BNDigital

Artes visuais | Raízes brasileiras: 100 anos de Frans Krajcberg

20 dez 2021

Artigo arquivado em Artes Visuais
e marcado com as tags 100 Anos de Frans Krajcberg, Artes Visuais, Frans Krajcberg, Meio Ambiente, Natureza Brasileira, Secult

Em 2017, o 15 de novembro foi, aparentemente, quase como os anteriores. Mas, naquele ano, enquanto o Brasil comemorava o 128° aniversário de sua República, uma discreta e importante chama se apagava no Hospital Samaritano de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Morria ali um sujeito que não havia nascido cá deste lado do Atlântico, mas que, afinal de contas, foi brasileiro até a alma. Nascido em abril de 1921 na longínqua Kozienice, no leste polonês, um tantinho a sudeste de Varsóvia, ele viu com jovens olhos a situação europeia embabadar com a iminência da Segunda Guerra Mundial. Bem quando Hitler estava para invadir seu país, em 1939, fugiu para a União Soviética, onde conseguiu iniciar seus estudos em artes. Judeu, teve os pais fuzilados e não escapou ao combate. Mas sempre foi mais artista do que qualquer outra coisa. Voltou ao aprendizado no pós-Guerra, e justo na Alemanha. Já tinha bagagem, mas nenhum renome quando conheceu o Brasil, em 1948. E aí, foi amor à primeira vista. Chegou até a viver numa caverna no interior de Minas Gerais, no Pico da Cata Branca, onde era conhecido como o "Barbudo das Pedras": um gringo meio maluco, ermitão, ascético, vivendo de pouca comida e banhos de rio, aperfeiçoando sua arte enquanto se fundia com pedras, troncos, terra, água, matéria orgânica. Enquanto se fundia com a vida, afinal, a vida de verdade. Até que ponto essa imersão o impactou só ele sabe, mas temos cá nossas suspeitas. Porque, quando ganhou os holofotes, atuou não só no meio das artes visuais. Antes mesmo que o ambientalismo se popularizasse, passou a imprimir em sua arte a preocupação com a degradação de biomas brasileiros. Fez e aconteceu. Denunciou queimadas. Atacou o desmatamento. Acusou a exploração de minério. Defendeu animais em perigo de extinção. Se enfiou na frente de trator para evitar obra de impacto ambiental. Desafiou poderosos. Pois é. Vivo ainda fosse em 2021, ele, Frans Krajcberg, completaria 100 anos.

***

A concepção de uma linguagem de "grito contra a barbárie", como costumava definir sua obra, começou na formação acadêmica de Frans Krajcberg, na Universidade de Leningrado, em 1940, apenas um ano depois de escapulir à invasão nazista em seu país, aos 18 anos. Seus familiares não tiveram a mesma sorte, engrossando a longa lista de vítimas do Holocausto. Com o brutal desenrolar da Segunda Guerra no leste europeu, todavia, Krajcberg teve que pegar em armas: engajou-se no Exército Vermelho em 1941, onde ficou até o término do conflito, em 1945. Foi de soldado a oficial de engenharia, dedicando-se à arte nas esporádicas horas vagas. Chegou mesmo a participar dos momentos derradeiros do Cerco de Berlim, enviado para o capitulante núcleo nazista como parte das tropas do marechal Gueorgui Júkov. Mas, finda a carnificina, deu um jeito de fugir à vida militar. Retomou os estudos se estabelecendo na Alemanha, porém à paisana e do lado de cá da recém erguida Cortina de Ferro, mais precisamente na zona estadunidense da Alemanha Ocidental. Ingressou na Academia de Belas Artes de Stuttgart, onde estudara com Willy Baumeister, importante pintor abstracionista. Não é necessário dizer que o cotidiano na semidestruída Alemanha era duro: Krajcberg até vendia uma pintura aqui e outra ali, mas se sustentava melhor com bicos como carregador de móveis e varredor de entulho.

A breve e abrolhosa nova vida em Stuttgart, afinal, permitiu o trânsito de Frans Krajcberg para terras mais ocidentais: em 1947, o jovem prodígio das artes plásticas polonesas decidiu partir para o histórico centro artístico europeu, Paris. Lá, vagando sem um tostão furado, recebeu indicação de um conhecido que trabalhava numa agência de viagens: a de acompanhar uma pessoa que viajaria a um país distante do qual nunca ouvira falar, um tal de Brasil, na exótica e misteriosa América do Sul. Sua passagem foi paga por Marc Chagall. Embora o acompanhado viesse na primeira classe do navio e o acompanhante na terceira, este ao menos podia comer à bordo: coisa que já fez a aventura valer a pena, para Krajcberg. E então, em 1948, lá estava ele, no Rio de Janeiro. Sem sequer saber como pedir uma batata em português, se abrigou numa pensão com vista para a baía de Botafogo. E se enamorou.

Frans Krajcberg viu que teria que permanecer cá em terra brasilis. Decidiu partir, então, em direção ao Eldorado dos imigrantes por estas bandas, na época: São Paulo. Com seus conhecimentos artísticos, deu um jeito de travar contato com Lourival Gomes Machado, diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, que o arrumou um serviço por lá. E aí, o jovem Frans se viu entre os seus. Fez amizade com Alfredo Volpi e Mário Zanini, com quem confeccionava azulejos com desenhos de Cândido Portinari. O problema é que, ontem, hoje e sempre, viver de arte é viver na corda bamba: quando o trampo acabou, Krajcberg ficou na pindaíba, sem eira nem beira, literalmente. O intrépido e solitário abstracionista que tinha escapado dos campos de concentração e tirombaços nazistas, ajudado a projetar pontes para ataques soviéticos, testemunhado a queda de Berlim em maio de 1945 e dado baixa do Exército Vermelho em pleno regime stalinista para viver entre os escombros de uma Alemanha devastada chegou a dormir, então, nos bancos da Praça da República de Sampa. Quem interveio foi ninguém menos que Lasar Segall, também judeu egresso do leste europeu. Aqui já estabelecido, o pintor, gravurista e escultor de origem lituana lhe arranjou um emprego em Monte Alegre, no interior do Paraná, na fábrica de papel da família Klabin. Depois dessa experiência, a vida de Frans Krajcberg jamais seria como antes.

***

Foi no Paraná que, enfim, Frans Krajcberg travou contato com a terra brasileira, vermelha que só. Na Klabin atuou como como técnico em desenho, carpinteiro e ceramista. Fruto de seu trabalho por lá, construiu uma casa no meio do mato, onde organizou uma grande coleção de orquídeas, bem ao gosto krajcbergiano. Mas, segundo dizia, por mais que a admirasse, ainda mais depois de ver tanta barbaridade, nessa época ainda não entendia, exatamente, a floresta brasileira. Talvez porque vivesse entre pinheiros de procedência europeia para a produção de papel, prática adotada no Brasil em 1936, através do Serviço Florestal do Estado de São Paulo, e mais largamente adotadas no país em 1947, dando-se início a práticas de reflorestamento. Se não estava exatamente embrenhado na Mata Atlântica, ainda assim, em seu tempo no Paraná, o artista se descobriu mais pintor do que nunca, produzindo e pesquisando muito nesse sentido.

Nessa época, Frans Krajcberg recebeu o convite para participar da primeira Bienal de São Paulo, de 1951. Ajudou a montá-la, chefiando uma equipe de cinco operários, ao lado de Aldemir Martins, Marcelo Grassman e Guimar Morelo. Não ganhou essa, mas faturou o Grande Prêmio de Pintura Nacional da seguinte, em 1953. Foi seu batismo de fogo no restrito mercado artístico por aqui: o próximo passo, que pretendia, era o reconhecimento na Europa. Influenciado pelos horrores da Segunda Guerra, o polonês havia trabalhado com intensidade, reflexão, técnica e afinco. Seu grito estético contra a barbárie, mais tardiamente atrelado à revolta contra a violência e a indiferença que a humanidade dispensava à natureza, como se não fizesse parte da mesma, partia afinal de um profundo respeito à vida em todas as suas formas, e em comunhão com a terra. Não é de se admirar que o descortinar de um mundo novo, de natureza rica, exuberante e (mais ou menos) intocada atraísse a atenção de Krajcberg de forma decisiva. Numa visita ao Rio de Janeiro, finalmente, a floresta brasileira finalmente se descortinou a Krajcberg. E ele entendeu, com aquiescência de monge, que ela era esplendorosa.

O Brasil, sabe-se, é de enlouquecer. Ou melhor, de se apaixonar, para bem e para mal. Frans Krajcberg passou a dividir um ateliê com o escultor Franz Weissmann, outro europeu radicado nos trópicos, no Rio de Janeiro, para onde se mudou, em 1956. Um ano depois se naturalizava como brasileiro. Ainda em 1957, seu trabalho, renovado pela recente compreensão da mata brasileira, essa gigantesca e fantástica fonte de vida, se fez de uma série de telas com enormes folhas de árvores, transmutadas em signos abstratos. Foi o suficiente para garantir ao aplicado polaco novo Grande Prêmio Nacional de Pintura na IV Bienal de São Paulo. Mas, apesar do galardão, Krajcberg se sentia esteticamente limitado, em fins dos anos 1950. Decidiu que, para bem trabalhar, precisava também ver o que se produzia mundo afora, independentemente do que aparece nas limitadas bienais e mostras internacionais que cá chegavam, que só escolhiam o que se exibia por meio de comissões restritas e oficiais. Com o dinheiro do prêmio de 1957, voltou a Paris, com status totalmente diferente do que teve anteriormente na Cidade Luz. Montou uma exposição individual na Galerie XX Siècle, sua primeira por aquelas bandas, que foi um legítimo estouro. Dali, nada mais óbvio do que Frans Krajcberg integrar a representação brasileira na Bienal de Veneza de 1964, onde, merecidamente, obteve o Prêmio Comune di Venezia.

Na ocasião da grande conquista de Frans Krajcberg em 1964, a revista Manchete, tão no auge quanto o artista, passou a destacar com gáudio e pompa os louros e a obra do talento polaco-brasileiro, até então composta sobretudo de quadros em relevo, com gravuras e texturas trabalhadas com pedras, troncos, raízes e demais elementos naturais brasileiros, extraídos de forma sustentável em meios às suas andanças pelo interiorzão tupiniquim. Mas, trabalhando com o solo crestado do Nordeste brasileiro, Krajcberg começava a entrar em sua chamada segunda fase, quando já não fazia exatamente pintura, mas trabalhos com relevos naturais: sentia mesmo a necessidade de expandir seu grito para fora das quatro linhas das telas. Ou seja, a escultura era um caminho. O artista preferia se dirigir ao objeto parido pela terra para em seguida o recriar, num processo quase orgânico de amplificação, livre de qualquer amarra. Atenta, daquele momento em diante o periódico semanal de Adolpho Bloch não deixava passar em branco o sucesso do artífice visual em salões internacionais, sobretudo na França, onde sua voz se tornava proeminente. As páginas da Manchete foram em grande parte responsáveis pela popularização tanto do Krajberg artista quanto do ativista ambiental, mais tarde, aliás. Pudera: além de reconhecer o talento do polonês, algo que seria confirmado ao longo dos anos, Bloch o apoiava por ser, também, imigrante judaico do leste europeu, no caso, da Ucrânia. O segundo a ajudar Krajcberg grandemente cá nos trópicos, depois de Segall. Profunda amizade entre ambos foi estabelecida, segundo o empresário de mídia, desde a chegada do artista ao Brasil.

***

Na crista da onda após a premiação em Veneza, e com a atividade profissional fervilhando em nova fase, Frans Krajcberg trabalhou muito, constantemente cruzando a ponte França-Brasil. Quando estava por lá, não tinha pudicícias ao acusar uma verdadeira crise na arte contemporânea, cheia de artistas medíocres carregados de publicidade e cada vez mais raros jovens talentos, com minorias esnobes e palermas preferindo investir na simplória mesmice de nomes já estabelecidos há muito. Quando estava por cá, preferia encarar pura labuta nas paisagens dramáticas do cerrado e da caatinga. Não há grande documentação a respeito, mas, por aí, na segunda metade da década de 1960, depois de morar por algum tempo em Paris, Krajcberg se estabeleceu numa famigerada caverna nas cercanias do Pico da Cata Branca, em Itabirito, Minas Gerais.

Acampado para meditar, experimentar e trabalhar, vivia na solidão, feliz, na lida intensa com matéria bruta, fornecida pela natureza: fazia, sobretudo, gravuras e esculturas em pedra, além de experimentar pigmentos extraídos no local. Os banhos eram no rio, e a barba não fazia. Voltou ao Rio, depois, mas os sertões brasileiros corriam em seu sangue: constantemente partia para a imergências no Pantanal, no interior nordestino e, mais tarde, na Amazônia. Desses lugares reaproveitava matéria para suas obras - ficou mundialmente conhecido por trabalhar com troncos calcinados por queimadas, por exemplo. Pois, em suas viagens, Frans Krajcberg viu o suficiente para se revoltar. Passou a documentar não só a beleza, mas o desmatamento e o descaso com os biomas locais, em rincões distantes das vistas urbanas e dos canetaços das autoridades. Foi pouco depois de 1964, enquanto o artista tomava conta da Bienal de Veneza e os militares tomavam o poder no Brasil, que Krajcberg passou a produzir as primeiras de suas esculturas que, mais tarde, mais seriam reconhecidas como sua marca: fantasmagóricas, retorcidas e imponentes peças de madeira, coletadas já mortas para dar espaço à pastagem. Nas cidades, era assustador enfim ter a noção de como era um enorme cedro incinerado, como que capturado no instante de seu assassinato.

***

Mais ou menos ao fim dos anos 1960 a imagem de Krajcberg, como artista de rasgos militantes, começou a ganhar a grande mídia, sobretudo na Manchete, que se dedicou a documentar com frequência o auge do agora pintor, gravurista, escultor e fotógrafo, de 1965 aos final dos anos 1970. Sua popularização nesse hiato, como já apontado, foi fruto da amizade estabelecida entre o artista e o sempre antenado Adolpho Bloch. Mas há que se ter outro fator em conta: na virada entre as décadas de 1960 e 1970, os tempos eram outros. Coincidindo então com o ápice na obra de Krajcberg, as questões ambientais começavam, ainda que timidamente, a ganhar pauta na opinião pública, no mundo todo. Não que o mestre polonês-brasileiro já não estivesse falando a respeito, direta ou indiretamente. O massacre que a biodiversidade vinha sofrendo alimentava a profunda dimensão ética de sua obra visual, atenta à nova consciência coletiva: o planeta está doente, e nós, humanos, responsáveis por isso em graus diferentes, também. Como não abordar a questão?

Na Manchete de 7 de setembro de 1968, uma reportagem sobre Frans Krajcberg, que ouvia as principais ponderações do mesmo sobre a arte naquele momento e mostrava diversas imagens de seus trabalhos, não deixava de comentar a obra do artista comprada por Bloch para adornar o novo edifício da revista, recém inaugurado na Glória, bairro da Zona Sul carioca. A matéria não chegava a dar maiores contornos ecologistas à essência do escultor, deixando-os restritos à sua obra física, mas, de quebra, lançava ao público um pouco da rotina badalada do então ascendente astro das artes plásticas engajadas:


Em um dos andares do novo edifício-sede da Manchete, Krajcberg volta-se atentamente para o tronco retorcido que tem à sua frente. Apalpa-o como se fosse um ser vivo. Pensa no que deverá acrescentar ou eliminar para que a árvore ganhe vida artística, para que ela se torne uma realidade e uma fantasia brasileiras. Daqui a pouco ele partirá de novo. Irá à Holanda para expor no Museu Philips e a Jerusalém mostrar, no Museu de Arte Moderna, os troncos que têm vida.


***

Embora tenha se naturalizado como brasileiro em 1957, pouco depois de ter residência no Rio, onde dividia ateliê com Weissmann, após intensa atividade profissional na década de 1960, quando às vezes passava mais tempo acima do que abaixo da linha do Equador, Frans Krajcberg fincou pé definitivamente no Brasil, em 1972. Dessa vez, em nenhuma caverna, mas na cidade de Nova Viçosa, no sul da Bahia, onde instalou o chamado Sítio Natura. Era uma área de pouco mais de 1km², entre remanescentes de Mata Atlântica e um manguezal, onde passou a viver e trabalhar, com ateliê próprio, uma estrutura piramidal rente ao chão. Chegou por lá, na verdade, a convite do amigo arquiteto, e também escultor, José Zanine Caldas, que à época sonhava em elevar Nova Viçosa à categoria de polo cultural, estabelecendo por lá uma verdadeira comunidade alternativa aplicada à produção artística de vanguarda. Foi Caldas, aliás, quem em 1980 auxiliou Krajcberg na construção de sua lendária casa, no sítio: elevada a sete metros do chão, no topo de um tronco de pequi com mais de dois metros de diâmetro, uma autêntica casa na árvore. Ao litoral de Nova Viçosa o artista mantinha sempre um olho, atento às visitas de baleias jubarte no inverno e em guarda à sensível desova de tartarugas marinhas, nas praias. Mexer com elas era comprar briga com Krajcberg. A cidade era delas, também. Das matas, idem. Foi lá em Nova Viçosa, contra a abertura de uma avenida pelas autoridades, que o notório e furibundo polonês-brasileiro certa vez chegou a deter um trator com o próprio corpo. Pois, além do campo simbólico da arte, às vezes há que radicalizar.

A consciência crítica de Frans Krajcberg, ao início dos anos 1970, respingava não só no meio ambiente, mas no meio artístico. Já de longa data o escultor denunciava o que via como decadência da arte visual contemporânea. Muitos movimentos e novos pintores surgiam, mas eram encarados por Krajcberg como fugazes, quando não medíocres. Velhos nomes já estabelecidos, por outro lado, não se arriscavam fora de fórmulas já engessadas. O alto mundo das artes plásticas migrava, aos poucos, de Paris para Londres e Nova Iorque. "A situação é cada vez pior", sintetizava, em entrevista à Manchete, em 3 de outubro de 1970. Na ocasião, Krajcberg aproveitava para detonar, sem meias palavras, a Bienal de São Paulo - e também outros salões da mesma natureza, só que gringos. Dizia, sem medo de ofender, que na Argentina e no Uruguai, ambos países sem bienais, havia artistas visuais muito superiores aos brasileiros de mesma geração. E que a Bienal paulistana, em si, havia se limitado a trazer modelos estrangeiros, para que artistas nacionais os copiassem. Ou seja, nas palavras de Krajcberg,

É um certame completamente esvaziado. Pouco importou na evolução da arte brasileira, ao menos no bom sentido. Acho até que a prejudicou. Isso deve-se ao fato de a Bienal paulista querer copiar as de Veneza e a Bienal dos Jovens, de Paris, ambas inteiramente fracassadas. É triste, mas é preciso que se diga, ver-se a Bienal paulista importar críticos estrangeiros para julgar artistas brasileiros. É triste constatar-se que os seus dirigentes não confiam e mesmo desprezam a arte brasileira, que é sempre situada por eles em posição inferior, tanto no que diz respeito ao local da nossa representação quanto nas premiações. Acho que, continuando assim, em breve, a Bienal de São Paulo sofrerá um colapso.

Cerca de cinco anos depois, na edição de 12 de abril de 1975, momento em que a ecologia se mostrava mais evidente, a Manchete tocava mais explicitamente no caráter militante da obra krajcbergiana. Por aqueles dias, o artista havia lançado um verdadeiro manifesto em sua última exposição no Brasil, intitulado "A volta à natureza", onde exprimia que o ser humano passou a temer a mesma não só porque se desacostumou a frequentá-la, mas também por haver constatado, desiludido, que sempre que "inventava" novas formas, descobria que as mesmas já existiam no meio natural, desde tempos imemoriais - o artista, no caso, é o primeiro a se assustar com isso. Entrevistado, Krajcberg tocava na degradação do meio ambiente, fazendo justiça a outro ecoartista: "Burle Marx e outros lançaram gritos de alarme, mas o país é muito grande para que esses gritos ecoem nas matas e nas mentes". E tascava, sincero como sempre:

Não o faço porque está em moda. Sempre tive a sensação de que a natureza me dá alegria. Sentia tantas possibilidades de encontrar novas formas de expressão na natureza que cada vez mais me aproximei dela - apesar de sempre fazer minha arte isoladamente. Nos últimos tempos, entretanto, os apelos para salvar a natureza vêm de todos os lados. O homem já está com medo de não mais poder respirar. Mesmo nos movimentos artísticos que simbolizam a cidade, protestam contra a poluição. Um artista, quando mostra uma lata de lixo, exprime o gesto de toda uma população que detesta latas de lixo.


***

No que pese seu espírito crítico, a bronca de Frans Krajcberg com a Bienal de São Paulo chegou à cambulhada em 1977. Há tempos descrente com relação ao evento, o escultor ficou fulo com os critérios para a premiação do certame naquele ano. Foi o estopim de rancores prévios. Em reportagem de Luiz Carlos Maciel, a Manchete de 29 de outubro de 1977 expunha: a divulgação dos selecionados para as diferentes categorias de prêmios artísticos daquela edição ocorria dentro dos conformes, numa cerimônia na mesma sala em que havia sido velado o corpo de Francisco Matarazzo Sobrinho, o criador da Bienal paulistana. Às raias do enervamento, um artista que acompanhava as listas dos admitidos, na última fileira do auditório, "Quando ouviu o seu nome, entre os classificados para o prêmio secundário, no valor de 50 mil cruzeiros, explodiu. De raiva". Era Krajcberg. Aos gritos de "chantagistas!", disparou em direção à sua área de exposição, jurando destruir, ali mesmo, ao vivo e a cores, sua obra - forçoso reconhecer que teria sido um happening e tanto. "É uma molecagem o que estão fazendo comigo", disparou, com o fígado, ao repórter. E ameaçou: "Não vim até aqui para receber prêmio de consolação. Ou o júri retira essa premiação, ou eu me retiro da Bienal".

Os mandachuvas da Bienal de 1977, pelo visto, se lembravam das fortes declarações como as que Krajcberg dera à Manchete anos antes, transcritas acima. E não arredaram. O Prêmio Ipiranga, a láurea máxima da ocasião, acabou ficando com o grupo argentino Cayac, de Victor Grippo, Fernando Benedit, Jacques Bedel, Alfredo Portillos e outros nove artistas conceituais. Eles haviam exposto, entre outras coisas, balcões cheios de batatas, ovos, bebidas e sacos de trigo, fora os pássaros engaiolados, os altares e os salames dependurados, deixando sua área na grande exposição com fumos de mercadinho do seu Manolo. Ao se dar conta do revés, Frans Krajcberg não mandou aos ares suas peças, mas, pessoalmente, retirou o que conseguiu de suas obras do pavilhão de exposições no Parque do Ibirapuera. O que não conseguiu carregar amontoou num canto, entre palavras fortes e sangue nos olhos, cercado pela perplexidade de jornalistas, colegas artistas, organizadores e admiradores. Azedou o coquetel da direção da Bienal, que acontecia naquele mesmo momento, arrebanhando graúdos comensais e eventuais ratos de boca livre para sua barafunda de protesto.

A quizomba se armou na Bienal de 1977, para Krajcberg, porque seu trabalho acabou figurando numa categoria vista como "de estímulo", mais adequada a jovens talentos. A reportagem de 29 de outubro da Manchete, um tanto favorável à ira do escultor, unilateralmente, lhe deu voz, contra a Bienal: "Acreditei nas suas propostas de renovação e acabei sendo humilhado. Ela está ainda mais acadêmica". Não deixou de alfinetar os argentinos. Ao lado de suas declarações, um texto de Flávio de Aquino, que sempre acompanhava as aventuras estéticas do artista para a revista, reforçava a sua defesa, dizendo que Krajcberg pretendia "ganhar o Prêmio Itamarati para o Brasil", e que só havia decidido participar do evento por entender que automaticamente entraria na disputa para o mesmo, e não em páreos "menores". Expunha ainda que Krajcberg alegava que sequer teve suas obras devidamente analisadas - um dos membros do júri, o italiano Tomaso Trini, aliás, o havia chocado, dizendo que sua obra estava "ultrapassada". A polêmica finalizava com palavras do próprio Adolpho Bloch, que, sem esconder sua amizade com Frans Krajcberg, ironizava, encarniçado, porém peralta: "Eu admito tudo em arte, mas essa é demais. (...) Respeito a arte e o artista mas prometo que, na próxima Bienal, vou concorrer com quilos de feijão, montes de arroz, dúzias de ovos, cebolas, alhos e bugalhos". Quando a revista chegou com essas palavras ao leitor, Frans Krajcberg já estava pescando, de volta à tranquilidade do Sítio Natura.

***

Assim como a evolução estética de Frans Krajcberg foi longa e pausadamente amadurecida, refletida com profundidade em intensas, constantes e controladas peregrinações pelas vastas paragens brutas de um Brasil natural (quase) inviolado, aos poucos, com o avançar da idade, o artista foi serenando o ânimo no espaço em que mais se nutria, sua casa nas matas de Nova Viçosa. O que não quer dizer que deixava de trabalhar: produziu peças até pouco antes do fim. Não deixava de dar entrevistas, nem de botar a boca no trombone, quando tinha a oportunidade. Laureado inúmeras vezes, feito inclusive cavaleiro da Ordem do Ipiranga pelo Governo do Estado de São Paulo, em 2009, Frans Krajcberg faleceu em 2017 quase centenário, com 96 anos. Tinha sido internado no Rio de Janeiro, para tratar de um quadro infeccioso, mas não resistiu. Cremado, como costumava acontecer com parte da majestosa flora que tanto amava, teve suas cinzas depositadas em seu próprio Sítio Natura, que, ao que há muito se diz, virará museu, depositário que é de enorme quantidade de obras acumuladas pelo artista, ao longo da vida. E que trabalhos. Abundantes, assombrosos, intensos e ricos frutos de uma vida enraizada. Bem firme.

Explore os documentos:

Em 1965, a revista Manchete expunha resultados do "dramático diálogo que Frans Krajcberg vem mantendo com a natureza brasileira":

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/65265

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/65266

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/65267

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/65268


Em 1968, após destacar exposição de Krajcberg em Paris, Manchete dá atenção à nova produção do artista, no Nordeste:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/88798

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/88799

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/88800


Em 1969, Frans Krajcberg torna-se o primeiro artista brasileiro a ter exposição individual em Jerusalém.


Em 1970, Krajcberg tem obra inaugurada no saguão do edifício de Manchete, no Rio de Janeiro, e ganha, como sempre, em entrevista, destaque da revista:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/108628

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/108629

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/108630

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/108631


No mesmo ano, a revista explora as imagens fotográficas de Krajcberg pelos grotões brasileiros:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/110145

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/110146

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/110147

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/110148


Em 1973, Krajcberg integra uma "nova era no intercâmbio cultural franco-brasileiro":

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/134941

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/134942

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/134943


Em 1975, o auge de Frans Krajcberg, em sua "grande aventura ecológica":

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/150726

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/150727

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/150728

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/150729


Em 1977, reportagem de Luiz Maciel Filho para Manchete cobre a retirada das obras de Krajcberg do pavilhão de exposições da 14ª Bienal de São Paulo, em protesto aos critérios de premiação do júri respaldado por Adolpho Bloch:

http://memoria.bn.br/docreader/004120/171785

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/171786

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/171787


Em 1980, Manchete cobre a construção da casa de Krajcberg em seu sítio, no topo de uma árvore.


Em 1983, a "arte selvagem" de Frans Krajcberg está novamente exposta em Paris, com os devidos louros:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/221348

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/221349