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VIDA VERTIGINOSA

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VIDA VERTIGINOSA

VIDA VERTIGINOSA

A Era do Automóvel

Para que a era [do automóvel] se firmasse fora preciso a transfiguração da cidade. E a transfiguração se fez como nas feérias fulgurantes, ao tan-tan de Satanás. Ruas arrasaram-se, avenidas surgiram, os impostos aduaneiros caíram, e triunfal e desabrido o automóvel entrou, arrastando desvairadamente uma catadupa de automóveis. (...)

Graças ao automóvel a paisagem, morreu – a paisagem, as árvores, as cascatas, os trechos bonitos da natureza. Passamos como um raio, de óculos enfumaçados por causa da poeira. Não vemos as árvores. São as árvores que olham para nós com inveja. Assim o automóvel acabou com aquela modesta felicidade nossa de bater palmas aos trechos de floresta e mostrar ao estrangeiro la natureza. (...) Oh! O automóvel é o Criador da época vertiginosa em que tudo se faz de pressa. Porque tudo se faz de pressa, com o relógio na mão e, ganhando vertiginosamente tempo ao tempo. (...)

O automóvel fez-nos ter uma apudorada pena do passado. Agora é correr para frente. (...)

Automóvel, Senhor da Era, Criador de uma nova vida, Ginete Encantado da transformação urbana, Cavalo de Ulysses posto em movimento por Satanás, Gênio inconsciente da nossa metamorfose!
Págs. 3-11


Os livres acampamentos da miséria

Certo já ouvira falar das habitações do morro de Santo Antonio, quando encontrei, depois da meia noite, aquele grupo curioso – (...) [E]u percebi que estava numa cidade dentro da grande cidade.

Sim. É o fato. Como se criou ali aquela curiosa vila de miséria indolente? O certo é que hoje há, talvez, mais de quinhentas casas e cerca de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá por cima. As casas não se alugam. Vendem-se. Alguns são construtores e habitantes, mas o preço de uma casa regula de quarenta a setenta mil réis. Todas são feitas sobre o chão, sem importar as depressões do terreno, com caixões de madeira, folhas de flandres, taquarás. A grande artéria da ‘urbs’ era precisamente a que nós atravessamos.

Dessa, partiam várias ruas estreitas, caminhos curtos para casinhotos oscilantes, trepados uns por cima dos outros. (...) Nesta empolgante sociedade, onde cada homem é apenas um animal de instintos impulsivos, em que ora se é muito amigo e grande inimigo de um momento para o outro, as amizades só se demonstram com uma exuberância de abraços e pegações e de segredinhos assustadora – há o arremedo exato de uma cidade constituída.(...)

E quando de novo cheguei ao alto do morro, dando outra vez com os olhos na cidade, que embaixo dormia iluminada, imaginei chegar de uma longa viagem a um outro ponto da terra, de uma corrida pelo arraial da sordidez alegre, pelo horror inconsciente da miséria cantadeira, com a visão dos casinhotos e das caras daquele povo vigoroso, refestelado na indigência em vez de trabalhar, conseguindo bem no centro de uma grande cidade a construção inédita de um acampamento de indolência, livre de todas as leis.
Págs. 143 a 152