletivo da natureza deste. Todas, sem exceção, tiveram por fim o respeito à língua portuguesa. E o mesmo cabe dizer quanto às que extirparam milhares de lusitanismos mor Fo representados pelas construções requerimento a solicitar, decreto a nomear, carta a informar etc. etc.

As observações finais referem-se aos índices. Em todos, para evitar desperdício de espaço, indiquei com um A, posto entre os extremos de início e término, a supressão dos números intermediários das seqüências contínuas. No Índice Ideográfico, dei arranjo específico a Embarcações, enumerando-as, em seguida ao verbete genérico, pela ordem alfabética de suas denominações.

No Índice Onomástico, suprimi longas remissões repetidas uma ou duas vezes para uma única finalidade. O fato ocorria diante de personalidades distinguidas com títulos nobiliárquicos.

Sirva de exemplo o célebre ministro de D. José I, que também por motivos familiares sempre teve suas atenções particularmente voltadas para o Maranhão. Além de reunir a totalidade das remissões que lhe dizem respeito no verbete do seu nome de batismo - MELO, Sebastião José de Carvalho e -, repetia-as parcialmente em OEIRAS, Conde de, e POMBAL, marquês de. Conservei os verbetes desses títulos, porém em lugar de repetir neles as remissões que já estavam feitas em MELO, apenas indiquei - Ver MELO, Sebastião José de Carvalho e.

Critério idêntico adotei para todas as personalidades detentoras de títulos nobiliárquicos. E sem o menor prejuízo para o consulente, que terá a informação procurada diretamente no nome próprio, ou mediante a remissão a este, posta em seguida ao título. Como visto, em nada foi prejudicada a recuperação da informação, ao mesmo tempo em que houve importante economia de espaço.

Reconheço que o trabalho de ler e reler ficha por ficha, em extenuantes serões que invadiram as madrugadas, em finais de semana, feriados e pontos facultativos que como tal não me foram facultados, ocasionou, quando as interrupções se prolongaram, a perda do “clima” propício à continuidade da revisão, fato que certamente a prejudicou, além de retardar consideravelmente a publicação deste Catálogo.

Cabe consignar meus sinceros agradecimentos à presteza com que Maria Raymunda Araujo respondeu às minhas consultas, e ao decisivo apoio que para o custeio desta edição recebi do poeta Luís Henrique de Nazaré Bulcão, presidente da Fundação Cultural do Maranhão, e do diretor-executivo daquele órgão, professor Antônio Francisco de Sales Padilha.

Encerro este relato de atividades certo de que nele disse o necessário sobre mais um serviço prestado à minha terra natal, à qual Mais servira, se não fora / Para tão longo amor tão curta a vida! E tenho por única recompensa, pois outra não recebi nem postulei, a convicção de que contribuí para tornar melhor este vasto repositório de pistas que muito úteis haverão de ser aos que se dedicam à História do Maranhão.
Laus Deo.

São Luís do Maranhão, Jardim Renascença, dezembro de 2002; Ano-Sousândrade e 94° da Fundação da Academia Maranhense de Letras.

NOTA:

* Em 1980 também reeditei fac-similarmente, pelas Edições Sioge, estes jornais e revislas literários: O Censor Maranhense, 1825•30; O Argas da Lei, 1825, e O Arquivo, 1846.

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