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A Correspondência de José Bonifácio nas “cartas andradinas” *

08 dez 2014

Artigo arquivado em Análise documental

As “cartas andradinas” compõem um conjunto de 69 cartas enviadas pelos três irmãos Andrada -- José Bonifácio, Martim Francisco e Antônio Carlos – ao jornalista e diplomata Antônio de Menezes Vasconcelos de Drummond, entre 1824 e 1833. Encadernadas pelo destinatário num volume único, foram confiadas à guarda do amigo de Drummond, A. J. de Mello Moraes, cujo filho, o memorialista Mello Moraes, acabou por herdá-las e, tempos depois, vendê-las à Biblioteca Nacional.

Na “Advertência” que antecede as cartas no volume XIV dos Anais da Biblioteca Nacional afirma-se que a aquisição foi feita em junho de 1883. Esse volume, impresso em 1890 pela Tipografia de G. Leuzinger e Filhos, figura até o momento como a única edição completa das cartas andradinas. As cartas originais foram restauradas e se encontram sob a guarda da Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Recentemente a coleção foi digitalizada e integra a Biblioteca Digital, disponível no site da instituição.

A correspondência dos Andradas é uma boa fonte de informação para o estudo daquele período, especialmente se tomada em conjunto com as memórias publicadas em 1861 pelo destinatário, Antônio Drummond. Segundo ele, “a vivacidade natural de José Bonifácio fazia com que na discussão dos negócios mais importantes introduzisse muitas vezes algumas facécias...”. De fato a maior parte, se não a totalidade das cartas, inclui pilhérias dirigidas ao próprio Antônio Drummond, nas quais se refere à vida doméstica, a sua esposa (“minha mulher agradece a encommenda das travessas, e diz que lhe mande a conta, porque não quer ser caloteira”), a amigos comuns, a problemas como falta de dinheiro e às dificuldades de se adaptar à vida fora do país.

A amizade tão valorizada por Drummond – muito mais jovem que José Bonifácio e que o via como uma espécie de mentor -- aparece, também de forma brincalhona, em bilhetes como o que envia após haverem ambos regressado do Brasil (Anais da Biblioteca Nacional, v. 14, p. 49):

Nhonhô Antonio.

Eu fico sozinho hoje em casa; se mecê, meu sinhozinho de França, prefere comer pirão e feijão com toucinho à Paulista aos quitutes do grandiosíssimo Senhor D. Luiz de las Panreas, cá o espero; se não, Deus ajude a mecê.

Seu muleque,
Andrada.

A ironia, o espírito crítico e a erudição de José Bonifácio transparecem principalmente quando se trata de política. Desde a primeira carta, enviada de Bordéus a 1 de setembro de 1824, até as últimas que escreveu da França, podemos acompanhar suas observações sobre os desdobramentos do processo de independência, seu reconhecimento pelas províncias e pelos países estrangeiros, os tratados e conflitos em que se envolveram o Brasil e seu jovem imperador. Exilado e inconformado com várias dessas situações, o “Patriarca da Independência” costumava usar, para se referir a seus inimigos políticos, os apelidos correntes na época, como “corcundas”, “pés de chumbo” (apelidos dos membros do “Partido Português”) ou, quando a indignação superava a verve irônica, simplesmente “Bandalhos”. Também empregava com frequência palavras que lembram a origem indígena (“incivilizada”, segundo o pensamento dominante), como “Tatamba” (“balbuciante”, “tatibitate”), termo a que recorria para se referir aos políticos antiquados. Já “Grã-pata” é utilizado para se referir ao costume do autoritário governo brasileiro de conceder, largamente, títulos à elite proprietária.

De todas as cartas de José Bonifácio, a mais significativa talvez seja a que enviou de Talance, localidade próxima a Bordéus, com data de 14 de novembro de 1825 (Anais da Biblioteca Nacional, v. 14, p. 11-14). Nela, ele tece um breve comentário sobre o tratado firmado entre o Brasil e Portugal, com a mediação da Inglaterra, no qual Portugal reconhece a independência da ex-colônia sem que os laços de sucessão ao trono sejam rompidos.

Enfim, poz o ovo a grã-pata e veiu a lume o decantado Tratado, que sahiu melhor do que esperava; - ao menos temos Independência reconhecida, bem que a soberania nacional recebeu um coice na bocca do estomago, de que não sei se morrerá, ou se se restabelecerá com o tempo; tudo depende da conducta futura dos Tatambas. Que galanteria jocosa de conservar João Burro o título nominal de Imperador, e ainda mais de convir nisso o P. malasartes! (...). O peior é, segundo os infaustos vaticínios do meu Tibiriçá, que talvez o Senhô Imperadô, para se lavar do crime de ingrato, não se lembre de mim para alguma coisa publica, o que já agora me assusta; pois o que só desejo é ir acabar os meus cansados dias de jaleco e bombachas de algodão nos meus outeirinhos.

O trecho acima condensa as opiniões de José Bonifácio em relação à política e aos membros da família real, a quem confere os mais cruéis apelidos. É especialmente severo com Pedro I, a quem condena o relacionamento com a marquesa de Santos e sua proverbial imaturidade. Para Andrada, a “Imperial criança”, como se refere a Pedro, “irá de mal a peior com a morte do Pai e com a sucessão do Throno Portuguez, de que dizia não querer nada, nada e nada.” (Anais da Biblioteca Nacional, v. 14, p. 18). Isso, porém, não impede que seu apreço pelo jovem imperador transpareça em outros momentos, como demonstra o trecho da carta de 2 de abril de 1829:

Pobre Portugal, e pobre D. Pedro, que não teve ao lado quem lhe abrisse os olhos sobre a política infernal da Europa, assim como não o teve sobre a bestial guerra de Buenos Aires! – Para que não succeda o mesmo ao sucessor do throno, grite, meu bom amigo, que lhe dêm quanto antes um aio, homem de energia, probidade e saber. Sem educação, quem nos assegura que não saia um novo D. Miguel, para infelicidade sua e do Imperio? (Anais da Biblioteca Nacional, v. 14, p. 46-47).

Não se pode, no entanto, deixar de lembrar que o próprio José Bonifácio, por escolha de Pedro I, viria a ser tutor de seu filho entre abril de 1831 e dezembro de 1833, quando então divergências com os regentes o afastaram do cargo. Mesmo assim, o jovem imperador acabou por receber excelente educação, embora mais voltada para as ciências e as humanidades do que para a política e a administração do Estado. Afinal, o próprio Bonifácio era um cientista, especialista em mineralogia e versado em vários outros campos, além de estudioso das letras. Suas cartas para Antônio Drummond mencionam a compra e a publicação de obras científicas e literárias, e em duas delas (Bordéus, 13 out. 1824; Talance, 12 jan.1827) foram transcritas odes poéticas, que Andrada publicou em 1825, na França, sob o pseudônimo árcade de Américo Elysio. Segundo estudiosos, José Bonifácio foi ainda o primeiro autor a advogar uma história da literatura de nosso país inserida na história literária portuguesa.

De tudo isso pode-se concluir que as cartas de José Bonifácio para Antônio Drummond são de extremo interesse para o pesquisador, fornecendo um retrato em cores vivas do que foram seus dias no exílio na França e oferecendo uma rica visão de suas reações a propósito dos acontecimentos políticos no Brasil, dos quais se via afastado contra a vontade. Mais do que em suas “memórias” e outros escritos, o fato de estar se dirigindo a um amigo permite enxergar, nessa correspondência, não apenas a persona política e o estudioso da ciência, mas, sobretudo, o homem que conhecemos como um dos vultos mais proeminentes da história brasileira.

* Ana Lúcia Merege é mestra em Ciência da Informação. É autora de artigos, alguns publicados em revistas como a Ciência Hoje das Crianças, do ensaio “Os Contos de Fadas: Origem, História e Permanência no Mundo Moderno” e dos romances juvenis “O Caçador”, Pão e Arte”, “O Castelo das Águias” e sua sequência "A Ilha dos Ossos", além de ter publicado contos em várias coletâneas. Trabalha no setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

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