O colecionador e o doador: a Colecção Benedicto Ottoni
Iuri A. Lapa e Silva
Técnico em Pesquisa - Fundação Biblioteca Nacional

Um “donativo régio”. Assim o Jornal do Commercio de 8 de Julho do ano de 1911 qualificou a doação de um fantástico conjunto de livros à Biblioteca Nacional. Tratava-se de uma coleção que havia ficado conhecida dentre certos círculos intelectuais como a Bibliotheca Brasiliensi do Dr. José Carlos Rodrigues (1844-1923), nome do responsável pela reunião das obras. A partir desse dia, no entanto, esse mesmo ajuntamento passaria a se chamar Coleção Benedicto Ottoni.

Adquirida pelo industrialista Júlio Benedicto Ottoni, a coleção de José Carlos Rodrigues teve sua denominação alterada como parte do arranjo de compra. Todo o processo foi noticiado pelo Jornal do Commercio, cujo dono e redator-chefe era o próprio Dr. Rodrigues. Em uma das matérias, o diário reproduz a carta que Júlio Ottoni havia enviado ao então Diretor da Biblioteca Nacional, Manoel Cícero Peregrino da Silva (1866-1956), a fim de tratar da oferta. Nela, havia duas condições para se confirmar a doação. A primeira dizia respeito ao local em que as obras seriam guardadas. Júlio Ottoni determinou que a coleção fosse mantida em local especialmente separado, “não podendo ser desmembrada para diversas salas da Biblioteca, exceto as obras valiosas que devem ser guardadas sob chave”. Já a segunda condição remete à própria denominação que a coleção viria a possuir, e que assim conserva até hoje:

2.° A colecção terá o nome Benedicto Ottoni, de minha família. Creia V. Exa. que não é a vaidade que me leva a fixar este titulo. Quizera a princípio que a encimasse o nome do seu colecionador que, ele mesmo, recusando-a a pé firme, fez questão de que a colecção ficasse conhecida pelo nome de Brazileiros [os Benedicto Ottoni] “que tanto têm abrilhantado as letras, o progresso das ideias políticas, o do magistério, o problema da viação férrea e o da indústria, em nossa cara Pátria”.

Ainda assim, o nome de José Carlos Rodrigues não ficou totalmente excluído de seus livros. Talvez apenas uma minúcia para o observador menos atento, trata- se de um detalhe que relaciona a coleção ao seu antigo e verdadeiro dono. Lê-se nos ex-libris colados a cada um dos objetos do conjunto “Collecção Benedicto Ottoni // Organizada pelo Dr. José Carlos Rodrigues // Doação do Dr. Julio Benedicto Ottoni”.

Empreendedor do ramo do jornalismo, Rodrigues editou entre os anos de 1870 e 1879 nos Estados Unidos uma folha ilustrada chamada O Novo Mundo. Escrita em português e para o leitor brasileiro, ela tinha como objetivo apresentar aos seus patrícios as novidades e o desenvolvimento daquele país, daí o subtítulo “Periódico Illustrado do Progresso da Edade”. A imagem que acompanha o seu cabeçalho também demonstra a mesma intenção: um globo com as duas Américas artificialmente próximas, um barco à vapor saindo da América do Norte e seguindo um traçado que liga Nova York ao Rio de Janeiro. Um jornal escrito do novo mundo para o novo mundo, algo que o afasta do ideal europeu de civilização tão caro às elites brasileiras de então. Embora tenha circulado por apenas nove anos, a folha parece ter exercido certa influência dentre os brasileiros e caído no gosto de seus leitores pelo que se pode julgar da correspondência passiva de José Carlos Rodrigues. O periódico também abrigou um dos mais importantes textos de crítica, talvez o mais destacado do século XIX: a Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade, inédito publicado em 1873 por Machado de Assis, que aponta os limites do Romantismo no Brasil e novos caminhos a serem explorados.

Há quem acredite que seja possível traçar o perfil de um leitor pelos livros que ele possui. Talvez. Ao apresentarmos a faceta americana – em sentido amplo – de seu jornal, podemos perceber como J.C. Rodrigues esteve intimamente ligado a assuntos desse mundo. Os livros amealhados pelo Dr. Rodrigues ao longo de sua vida refletem a aludida postura americanista. Ele provavelmente testemunhara nos Estados Unidos a febre de compras, por parte de grandes e abastados capitalistas, do legado bibliográfico e documental do país em poder de livreiros e leiloeiros da Europa: verdadeiro processo de criação e consubstanciação material de uma tradição.

Rodrigues pôde, ele mesmo, visitar os ilustres livreiros e antiquários do Velho Mundo. Após sua temporada em Nova York e a extinção de sua folha em 1879, ele se muda para Londres, local em que exerce, para além da atividade jornalística, um curioso papel de intermediário do governo brasileiro na obtenção de vultosos empréstimos bancários para a construção de ferrovias.

Chegada a proclamação da República, Rodrigues adquire o já tradicional Jornal do Commercio em associação com outros investidores, embora ele próprio adote o cargo de redator-chefe e líder do empreendimento. Em 1890, J.C. Rodrigues assume oficialmente o periódico e o conduz por longos vinte e cinco anos. Sua verve colecionadora e sua paixão pelos livros antigos sobre as Américas atravessam todo esse período.

Ainda em 1907, antes da venda e da consequente doação à Biblioteca Nacional, Rodrigues publica um catálogo comentado de uma parte específica de sua coleção, o longamente intitulado Bibliotheca Brasiliensi: catalogo annotado dos livros sobre o Brasil e de alguns autographos e manuscriptos pertencentes a J. C. Rodrigues. Parte I. Descobrimento da America: Brasil colonial. 1492-1822. As 2646 entradas do catálogo dão uma boa idéia do que era sua coleção completa. O restante – número expressivo de cerca de dez mil obras – reportariam cronologicamente ao período do Brasil independente.

José Carlos Rodrigues não se limitava a colecionar livros. Profícuo escritor, habituado a redigir várias notícias por dia – o já mencionado periódico O Novo Mundo teve em seu início apenas o próprio como redator! –, ele aproveitava o espaço cativo de seu Jornal do Commercio para divulgar algumas de suas próprias reflexões: em certos casos, reimprimia-as em pequenos folhetos feitos de papel com maior qualidade. Um exemplo desse tipo de publicação é O descobrimento do Brasil: succinta noticia da descripção impressa mais antiga deste acontecimento – publicada em 1905. Nele, Rodrigues se imiscui em um debate sobre a autoridade do primeiro registro impresso a respeito do “descobrimento do Brasil”, demonstrando seu envolvimento com assuntos de aprofundada erudição.

Como o catálogo da Bibliotheca Brasiliensi era bastante conhecido dentre os bibliófilos – conhecido a ponto de os leiloeiros nas décadas subseqüentes à sua publicação incluírem indicações como “Not in Rodrigues” ou “Non cité par Rodrigues” em seus próprios catálogos de venda –, os connoisseurs da Biblioteca Nacional já estavam devidamente informados sobre a imponência da coleção.

No relatório das atividades da Biblioteca Nacional para o ano de 1911, o já mencionado Diretor, Manoel Cícero Peregrino da Silva, recorre a um trecho de um artigo do diplomata e historiador Oliveira Lima (1867-1928) a fim de caracterizar o valor bibliográfico da coleção doada à instituição: “Em matéria de livros primitivos, sobre a América, a collecção Rodrigues ostenta jóias de crescido preço e do mais alto interesse”. Manoel Cícero se mostra igualmente cheio de entusiasmo com a chegada dos novos livros e manuscritos:

A doação da collecção Benedicto Ottoni é um dos acontecimentos mais notáveis da história da Bibliotheca Nacional. Presente verdadeiramente régio, deu ao Sr. Dr, Julio Benedicto Ottoni o direito de ser considerado como um dos maiores bemfeitores deste estabelecimento.

Mais uma vez o termo “régio” é usado para qualificar o conjunto... Em comparação com as doações que a Biblioteca recebera ao longo de sua história, é consentido que apenas a que dom Pedro II fizera em seu exílio seria “superior” à de Julio Ottoni. A doação, no entanto, foi apenas uma pequena etapa do processo de consolidação da coleção em si. A história de sua formação e o procedimento de torná- la um conjunto coerente e coeso se confundem inevitavelmente com a trajetória de José Carlos Rodrigues. Manoel Cícero de certa forma reconhece esse processo.

Ao carinho e competência com que o bibliophilo formou durante annos paciente e intelligentemente tão admirável conjuncto de peças bibliographicas referentes ao Brasil corresponderam a generosidade e a benemerência do doador que num rasgo de patriotismo não permitiu sahisse do paiz a preciosissima collecção.

O mérito da generosa oferta parece estar dividido entre o colecionador e o doador. Talvez dividido desigualmente, de forma que o doador ganhe mais destaque em detrimento do colecionador. Essa foi uma abordagem que perpassou as matérias do Jornal do Commercio. Julio Ottoni chega a escrever o seguinte desabafo dirigido ao redator, que já não era mais o envelhecido Rodrigues:

Parece-me que se tem falado mais, do que merece, na doação, e menos no objecto doado. A Braziliana do sr. dr. José Carlos Rodrigues representa não só uma colecção de inestimável valor para o Brazil, mas ainda largas dezenas de anos de inteligente trabalho e cuidadosa dedicação.

Terminemos com as palavras do mesmo Júlio Ottoni em sua oferta à Biblioteca Nacional. A carta, escrita a 6 de Julho de 1911, levanta alguns importantes pontos que merecem ser destacados: o porquê da doação; o destino do dinheiro pago pela coleção –que seria um hospital para crianças inteiramente feito às expensas de José Carlos Rodrigues; a preocupação do colecionador com o destino e a unidade de suas obras; e, por fim, a percepção pesarosamente atual de Júlio Ottoni sobre o sustento e as possibilidades da instituição que receberia o conjunto – a Biblioteca Nacional:

Solteiro e sem filhos, temia o ilustre bibliófilo que se espalhasse a sua colecção, que conta, além dos seus 2.600 números das obras distintas sobre o Brazil colônia, mais uns 9.000 ou 10.000 do Brazil independente; e para evitar esse verdadeiro desastre, que só aproveitaria aos livreiros, pensou o sr. dr. Rodrigues em dispor da sua biblioteca num só bloco contanto que fosse para alguma instituição pública. Tendo sabido disto, e sem solicitação do dono da biblioteca, o Governo do sr. dr. Afonso Pena chegou a pedir um crédito para tal fim, mas que a Câmara dos Deputados, não sabendo do que se tratava, não votou. Mais tarde soube eu que o sr. dr. Rodrigues recebera uma proposta dos agentes de uma biblioteca nacional estrangeira para a acquisição desta preciosa colecção, mencionando um preço que, apezar de aparentemente elevado, não foi aceito.

Por essa ocasião ofereci-me ao sr. dr. José Carlos Rodrigues arranjar adquirir a sua colecção, inteira e sem reserva, constante dos seus catálogos, impresso e manuscrito, pagando-lhe o preço que para o fim de conservál-a em bloco fixara àquela biblioteca. Declarei-lhe logo que o meu intuito era duplo: primeiro, o de proporcionar-se mais meios com que estou certo alargará a utilidade do pequeno hospital que á sua custa fundou nesta Capital, e que tamanhos serviços vai prestando às crianças pobres, e, em segundo logar, o de ter a grande satisfação de vêr sua preciosa colecção recolhida no seu conjunto à nossa própria Biblioteca Nacional. Ela irá augmentar as riquezas desse grande estabelecimento que, se tem merecido a atenção de muitos Governos ao seu edifício e suas instalações, parece estar condenado à culposa negligência no que concerne o principal intuito de tais estabelecimentos, que é acquisição de material de leitura, consulta e estudo.
:: Copyright © 2010 | Fundação Biblioteca Nacional | ::