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A Princesa e o herói negro

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A Princesa e o herói negro

Como expressivo adendo a esta exposição, é oportuno transcrever, para conhecimento e admiração do público brasileiro, um interessante carteio da Princesa e de seu marido, envolvendo a figura de um jovem negro que combateu heroicamente na Primeira Guerra Mundial.

Em agosto de 1917, alistou-se como combatente voluntário da Legião Estrangeira francesa o soldado Miguel Pinto da Silva Ramos, negro nascido em Minas Gerais em 1889. Esse valoroso brasileiro foi duas vezes citado honrosamente, em seu prontuário militar, a primeira vez por ferimento, e a segunda, três dias depois, por excepcional ato de heroísmo.

Sendo Miguel neto de escravos, e sentindo particular gratidão em relação à Princesa Isabel, diversas vezes escreveu a ela e ao Conde d ́Eu, que se orgulhavam do honroso procedimento do jovem mineiro e o incentivaram a prosseguir no seu esforço de guerra. Miguel faleceu em combate, em setembro de 1918, quase no final do conflito. Um companheiro seu encaminhou à Princesa os papéis e os poucos pertences deixados pelo falecido, dizendo que cumpria assim o pedido que este lhe havia feito, caso caísse em combate. A Princesa tentou conseguir o endereço, no Brasil, da família do herói, para lhe enviar aquele tocante espólio; não o conseguindo, confiou-o ao adido militar brasileiro em Paris, tenente-coronel Alfredo Malan, pedindo seu concurso para que fosse localizada a família do falecido. A Princesa juntou, ao espólio, uma carta pessoal, dirigida à mãe de Miguel. A “Revista da Semana”, de 15-1-1921, publicou-a em fac-simile:

“27 de Outubro de 1919, Boulogne-sur-Seine
Minha prezada Senhora
Já uma vez tentei, sem resultado, escrever-lhe a fim de fazer-lhe chegar os papéis e alguma roupa tendo pertencido a seu finado querido filho Pinto da Silva. Este durante a guerra escreveu-me várias vezes e com prazer sempre recebi as cartas que dirigiu-me tão valente soldado. Um dia um dos seus amigos dos campos de batalha, por pedido dele caso fosse morto, enviou-me estas lembranças que tanto desejo lhe possam chegar! Como a Senhora perdi um filho, e avalio a sua dor! Ambos pugnaram pela grande causa com a maior valentia, ambos fizeram seu dever, ambos eram crentes, e a crença de que Deus lhes terá dado a felicidade eterna será o grande lenitivo no nosso sofrimento!
Creia em toda a minha simpatia.
a) Isabel Condessa d ́Eu.”

A mesma revista reproduz uma carta da Princesa ao soldado Miguel Pinto da Silva:

“18 de Fevereiro de 1918 – Boulogne-sur-Seine
Meu caro Miguel Pinto da Silva, calorosas felicitações do Conde d ́Eu e minhas por vossa tão bela citação que nos emocionou. Sendo Brasileira que ama a França como vós a amais, fiquei imensamente feliz com isso. O Brasil e a França estão, para nós, unidos, e vossa luta é ao mesmo tempo pelo direito e pela humanidade! Que Deus vos proteja! Vossa muito afeiçoada,
a) Isabel Condessa d ́Eu.”

Também o Conde d ́Eu se correspondeu com o voluntário mineiro:

“1o. de março de 1918
Snr. Miguel Pinto da Silva,
Faz hoje 48 anos que se terminou sob meu Comando a guerra sangrenta sustentada pelas Forças Brasileiras contra o governo do Ditador do Paraguai durante mais de cinco anos! Faça ideia como devo estar velho após tão longa carreira! Não queria deixar contudo de dizer-lhe quanto prazer nos deu, à Princesa Condessa d ́Eu e a mim, o seu retrato enviado com sua carta de 21, bela fotografia que o representa como valente brasileiro, já ferido em combate e condecorado com a honrosíssima Croix de Guerre. Aproveito esta ocasião para enviar-lhe a nossa [fotografia], rodeada dos sete netinhos, tirada há menos de seis meses. Receba-a em testemunho de nossa estima pela sua coragem, e de amizade. Não deixe de enviar-nos notícias suas, principalmente quando estiver bastante restabelecido para regressar à frente como tanto deseja; e receba minhas expressões de nossos sentimentos afetuosos.
a) Gastão d ́Orleans Conde d ́Eu.
P.S. Qual é sua família e sua terra? Parece-me que é a heroica Bahia.”

No prontuário militar do soldado Miguel Pinto da Silva, no item “Ferimentos e ações dignas de nota”, havia duas citações. A primeira, datada de 5 de janeiro de 1918, informava simplesmente que fora “ferido durante as operações militares por congelamento”. O congelamento dos pés, em trincheiras cheias de lama, no rigoroso inverno europeu, causava muitas baixas. Os atingidos pela gelure corriam grave risco de necrose dos membros congelados e gangrena. Eram por isso considerados como feridos em combate, sendo recolhidos a hospitais de campanha, onde passavam por um rigoroso tratamento, que às vezes não conseguia impedir a amputação. O que impressiona no prontuário de Miguel é que, apesar de seu estado ser considerado grave, não quis ser baixado ao hospital porque sabia que estava sendo preparada uma operação militar nos dias subsequentes e não queria deixar de participar dela. Seria seu batismo de fogo. É o que dá conta a segunda citação honrosa, datada de 8 de janeiro:

“Jovem engajado voluntariamente, pela primeira vez em combate ativo. Atingido por grave acidente de congelamento dos pés, recusou ser recolhido, a fim de participar da operação do dia 8 de janeiro de 1918. Lançou-se ao ataque como se estivesse indo a uma festa. Penetrou sozinho num abrigo inimigo, onde capturou 15 prisioneiros. Foi para todos os seus camaradas um modelo de energia, força de vontade e coragem.”