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História da ciência | O cientista Alexandre Fleming anuncia a descoberta da penicilina

28 set 2021

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Penicilina: do acaso ao avante

Muita gente já nasceu no hospital universitário inglês de St. Mary, em Paddington, Londres. De uma galera da realeza britânica, encabeçada pelos príncipes William e Harry, a Seal, Olivia Robertson e Kiefer Sutherland, músico, escritora e ator, respectivamente. Mas, provavelmente, e com todo o respeito, o natalício de nenhum deles foi tão importante quanto outro que se deu por ali, precisamente num 28 de setembro, como hoje. E não na maternidade do hospital, mas em seus laboratórios. Pois, sim, tratava-se de uma coisa, e não de uma pessoa. Estaríamos falando do eufórico opioide conhecido como heroína? Não, não, não, embora a droga também tenha sido criada por lá, em 1874. Estamos falando, isso sim, do grande achado do médico e bactereologista escocês Alexander Fleming, em 1928: a penicilina, uma das maiores descobertas medicinais da história da humanidade, responsável pela preservação de um número incontável de vidas, até hoje. Junto com o bioquímico Ernst Boris Chain e o farmacêutico Howard Walter Florey, Fleming, depois de uma sacação vinda do acaso, ao observar a proliferação indevida de fungos em uma experiência, foi responsável pela produção em massa o medicamento num momento para lá de conveniente, às portas da Segunda Guerra Mundial. Isso rendeu ao trio o Prêmio Nobel de Medicina e fisiologia de 1945 e, como sói acontecer pela terra da rainha, Alex acabou virando Sir. Pudera. Haveria como dimensionar o mundo de hoje sem antibióticos?

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Nascido a 6 de agosto de 1881 na cidade escocesa de Lochfield, o jovem Alexander Fleming foi estudar medicina na Universidade de Londres, onde se graduou em 1906. Mas não parou de pesquisar, mesmo com o diploma debaixo do braço. Passou a fazer parte do quadro médico do Hospital de St. Mary, até que veio a guerra, a primeira mundial. Lá, atuando nas frentes de batalha na França, ficou embasbacado com a quantidade de gente que morria não exatamente perfurada, cortada ou explodida em mil pedaços, mas por gangrena e outras infecções. Ah, como um bom antisséptico fazia falta. Findo o conflito, Fleming regressou ao St. Mary's, onde, como microbiologista, teve particular interesse em estudar potenciais bactericidas não nocivos ao ser humano. Persistente, ficou anos trabalhando nisso, numa rotina nada emocionante, mas fundamental.

Como todo bom cientista, Alex tinha duas qualidades, de sobra: paciência para longos períodos de observação e capacidade de imaginar e intuir. Seu primeiro grande descobrimento foi um tanto nojentinho, fruto do típico clima inglês, aquele úmido e cinzento, num lusco-fusco borocochô que nunca se acaba. Estava resfriado e, espirrando, seu façanhoso nariz lançou uma retumbante carga de muco, sem querer, numa placa de Petri onde uma colônia de bactérias vinha sendo cultivada com esmero. Um vacilo? No fundo, não. Ao observar a placa dias depois, Fleming notou que as bactérias tinham batido as botas. Elas consideravam o médico pestilento, ou morreram de nojo? Mais ou menos: seus carboidratos foram desintegrados pela lisozima, uma substância comumente encontrada em lágrimas e muco nasal. Até ali ninguém sabia de sua existência. Anos depois, o uso da lisozima em aplicações biomédicas seria importante no campo genético. Mas, ainda na década de 1920, no placar entre Alex e as bactérias, o primeiro acabava de marcar 1 a 0.

Não muito tempo depois, no ano da graça de 1928, um calor sobrenatural no verão varria a Inglaterra, desafiando o londrino médio a sair por aí em seus ternos e chapéu coco. Encerrado no St. Mary's, o já grisalho e quase cinquentão Fleming vinha observando uma cultura de Staphylococcus Aureus, o inconveniente bacilo da infecção generalizada. Até que, certo dia, ao chegar no laboratório, nosso heroi científico testemunhou um imprevisto e abespinhou-se todo - coisa que, para um escocês vivendo há tanto tempo em Londres, equivalia dizer que fez um leve gesto de impaciência longe de qualquer olhar. É que, mesmo com as devidas precauções, a experiência criara fungos. Esverdeou geral. Novo vacilo? Em absoluto. Novamente, Alex notou que as bactérias foram mortas, dessa vez pelo mofo, o chamado Penicillium notatum. Isolando-o, Fleming notou que havia nele uma substância capaz de acabar com a raça de muitas das bactérias que afligem a saúde humana. Tudo porque ela inibe a atuação de uma enzima que constitui a membrana celular da bactéria, que, quando tenta se dividir, fica fragilizada e estoura, vazando seu precioso citoplasma por aí. 2 a 0 de Alex Fleming. Estava descoberta a penicilina, batizada conforme a simpática forma de vida que a originou na experiência. A partir de agora o amigo leitor nunca mais ficará chateado ao notar que o pão embolorou, não é verdade?

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Constatar a penicilina num fungo é uma coisa. Produzi-la como medicamento são outros quinhentos. Foi aí que começou a verdadeira batalha de Fleming. Foram cerca de dez anos de tentativas frustradas. O bactereologista literalmente coletava todo e qualquer objeto mofado que via pela frente e o levava ao laboratório. Felizmente, colegas da Universidade de Oxford também trabalhavam nisso: Howard Florey e Ernst Boris Chain conseguiram obter 1 grama de penicilina pura em 1938. Por pura sorte, ou azar, na verdade por ironia, pouco depois começou a Segunda Guerra Mundial. Com seus primeiros pacientes tratados de forma experimental entre 1942 e 1943, a mais do que bem-vinda penicilina seria então utilizada a partir daí não só contra antigos flagelos da humanidade, um exército de doenças que vai da meningite à sífilis e às infecções em geral, mas também para amenizar a carnificina entre Aliados e potências do Eixo. Não à toa, costuma-se destacar a série de avanços tecnológicos aplicados no conflito ou gerados pelo mesmo: do uso do plástico em escala industrial à nauseabunda ideia de se valer da energia nuclear como arma de guerra. O desenho que ilustra o presente texto traz a reflexão sempre arguta do mestre cartunista J. Carlos, um dos maiores da história da imprensa brasileira: como pode a mesma comunidade científica inventar coisas que resultam tanto na penicilina quanto na bomba atômica? Deixemos os cientistas trabalhar. A ciência é legal com a gente, o problema é seu uso indevido.

Nomeado Sir pelo rei George VI, Alexander Fleming dividiu em 1945 o Prêmio Nobel de sua área com os colegas de Oxford, tanto pela descoberta quanto pela viabilização da aplicabilidade da penicilina. A façanha conjunta permitiu o ingresso da indústria farmacêutica na produção de uma série de substâncias também chamadas penicilinas, e mesmo outros tipos de medicação, voltados ao combate a diferentes enfermidades. Cerca de treze anos depois da grande descoberta de Alex Fleming, pela primeira vez, se usava o termo "antibiótico" para designar um dos recursos mais poderosos da medicina moderna. Na verdade não só poderosos, lucrativos, também: seu uso altamente difundido e indiscriminado provoca polêmicas com relação à ética na atuação de poderosas farmacêuticas e ao desenvolvimento de novas cepas bacterianas, mais resistentes aos antibióticos. No longínquo ano de 1958, a revista carioca Cruzeiro, dos Diários Associados, já apontava para ambos os problemas, em reportagem disponibilizada num dos links abaixo.

Polêmicas à parte, a César o que é de César. Recém laureado com o Nobel, o simpático escocês de cabelos brancos e gravata borboleta, gente como a gente, ganhou o mundo. Era fumante e asmático. E bem pessimista com relação aos rumos da medicina no tratamento de um grande mal: o câncer. Após uma primeira visita ao Brasil em 1946, Alexander Fleming voltou ao Brasil em 1954, ocasião em que foi recebido com todas as pompas pela alta sociedade, conforme a revista Manchete enfatizava. Lá pelas tantas, perguntado sobre como tratava seus resfriados, foi enfático: "com uma dose dupla de uísque e uma dúzia de lenços". Escocês também se vale de garrafada, pelo visto.

Explore os documentos:

Em setembro de 1945, a crítica genial de do cartunista J. Carlos na capa da revista Careta problematizava os avanços científicos da humanidade: se, por um lado, criava-se a penicilina, também se via o uso da energia nuclear como ferramenta de extermínio.

Em julho de 1954, Manchete entrevistava Alexander Fleming, em sua segunda vinda ao Brasil:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/7233

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/7234


Já em 1958, em reportagem internacional traduzida, O Cruzeiro destacava um problema: o uso indiscriminado de antibióticos favorecia o surgimento de micróbios resistentes, "colocando em perigo o milagre da penicilina":

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/203151

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/203152

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/203153


Em 1968, Manchete dava toda atenção aos 40 anos de descoberta da penicilina:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/85011

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/85012