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Literatura | Kafka ontem, hoje e amanhã

13 jul 2021

Artigo arquivado em Literatura
e marcado com as tags Franz Kafka, Literatura Mundial, Pós Modernidade, Secult

Digamos que aconteça o seguinte. O amigo leitor está tentando realizar uma compra online, em plena pandemia, e percebe que, sem explicação ou motivo algum, não pode. Depois de certo momento de desorientação e crença em falha no site, descobre que foi inserido no SPC.

Perplexo, vai atrás do nome da empresa que emporcalhou seu nome na praça. E vê que se trata de uma operadora de celular da qual nunca foi cliente. Mais perplexo ainda, liga para o SAC da empresa, só para descobrir que foi alvo de uma fraude: alguém, utilizando seu CPF e demais dados de residência e contato, contratou um serviço que nunca foi pago. A operadora tentava cobrar, mas seus telefonemas, sempre com o indefectível robô automaticamente remetendo ao telemarketing, eram constante e repetidamente ignorados pelo nosso dileto leitor, sem querer, já que não desconfiava que essa empresa nunca antes contratada o traria qualquer coisa que não uma proposta de adesão. Para explicar o ocorrido e reverter a situação, o sujeito-vítima deveria, única e necessariamente, passar por todo um labirinto no atendimento telefônico da empresa. Somente ali, qual um castelo rodeado por intransponíveis fossos em meio à bruma, o setor jurídico da mesma, dizem, poderia ser acessado, para que uma ocorrência fosse aberta pelo sistema. Mas, depois de tentativa e erro, ver-se-ia que isso não é possível. É que o lesado não é, nem nunca foi, cliente da operadora. Logo, por mais que ela tenha seu CPF, nunca o forneceu ID de usuário ou senha de acesso, coisas imprescindíveis para a resolução do problema. E fim de papo. Toda essa tecnologia. Todas essas senhas que devem ter tantos caracteres, tantas maiúsculas, tantos números e tantos símbolos. Todo o progresso e o conforto dessa chamada pós-modernidade. Tudo isso serve para quê, exatamente? Nós, que só sabemos falar de literatura, não fazemos a menor ideia. Mas, no exemplo acima, serviria para dizermos: parabéns, amigo leitor! Você atingiu uma situação legitimamente kafkiana! Franz Kafka, o sujeito que pela primeira vez colocou em prosa inquietações assim – entre muuuitas outras –, faz, em 3 de julho de 2021, 138 anos. É que, para ele, literatura era algo assim: uma descrição objetiva do absurdo. Apesar de Kafka ser datado do início do século XX, teria como ser mais atual? Pelo sim, pelo não, é bom aproveitar: felizmente, saber um pouco mais sobre o genial tcheco que escrevia em alemão não requer grandes burocracias. Basta seguir com este texto. Ao menos antes que o sistema mude de ideia.

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Filho de Julie e Hermann Kafka, este um próspero comerciante de origem judaica, Franz Kafka deu seus primeiros suspiros no dia 3 de julho de 1883, numa Praga ainda pertencente ao Império Austro-Húngaro. Como futuramente retratado em sua obra "Carta ao pai", cresceu sufocado pela figura opressora de Hermann, que era um desses sujeitos sistemáticos meio broncos, cinzentos, eternamento donos da razão, para quem apenas o sucesso material importava. Sensível, o pequeno Franz foi vivendo uma vidinha solitária, sem sal, comum e corrente, até acessar a Universidade de Praga em 1901, concluindo o curso de Direito - praticamente escolhido pelo pai - cinco anos depois. Pelo menos foi lá que travou amizade com rapazes com interesses mais próximos aos seus: Felix Weltsch, Yitzchak Lowy, Oskar Baum e Franz Werfel. E, principalmente, conheceu Max Brod, seu amigo por toda a vida, e futuro testamentário literário, além de biógrafo.

O investimento nos estudos de Kafka teria deixado seu metódico pai orgulhoso, ao menos a princípio: com o diploma debaixo do braço, Franz conseguiu um respeitável emprego de inspetor de acidentes de trabalho numa companhia de seguros italiana. Coisa que desempenhava bem, muito bem. Apesar de odiar aquilo tudo. O jovem passou a conhecer os meandros da burocracia como ninguém, ciente de que controlava a contento informações sobre a vida das pessoas à sua revelia. Por dentro, no entanto, sua alma de artista, para variar atormentada, BERRAVA. Assim mesmo, em caixa alta. A via de escape para a constante insatisfação de Franz Kafka com a vida era a literatura, paixão desde seus tempos estudantis. Desde seus dias universitários frequentava cafés e círculos da comunidade judaica de Praga voltados a discussões literárias e políticas, coisas que lhe pareciam verdadeiros oásis na árida realidade cotidiana. No entanto, dizia: “Tudo o que não é literatura me aborrece, e eu odeio até mesmo as conversas sobre literatura”.

Dono de uma curiosidade intelectual fora da curva, o jovem Kafka amava Dostoievsky, Gustave Flaubert e Piotr Kropotkin. Vegetariano, sensível ao barulho, ligado em medicina alternativa e no método Montessori de edução, se identificava, e muito, com ideias inconformistas expressas na crítica social e cultural, preocupado que era com questões sociais do momento - como a do crescente antissemitismo, que o atingia em cheio. Por volta de 1911 veio a se interessar pelo teatro e pela literatura iídiche. Ao que consta chegou mesmo a frequentar reuniões do chamado Klub Mladých, um grupo anarquista que pregava o fim do Estado, da Igreja e dos militares. Mas, embora concordasse com eles, nosso crítico problematizador tinha lá suas reservas com relação aos demais colegas de orientação ideológica, que o viam, mais ou menos acertadamente, como uma espécie de socialista. De qualquer maneira, Kafka se realizava na escrita, praticada em seu parco tempo livre. Não podia dedicar-se exclusivamente a ela, já que havia um conflito por tempo e energia entre o seu "chamado" e o seu "ganha-pão". Mas era nela, na prosa, em que colocava tudo para fora.

Em traços barrocos e góticos, decerto por influência da atmosfera medievalesca de Praga, Kafka escrevia sobre aquilo que, mais tarde, soaria como o coquetel de aflições do ser humano moderno, pego de calças curtas num mundo industrializado a ferro e fogo, entre constantes mudanças: aos poucos, dava-se a formação das sociedades de massa, com o desenvolvimento de dispositivos tecnológicos, jurídicos e administrativos capazes, em instâncias variáveis, de limitar as liberdades individuais, deixando cada cidadão deste mundo em condição análoga à de gado. Daí a exploração de temas e arquétipos específicos na obra kafkiana: situações absurdas e sem explicação, dezenraizamento social, conflitos entre pais e filhos, a subserviência cidadã involuntária, peregrinações burocráticas angustiantes e sem sentido, injustiça, figuras situadas entre missões horripilantes e a mais completa alienação, violências física e psicológica, a coisificação do homem, sensações de solidão e desamparo, o mundo dos sonhos e das demais projeções do inconsciente, o terror nonsense levado a cabo por autoridades etéreas, onipresentes e onipotentes. Não à toa, Kafka costuma nomear os protagonistas de suas histórias de "K.", nome que tanto simboliza o estar só do próprio autor como a despersonalização do indivíduo, quase anônimo, reduzido a apenas uma letra em uma sociedade de resto irracional - fora o fato de fazer referência a "kaminer", pejorativo de judeu, no leste europeu do início do século XX. Afinal, suas tramas trágicas não possuem a figura de um Cristo, um exemplar, um redentor: não existem possibilidades que não a passividade individual. Quem lê Kafka sabe que suas narrativas se dão num mundo em preto-e-branco. E que esse mundo é o de agora.

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Hoje gênio, Franz Kafka foi, em seu tempo, um esquisitão. Mas há relatos de que, apesar de ter sido um tanto inseguro com relação à forma como era encarado intelectualmente pelos demais, era um rapaz calmo e gentil, dono de um humor peculiar, seco, astuto e certeiro (como nós gostamos, aliás). Contudo, os dissabores de seu vazio rame-rame profissional faziam dobradinha com a sombra da educação severa recebida por seu pai, que não desaparecia, mesmo na idade adulta do escritor - e, em extensão à figura repressora de seu pai biológico, havia ainda outro "pai", maior, o Estado. De aflição em aflição, enfim, não deu para segurar: em 1908, oito de seus contos saíram na revista Hyperion. No ano seguinte, Kakfa publicou "Descrição de uma luta", narrativa para lá de deprê, que, assim como as anteriores, passou desapercebida.

Boa parte da crítica, lícito dizer, sequer tinha condições de compreender a nova literatura presente em sua prosa - coisa nunca antes vista, distante de quaisquer convenções estéticas ou mesmo ideológicas. Estar à frente de seu tempo, sabe-se, é difícil pacas. Tétricas eram também, portanto, as reflexões e os desabafos escritos à mão, no diário iniciado por Kafka em 1910. Letras trêmulas e nervosas, entre trechos e mais trechos rasurados.

Às angústias intelecutiais de Kafka se somavam seus desconfortos emocionais: suas infelicidades no amor. O escritor-burocrata chegou a noivar três vezes, sem ter conseguido se casar. Tímido porém mulherengo, apavorado com a possibilidade de um dia se ver sexualmente impotente e fã de pornografia, era frequentador de prostíbulos dia sim dia também - o que o deixava envergonhado, se sentindo imundo, pervertido. Acabou imprimindo uma visão objetificada da mulher em sua obra, não conseguindo se distanciar da cultura de submissão feminina, em seu tempo. Um tanto isolado e antissocial, Kafka preferia se comunicar com os outros por cartas, centenas delas, entregues com frequência a amigos e familiares, como Max Brod ou Ottla Kafka, seu irmão caçula. Felice Bauer, que conhecera em agosto de 1912, também travou intensa correspondencia com Kafka, ao longo de cinco anos. Nesse meio tempo noivaram, romperam, noivaram de novo e afinal se separaram, definitivamente. Segundo Brod, Kafka chegou a ter um filho com uma amiga de Bauer, com quem se relacionava antes dos noivados.

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Então, eis que chega o ano da graça de 1915. Um verdadeiro marco na vida do autor e, consequentemente, na história da literatura universal. Enquanto o turbilhão emocional em sua vida particular se revolvia, a Primeira Guerra Mundial comia solta - Kafka chegou a ser convocado naquele mesmo ano, mas foi liberado do serviço militar por seu trabalho ser considerado essencial no âmbito burocrático. Já no plano literário, desde o ano anterior vinha escrevendo a novela "O processo", que narra a prisão de Joseph K., sem que o mesmo soubesse os motivos da penalidade. A narrativa, repleta de delírios pesados entremeados a fatos corriqueiros, se viu abandonada em certo momento, ficando inacabada e sem título - viria a ser publicada somente em 1925, um ano após a morte do autor. Mas, se estava travado nesse trabalho, por outro lado, naquele mesmo ano de 1915 Kafka publicou seu mais famoso romance, escrito poucos anos antes: "A metamorfose".

Curta como um longo conto, a narrativa maior de Franz Kafka nos conta a respeito de Gregor Samsa, sujeito médio que, certo dia, sem mais nem menos, acordou transformado num gigantesco e repugnante inseto. O amor de sua família, que Gregor sustentava bravamente em sua dura rotina de caixeiro viajante, seria incondicional numa desventura dessas, certo? Quem dera. O rapaz se torna um fardo para os seus. A obra atualmente é lida e amada por angustiados de todos os matizes e idades: quem nunca acordou um dia se sentindo uma criatura estranha a tudo e a todos? Na real, "A metamorfose" se tratava de um piparote de kafkiano nos valores morais da respeitável família tradicional europeia de classe média. Dizem que ele e seus amigos liam o manuscrito da obra às gargalhadas. Quer dizer então que, nesse clima pesado e monótono da vida privada, o jovem que vinha provendo toda a sacra família de repente se tranforma num parasita impossibilitado de sair do quarto? Ora ora, os papéis se inverteram! Quão frágeis são os valores de segurança da sociedade burguesa! Freaks de todo o mundo, uni-vos!

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Depois de "A metamorfose", Franz Kafka publicou "O veredicto", em 1916. Tempo de felicidade? Não. Nada do que escrevia chamava a atenção, se bem que não almejasse a fama. No fim das contas, o escriba publicaria pouco em vida, vendo, na maior parte das vezes, contos seus saindo em revistas literárias. Além do mais, em 1917 foi diagnosticado com tuberculose, a doença dos artistas sensíveis. Se afastou do trabalho, submetendo-se a longos períodos de repouso. Mas, se sua atividade como escritor seguia febril, o mesmo valia para seu corpo: daí em diante Kafka passou a viver entre sanatórios e estâncias de tratamento. Por alguns meses, viveu na vila boêmia de Zürau, onde Ottla e seu genro Hermann mantinham uma fazenda. Seria, talvez, o melhor período na vida do escritor, conforme o próprio relatara, mais tarde. Escrevia regularmente em seu diário, além de conceber, ali, aquilo que mais tarde seria publicado como seu conjunto de aforismos.

Depois de travar uma curta e intensa relação com Milena Jesenská, uma jornalista e escritora que passava por uma crise em seu casamento, Kafka chegou a publicar sua "Carta ao pai" e as narrativas curtas "Na colônia penal" e "Um médico rural", na virada para a década de 1920. Foi por volta desse período em que Kafka noivou com Julie Wohryzek, uma camareira judia de inclinação sionista, pobre e de pouca instrução. Apesar de o pai de Franz rejeitar a moça, coisa que motivou a "Carta ao pai", os pombinhos chegaram a alugar um apartamento, com data marcada para o casório. Mas, por um vacilo kafkiano, a cerimônia nunca chegou a ocorrer: é que pouco antes da boda o escritor havia travado relações com outra mulher. Por algum tempo, o escritor viveu em Berlim com Dora Diamant, amante de nome arrebatedor que o ajudou a queimar muitos de seus manuscritos.

Cada vez mais adoentado, em 1922 Kafka deixava definitivamente o trabalho, como que assumindo que estava num caminho sem volta. Voltou para perto da família por algum tempo, pouco. "E como levava uma existência divina, Deus tomou-a para si e ninguém o viu mais". Franz Kafka partia desta para uma melhor em 3 de junho de 1924, internado numa clínica nos arredores de Viena, na Áustria. Exatamente um mês antes de completar 41 anos morria de inanição, já que não conseguia deglutir nada, em macabra analogia a seu conto "Um artista da fome", publicado apenas dois anos antes. Deixou outras duas obras monumentais inacabadas, além de "O processo": "Amerika ou O desaparecido", escrita em 1912 e publicada em 1927, e "O castelo", escrita em 1922 e publicada em 1926, também postumamente. O detalhe foi que em seu leito de morte estava o amigo Max Brod. Que recebeu os escritos de Kafka com um último pedido do autor: “Tudo que eu deixar deverá ser queimado sem ser lido, até à última página”. Por sorte da humanidade, o moribundo foi desrespeitado. Brod tratou do legado literário do amigo com a devida atenção, buscando edição para o que ainda não tinha vindo a lume.

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O próprio Kafka não poderia imaginar a envergadura de sua importância na literatura mundial, após sua morte. Verdadeira antena da raça, possuidor que foi de uma inteligência sensível, capaz de prever a barbárie da cvilização moderna, Kafka não viveu o suficiente para ver seus livros queimados em praça pública pela Alemanha nazista, nem proibidos pelo bloco soviético. Foi também poupado do Holocausto, destino que suas três irmãs mais jovens, no entanto, encararam. Em outro plano, influenciou desde o realismo mágico de Julio Cortázar e García Márquez até o existencialismo de Albert Kamus e Jean-Paul Sartre. E ainda George Orwell, Jorge Luis Borges, Èugene Ionesco, Ray Bradbury, J. M. Coetzee, José Saramago, J. D. Salinger, Haruki Murakami, Elias Canetti... Traduzido no Brasil na década de 1950, por Brenno Silveira, Kafka fez a cabeça de muitos escritores brasileiros, capitaneados por Otto Maria Carpeaux, a ponto de novas traduções, magistrais, começarem a ser feitas a partir de 1983 pelo crítico literário e professor de Literatura Alemã da Universidade de São Paulo Modesto Carone. Mas isso tudo, afinal, se restringe ao mundo literário. Há uma boa quantidade de filósofos que virou fã de carteirinha de Kafka, como Walter Benjamin, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Fora a infinidade multimídia de adaptações e inspirações da escrita kafkiana, cobrindo obras no cinema, na televisão, na ópera, no teatro, na música, nos quadrinhos e mesmo no mundo dos videogames. Aliás, falou em distopia? Falou em Kafka. Escritor de ontem, hoje e sempre. Fatalmente.

Explore os documentos:

Otto Maria Carpeaux escreve sobre Franz Kafka, em alta nos círculos intelectuais brasileiros em 1963:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/51772

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/51773