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Acervo da BN | Há 115 anos, as piscadelas d'O Olho da Rua

04 maio 2022

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Crítica política, Imprensa Ilustrada, O Olho da Rua, Paraná, República Velha, Secult

Ah, a Bela Época. Seja nas ruas de Paris ou em pleno Rio de Janeiro da Reforma Pereira Passos, a efervescência modernizadora do mundo ocidental ao início do século XX estabeleceu padrões culturais fundamentais até para os dias de hoje. Nas revoluções sociais, tecnológicas, políticas, comportamentais e urbanísticas daquele momento, mesmo alguns rincões brasileiros não ficaram incólumes - sobretudo quando contavam com a livre circulação de periódicos locais de ênfase livre, crítica e ilustrada. Isso valeu, por exemplo, para o Paraná, como veremos hoje. Pois, há 115 anos, a revista ilustrada curitibana O Olho da Rua dava suas primeiras (e incômodas) piscadelas. Era um verdadeiro cisco nos olhos das autoridades locais, isso sim. Junto de outros impressos de humor ilustrado da capital paranaense, como A Bomba, A Carga, Prata da Casa, O Jazz, O Mensageiro de Natal e O Correio dos Ferroviários, O Olho da Rua, já que tudo via, buscava ser, na verdade, em suas caricaturas e cartuns, a voz da rua. Como diz Mariane Cristina Buso, no livro que assina junto com Aparecida Vaz da Silva Bahls, "Factos da actualidade: charges e caricaturas em Curitiba, 1900-1950", "A caricatura representa (...) a democratização da informação, pois as manifestações do cômico são interessantes às diversas camadas sociais, unindo-as num mesmo sentimento de prazer e contribuindo para educar artisticamente, já que, pela sua função social e política atingem grande popularidade". Nesse sentido, O Olho da Rua e seus congêneres eram assim: colírios para os olhos dos leitores mais atentos de seu tempo.

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O Olho da Rua foi uma revista ilustrada quinzenal de humor lançada em 13 de abril de 1907, em Curitiba (PR). Inspirada em periódicos cariocas como O Malho e Fon-Fon, vinha com capa impressa em policromia, através das rotativas Marinoni da Impressora Paranaense, sendo uma das principais revistas satíricas curitibanas do início do século XX – a ponto de ser considerada, junto com as revistas A Bomba e A Carga, uma das responsáveis pelo grande momento da caricatura na "belle époque" paranaense. Fundada e dirigida por Seraphim França, Heitor Valente, Mário de Barros e Júlio Leite, tinha os mesmos como caricaturistas e/ou redatores – função também desempenhada por Aldo Silva, Rodrigo Júnior e outros. Em comparação a experiências editoriais semelhantes, circulou por um período considerável: seu fechamento se deu após a edição de 22 de novembro de 1911.

Aparecida Vaz da Silva Bahls e Mariane Cristina Buso, no livro supracitado, sublinham algumas facetas d’O Olho da Rua: “Procurando estabelecer um jogo de palavras e de imagens, como indica o título da revista, ela se propunha a trabalhar com questões que dominavam o espaço público, como a marginalidade, a corrupção e as contradições sociais”. Para tanto, em suas capas era recorrente a presença do personagem “Zé”, figura que simbolizava a população oprimida, anônima, em suas desventuras frente à política local e nacional. Abordava-se na revista, sobretudo, a transformação da urbe curitibana na modernidade, destacando-se problemas e soluções infraestruturais, bem como a chegada de novidades na capital paranaense – como o cinematógrafo.

Além de charges, caricaturas e demais ilustrações de teor satírico, o humor d’O Olho da Rua focava política local e nacional, crítica de costumes, moralismo burguês, economia local, literatura, música, efemérides curitibanas, a vida galante local, a questão territorial que levaria à Guerra do Contestado, moda, entretenimento, variedades, etc. Publicavam-se comentários, crônicas, prosa e verso, troças e textos humorísticos em geral, partituras com valsas da moda, uma seção dedicada ao público feminino e outra ao infantil, aforismos, folhetins, serviços e indicadores, concursos, entre outras coisas. Havia ainda na revista grande quantidade de fotografias de personalidades, tipos populares, instituições, paisagens e eventos comemorativos locais, bem como muitos anúncios ilustrados.

No plano político, O Olho da Rua tinha postura abertamente liberal. Isso se via em seu franco anticlericanismo, inspirado, também, por suas ligações com a maçonaria – alguns dos colaboradores e integrantes de sua redação eram maçons. Quanto à política partidária, entre várias críticas mordazes a algumas figuras paranaenses proeminentes, O Olho da Rua satirizava o governo estadual de seu tempo, encabeçado por João Cândido Ferreira, sem deixar de atacar a figura de Vitor Ferreira do Amaral. Conforme edições como a de nº 24, de 21 de março de 1908, Aparecida Vaz da Silva Bahls e Mariane Cristina Buso expõem que, sobretudo, a revista acompanhou a manobra política que tirou João Cândido da presidência do estado:
Nesse período, a política oligárquica predominava no Paraná. De um lado, estava o Partido Conservador, formado por membros republicanos, ex-picapaus, sob a liderança de Vicente Machado e, de outro, Generoso Marques dos Santos, presidente do Partido Liberal, composto por antigos federalizas ou maragatos. A divisão entre pica-paus e maragatos sofreu um revés inesperado, em 1907, quando ocorreu a eleição do lapiano João Cândido Ferreira para a presidência do Estado. Caio Machado, filho de Vicente Machado, recém-falecido, propôs a impugnação da candidatura de João Cândido. Para tanto, foi organizada uma coligação com membros influentes da política local, com Manoel Alencar Guimarães, Presidente da Assembleia Legislativa do Estado, e o senador Francisco Xavier da Silva, dissolvendo os partidos Conservador e Liberal. A coligação foi denominada Coligação Republicana do Paraná. João Cândido, sem apoio de seus principais correligionários, viu-se obrigado a renunciar ao cargo (p. 130).

No âmbito nacional, cabe ressaltar que em 1909 Hermes da Fonseca era abertamente repudiado pela revista, que ainda satirizava com frequência o senador Pinheiro Machado, líder do Partido Republicano Conservador (PRC). Consequentemente, no plano local, o Partido Republicano do Paraná (PRP) acabava sendo atacado. Segundo uma descrição da revista O Olho da Rua no site do projeto “Revistas Curitibanas 1900-1920”,
As charges que povoavam as páginas da revista apareciam assinadas geralmente com pseudônimos. Eram recorrentes ilustrações de Herônio (pseudônimo de Mário de Barros, que eventualmente assinava também como Sá Christão), Sylvio (Aureliano Silveira), Otávio Guimarães, Paulo (Euclides Chichorro que eventualmente assinava também como Félix), Helius, Columero, Aryanos, Romão, Gil, Célio (Darvino Saldanha), Cadiz, Macedo entre outros. Sylvio e Columero se afastaram temporariamente da revista em fins de 1907 quando, por divergências entre os redatores, ocorreu a saída do poeta Rodrigo Junior e de um dos proprietários da revista, Júlio Leite (conforme noticiado na revista O Relâmpago de 11 out.1907).

Além das figuras supracitadas, O Olho da Rua publicou nomes como Silveira Netto, Euclides Bandeira (que teve os pseudônimos de Helio, Gil, Gil Pachola, Shop Nhauer, Diavolo e Ruy Pacheco), Hélia Layr, Miranda Rosa Júnior, Jansen de Capistrano, Emiliano Pernetta, Adolpho Werneck, Gilberto Beltrão, José Gelbcke, Victor Paolo, Ricardo de Lemos, Záz, Mendes, Juca, Belmiro Braga, Heitor Stockler, Júlio César Hauer, Ildefonso Serro Azul, Georgina Mongruel, Guerra Junqueiro, Clélio Diniz, Athur Azevedo, entre outros. Sucesso de público logo quando lançada, a revista aumentou a sua tiragem de 2 mil exemplares para 4 mil já na edição nº 2, de 27 de abril de 1907; aumentando logo em seguida também seu preço de capa, em seu nº 6, de 22 de junho, de 200 para 300 réis. Cada número vinha no formato 30 x 22 cm e cerca de 30 páginas ricamente ilustradas.

Ao longo de sua existência, a revista teve redação e administração instaladas em diversos logradouros: primeiro no nº 4 da Rua Ébano Pereira, depois no nº 5 da Rua Marechal Floriano, no nº 22 da Rua Paula Freitas, no nº 54 da Rua XV de Novembro e, por fim, no nº 14 da Rua Marechal Floriano. Com periodicidade quinzenal estável, O Olho da Rua chegou a sair semanalmente por pouco tempo, a partir de outubro de 1909 – mudança que gerou a renumeração da revista. No entanto, em data incerta posterior a edição nº 7 desta nova fase, de 27 de novembro de 1909, o semanário deixou de ser publicado. Seu retorno se deu em 27 de maio de 1911, com um novo nº 1, novamente como quinzenário, com quase 50 páginas por edição e então com “Cigara & Cia” como proprietários. Mas esse terceiro momento da revista foi o seu último: fechou definitivamente após veicular seu nº 11 do ano 4, de 22 de novembro de 1911. Passou para a história, enfim. Aos historiadores interessados, enfim, só restou queimar as pestanas em suas ricas páginas.

 

Explore os documentos:

Em O Olho da Rua número 11, do ano 1, de 7 de setembro de 1907, fazia-se alusão às dificuldades, simbolizadas por um touro, enfrentadas pelo deputado João Cândido Ferreira, interiorano da Lapa, para chegar à presidência do Paraná.

http://memoria.bn.br/DocReader/240818/293

 

Para seu número 13 do ano 1, de 12 de outubro de 1907, a revista ilustrada vinha à carga anticlerical: mostra as figuras de Euclides Bandeira e Ismael Martins afugentando sacerdotes com suas armas, as penas de tinta, ironicamente absolvidos pelo Papa Pio X.

http://memoria.bn.br/docreader/240818/352

 

Na edição número 3 do ano 1, de 11 de maio de 1907, desenho de capa de Heronio traz o personagem Zé, recorrente na imprensa ilustrada brasileira para caracterizar o popular anônimo e oprimido. Ele tenta, em atitude servil, "descalçar" o presidente estadual João Cândido da botina do saneamento básico. Cândido se negava a finalizar seu mandato, enquanto a carga tributária atrapalhava a vida de todo e qualquer Zé:

http://memoria.bn.br/DocReader/240818/49

 

Em sua edição número 24 do ano 2, O Olho da Rua ilustrava o embate entre maragatos, à esquerda, e pica-paus, à direita, na eleição que apontaria o novo presidente do Paraná, em 1908.

http://memoria.bn.br/DocReader/240818/678

 

A 15 de abril de 1908, O Olho da Rua número 26, ano 2, mostra as condições dos "dinheiros do Estado": no Paraná de então, "o pobre Thesouro geme dolorosamente na mais desgraçada miséria".

http://memoria.bn.br/docreader/240818/726