A história de uma biblioteca: a Real Biblioteca e a sina comum e apartada de Brasil e Portugal
Lilia Moritz Schwarcz
Professora titular do Departamento de Antropologia da USP

O Seiscentos português é sempre lembrado em função da riqueza e do luxo que o ouro do Brasil levou à corte portuguesa. Grandes festas, procissões, edificações majestosas como Mafra, uma corte mais mundana ... muitos eram os sinais do brilho fácil que chegava em Lisboa. Junto com tanto fausto, também a Real Biblioteca dos reis portugueses – criada pelo rei D. João I, "O Boa Memória" (1356-1433) e ampliada principalmente por D. Duarte e D. Afonso – foi sendo aumentada, bem ao gosto dos tempos: obras raras, incunábulos, códices, manuscritos, mapas, gravuras e alguns objetos para romper com a monotonia dos livros. Por essas e por outras é que a livraria real era quase um troféu, uma espécie de ícone da erudição e do conhecimento possíveis e assim acumulados.

Mas a sina dessa biblioteca iria mudar. Não só o monarca d. João morria em 31 de julho de 1755, como no sábado, 1o de novembro de 1755, dia de Todos os Santos, um grande terremoto caiu sob Lisboa. Dizia Francisco José Freire -- uma testemunha da época -- em suas "Memorias das principaes providencias que se derão no Terremoto, que padeceo a Corte de Lisboa no anno de 1755" que: "(…) às nove horas e quatro minutos da manhã, estando o Céu limpo, o ar sereno e o mar em calma, se viu Lisboa surpreendida com um Terremoto dos mais horrorosos que a tradição conserva, ou descrevem os livros. Seus efeitos provam esta verdade; porque em tão breve tempo deixou reduzidos a ruínas quase todos os edifícios da mesma Cidade, sepultando nos estragos um grande numero de seus habitadores, especialmente nos templos, que por ser dia de tanta solenidade, todos se achavam assistidos de numeroso povo".

Pouco sobrou da capital dos portugueses. Devastada rapidamente, elevava-se a mais de 30 mil o número de habitantes mortos por entre os escombros. E o que nos interessa mais de perto: o Paço da Ribeira foi destruído e, com ele, quase toda a Livraria de El Rey, que mais se parecia nesse momento com um amontoado de cinzas.

No entanto, e como vimos, logo depois do incêndio que se seguiu ao terremoto, junto com os trabalhos que começavam a reconstruir a velha Lisboa, o rei D. José I empenhou-se em resgatar as poucas sobras do fogo e em dar início a uma nova coleção. A partir da compra de acervos privados, da requisição de livros de alguns mosteiros, da incorporação de bibliotecas dos jesuítas (expulsos nessa época de Portugal e de suas colônias), ou doações (como as de Diogo Barbosa Machado e de G. Dugood), a Real Biblioteca, agora no Palácio da Ajuda, não parou de crescer, mesmo após a morte de D. José, em 1777.

Em finais do século XVIII estava recomposta. Pode-se imaginar o trabalho e quantos esforços depositavam-se a seu redor. A nova Biblioteca trazia, ainda, as aspirações dos novos tempos, e do poderoso ministro de d. José I; o marquês de Pombal. A Livraria seria então convertida numa das pontas de lança do iluminismo português, por certo paradoxal entre seus movimentos de liberdade, mas também cerceamento e censura. Os livros apreendidos eram incorporados à Biblioteca que, por sua vez, era freqüentada apenas por funcionários ou pessoas diretamente ligadas à corte.

No entanto, a sorte da política portuguesa estava também por virar. Com a morte do rei d. José e a ascensão de sua filha, d. Maria I, tudo que lembrasse a Pombal seria destituído, substituído ou postergado e o mesmo ocorreria com o destino da Real Livraria. Nessa época iniciavam-se os trabalhos de abertura de uma nova biblioteca – a Real Biblioteca Pública – instalada bem no Terreiro do Paço e organizada segundo princípios mais modernos. À frente estava Antonio Ribeiro dos Santos, um profissional acostumado com a reforma da biblioteca de Coimbra e que imprimiria nova direção aos trabalhos em Lisboa.

Mas deixemos essa disputa bibliográfica um pouco de lado, uma vez que o ambiente conturbado não deixava muito espaço para esse tipo de contenda. A política internacional andava remexida e o exército napoleônico prestes a chegar em terras portuguesas.

A viagem: homens e livros ao mar

Diante da iminente invasão das tropas francesas, em novembro de 1807, o príncipe regente de Portugal, D. João, a família real e parte da corte – uma multidão estimada entre 5 a 15 mil pessoas – embarcaram, às pressas, nos 36 navios que levantaram ferros de Lisboa rumo ao Brasil, a colônia portuguesa d'além mar. Foram quase dois meses em alto mar, intempéries, água pouca e limpeza nenhuma, piolhos, tempestades e inseguranças de todo tipo.

No entanto, a pressa do embarque, em finais de 1807, havia feito das suas, mas não impediu que, entre a multidão de nobres e muitas bagagens, viesse boa parte dos documentos políticos e administrativos do Estado lusitano. A mesma atenção não coube, porém, à Real Biblioteca. Por mais que se tenha alardeado, no navio Medusa, acondicionada precariamente, acomodou-se apenas a biblioteca do Conde da Barca. O imenso acervo ficou esquecido no porto e teve que ser guardado, novamente, às pressas.

E se a Real Biblioteca não veio junto com a corte, e restou esquecida no porto de Lisboa até voltar a seu lugar de origem, sua história ficou diretamente ligada ao fado dos Bragança que, em inícios do século XIX, lidavam com os impasses criados pela França e pela Inglaterra: as duas grandes nações que disputavam nesse contexto o controle político e econômico da Europa. E era o próprio príncipe regente quem, já em terras tropicais e dando-se conta da falta da Livraria, ordena a vinda de seus acervos de livros e documentos, como se não fosse possível governar apartado deles.

E os livros chegaram em navios. Com a segunda invasão francesa, em 1810, a partida da Real Livraria seria questão de tempo. Entraria na colônia em três remessas, como se a ilustração chegasse ao Brasil em caixotes e sem aviso expresso. Tanto esforço deveria valer a pena. Composta por dois acervos – o da Livraria do Rei e o da Casa do Infantado, este destinado ao uso dos príncipes – a Real Biblioteca era considerada na época uma das maiores e melhores bibliotecas do mundo.

O acervo não desembarcou inteiro devido às óbvias dificuldades da partida. Do que ficara, certamente bem escondido para escapar dos botins dos tempos de guerra, outro lote aportaria no Brasil em 1811, com o bibliotecário Luis Joaquim dos Santos Marrocos. Na carta de Marrocos a seu pai, em 12 de abril de 1811, durante a travessia, percebe-se as dificuldades e perigos que se avizinhavam:

Meu pai e Sr.

Esta é feita entre céu e água, sobre mil aflições, desgostos e trabalhos, quais nunca pensei sofrer; pois tendo saído da barra de Lisboa com vento de feição, mal chegamos ao mar largo, nos saltou vento de travessia, que nos impeliu para a costa de África: á vista dela passamos as Ilhas dos Açores, e as Canárias, por meio de bordagens retrógradas, que por muitas vezes chegou a suspender de todo a navegação pelas calmarias podres, misturadas com ventos contrários, que nos expunha a imensos perigos. Agora estamos na esperança de avistarmos á manhã a Ilha de Santiago, uma das de Cabo Verde, e por não deixar uma tão boa ocasião, tenho tenção de saltar em terra, não obstante os maus ares do terreno, a fim de lançar esta carta no correio, por não confiar esta empresa de outrem. Não é necessário explicar a V.M.ce o sumo cuidado em que tenho passado estes 27 dias de viagem (...) mas Deus permitirá se não aumente o desarranjo com a falta de saúde. Eu tenho passado muito incomodado da garganta, boca e olhos, de maneira que estou em uso de remédios: não tive enjôo algum ao sair da barra de Lisboa; porém causou-me a maior compaixão ver o vomitório geral da gente da fragata; pois entre 550 pessoas que aqui há, foram poucas as privilegiadas do enjôo. De noite não posso dormir mais de uma hora, porque o resto fica-me para eu pensar nos lances presentes e futuros da minha vida. Ao oitavo dia de viagem já era corrupta e podre a água de ração, de maneira que se lançam fora os bichos para poder beber-se: tem-se lançado ao mar muitos barris de carne salgada podre. Em fim tudo aqui é uma desordem, pela falta de providências em tudo: todas as cordas da fragata estão podres, menos as enxarcias; todas as velas estão avariadas, de sorte que se rasgam com qualquer viração: a tripulação não presta; e em semelhante estado ficaremos perdidos, se por nossa desgraça formos acometidos de algum temporal rijo. Não há botica suficiente para os doentes, pois não consta mais do que meia dúzia de ervas, sendo aqui as moléstias em abundância; não há galinhas, nem carne frescas para eles. Finalmente, para dizer tudo de uma vez, se eu soubera o estado, em que existe a Fragata Princesa Carlota, repugnava absolutamente de meter-me nela e a Livraria, e nisto mesmo faria um grande serviço a S.A.R. Apesar de tudo isto, confio na misericórdia Divina, que nos livrará dos riscos, a que estamos expostos; e a cuja providência estou entregue com a maior resignação. V.M.ce fará a bondade de me recomendar a todos os da nossa amizade; e espero me inclua nas suas orações, felicitando-me com a sua benção, rogando isto mesmo a minha Mãe e Tia, a quem não posso explicar a perturbação da minha cabeça, que às vezes chego a perder o tino, pensando como e quando as chegarei a ver. Espero que V.M.ce me escreva, logo que receber esta, dirigindo-a para o Rio de Janeiro: e Sou

De V.M.ce
Filho muito afetuoso e O. o
Luiz Joaquim dos Santos Marrocos

P.S. Saudade à Mana e Ignez: e tendo tanto para dizer ainda é tal a pressa, que me obriga a levantar pena, reservando este sossego para o Rio, se Deus permitir que eu lá chegue.

É certo que o príncipe regente queria mais. Ordenou, no mesmo ano de 1811, a vinda de documentos constantes na Torre do Tombo e dos livros da Real Biblioteca Pública de Lisboa. Tal política, como sabemos, não deu certo. Porém, o que veio foi o bastante para que em 1876 Ramiz Galvão, então diretor da Biblioteca, afirmasse que naquele conjunto estavam reunidas "todas as províncias do saber humano".

Desgarrados os livros se transformaram em instituição, ainda em 1810, quando em 27 de junho o andar superior do Hospital da Ordem Terceira do Carmo foi requisitado, nos fundos da Igreja que guardava o mesmo nome. Depois de ter ficado encaixotada por mais de dois anos a Biblioteca era aberta ao público, logo em 1811, se bem que de maneira seletiva: "aos estudiosos que para isso obtinham, com facilidade, prévio consentimento régio". No entanto, já em 1814 a autorização prévia era suprimida e a o acesso ficava definitivamente franqueado ao público. Em 1819 era o próprio funcionário quem assegurava que a Biblioteca "acha-se hoje mui rica e respeitável pelas impressões e compras, que tem tido, estando toda classificada em grandes salas".

Todo cuidado era pouco diante das preciosidades guardadas nesse acervo. Para cá vieram livros de horas renascentistas, incunábulos, impressos, códices, livros de história, ciência e de filosofia, gramáticas raras e bíblias sagradas, renascentistas, partituras, libretos, vilancicos, códices, desenhos e estampas, literatura sacra, obras de autores quinhentistas portugueses, catecismos e gramáticas raras.

E para tanto não faltaram funcionários que tomaram a biblioteca como uma tarefa estratégica. Quatro homens destacaram-se nesse sentido: o frei franciscano Gregório José Viegas; o padre Joaquim Dâmaso, do Oratório de Lisboa; o frei Antônio de Arrábida, também franciscano; e o já citado Luís Joaquim dos Santos Marrocos. Os três primeiros chegaram ao Brasil junto com a família real. O último deles, Luis Marrocos, aportou em 1811, acompanhando a segunda leva de livros e peças que se destinava a complementar a Real Biblioteca. Frei Gregório e o padre Joaquim Dâmaso foram os primeiros encarregados de conservar e instalar a biblioteca e levaram o título de prefeitos, em função de seu posto elevado na hierarquia do estabelecimento. Além disso, ocuparam-se com a incorporação dos novos acervos, que iam chegando já em terras brasileiras. Aqui seria acrescida de valiosas doações (como a coleção do frei José Mariano da Conceição Veloso) e aquisições (de José da Costa e Silva e do conde da Barca). Além disso, foram introduzidas propinas – denominação da época para o recolhimento obrigatório de livros e periódicos editados em Portugal e no Brasil – bem como documentos oficiais do Estado.

Novos desafios, velhos impasses

Vale a pena perguntar, porém, porque em meio ao caos dos primeiros anos não se esquecera a Real Biblioteca. Com efeito, o que viajara junto com a família era uma espécie de "política do conhecimento": transportava-se não um amontoado de livros, mas o espírito pombalino, uma verdadeira política de Estado, a idéia de que uma biblioteca era um repositório universal de saber. A ilustração aportava definitivamente no Brasil e com ela o espírito mental dos Bragança, bem no início do agitado século XIX. Chegavam, juntos, a administração e a cultura oficial.

Nesse momento começava também essa original história brasileira, tão vinculada à vinda da família real ao Brasil. De fato, é no mínimo inusitado pensar numa colônia a sediar a capital de um império, assim como numa biblioteca que atravessou o Atlântico. Com efeito, a instalação da corte portuguesa no Brasil significou não um acidente fortuito, mas antes um momento angular da história nacional, assim como a origem de um processo singular de emancipação. Transformado em Reino Unido no ano de 1815, o Brasil distanciava-se de seu antigo estatuto colonial, ganhando uma autonomia relativa, jamais conhecida. Transplantado, o Estado português reproduziu aqui o seu aparelho administrativo. E do Rio de Janeiro, D. João, denominado "rei do Brasil", governava todo o seu Império.

Mas a história da biblioteca seria ainda conturbada. Com a Revolução Liberal do Porto, em 1820, d. João é forçado a deixar sua colônia e volta a Portugal em 1821, aonde jura a Constituição. Com ele, o próprio destino de sua Real Livraria começaria a mudar. Frei Gregório, que havia sido nomeado bispo de Pernambuco, em abril de 1820, abdica do cargo e resolve voltar à metrópole, junto com o Regente. O outro responsável, o padre Dâmaso, ficou mais uma ano; tempo suficiente para acompanhar a emancipação brasileira e ver o surgimento de uma nova liderança política: a de d. Pedro I, filho de d. João VI, que ficara na colônia.

Recusando-se a aderir ao movimento local o padre retorna a Portugal, aonde faleceria um ano depois, vítima de cólera morbus que grassava em Lisboa. A postura intransigente nos custaria, porém, caro: Dâmaso não retornaria só; levava consigo senão todos os manuscritos que lhe foram confiados, ao menos uma boa parte deles. Ou seja, dos mais de 6 mil códices existentes no acervo, o prefeito levou de volta mais de 5 mil, sobretudo aqueles referentes à história de Portugal. E queixou-se ainda de não ter conseguido carregar também os impressos.

A "disputa bibliográfica" não era, porém, um detalhe. A partir dela pode-se ter idéia da luta que deve ter sido travado no sentido de conseguir que a biblioteca voltasse a seu destino original. O fato é que essa batalha o Brasil ganhou, mas tudo isso nos custou bastante caro. Pagou-se duas vezes por um total de 74 mil livros que, na realidade, não chegavam a 7 mil. O valor da biblioteca virou até motivo de cláusulas e atos diplomáticos, de consolidação da emancipação. Através da Convenção Adicional ao Tratado de Paz e Amizade, de 29 de agosto de 1825, D. Pedro I, Imperador do Brasil, concordava em indenizar a família real portuguesa por seus bens e propriedades deixados no país, e entre eles constava a Real Biblioteca. Dessa maneira, se o Brasil começou sua vida independente pagando um alto preço à metrópole – dois milhões de libras esterlinas, tomadas de empréstimo à Coroa britânica, com juros de 5% ao ano – a biblioteca não ficou por menos: foi avaliado em 800 contos de réis, sendo o segundo item da "conta" que o Brasil comprometia-se a pagar a Portugal pelos "pertences" deixados na ex-colônia. Para se ter idéia, tal valor correspondia a 12,5% do total a ser pago; quatro vezes mais do que a famosa prataria da coroa, assim como 4 vezes mais do que a equipagem determinada na conta. Significava, portanto, muito e para nós muito mais.

O fato é que a Real Biblioteca passou a fazer parte do país independente, mudou de nome ao longo dos anos, assim como aos poucos novas aquisições foram adicionadas. Tal qual uma coleção de coleções, a livraria real restou como um local privilegiado onde se guardou uma história: uma certa história do saber, ou então uma história que seleciona formas de saber. A coleção representa boa parte do atual acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, que é hoje, segundo a Unesco, a oitava instituição do gênero no mundo.

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