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Acervo da BN |Maria Graham e o olhar sobre as mulheres escravizadas

14 dez 2021

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags 1821, Iconografia, Literatura de Viagem, Maria Graham, Mulheres Negras, Mulheres Racializadas, Mulheres Viajantes

Em “Olhos do Império”, Mary Louise Pratt analisa os relatos de viagem produzidos por estrangeiros em África para contrapor a figura do explorador a natureza selvagem ali encontrada. Naturalistas, botânicos, arqueólogos e artistas interpretavam o mundo inóspito e ao mesmo tempo encantador, descrevendo exaustivamente suas riquezas e sua gente. Os relatos de viagem como gênero literário e matéria científica alcançou larga circulação na Europa tamanho o interesse sobre as culturas ditas não civilizadas, fenômeno replicado nas Américas. Conforme a historiadora Miriam Moreira Leite, muitos foram os estrangeiros que aqui aportaram ao longo do XIX. Entre as mulheres, Leite contabilizou a marca de 22 viajantes,apenas 5 na primeira metade do século. Entre elas, a escritora, memorialista, desenhista, botânica e educadora Maria Graham, chegada ao Brasil em 21 de setembro de 1821.

Elaborou em aquarelas os usos e costumes das províncias, os tipos humanos, gênero amplamente reproduzido no XIX, assim como paisagens e flora. Correspondências trocadas entre Graham e a Imperatriz Leopoldina, informavam a estreita relação com a princesa, mesmo após o retorno de Graham a Inglaterra. A amizade se desenvolveu após Graham assumir a função de preceptora da pequena Maria da Glória. Mas, é através do “Diário de uma viagem ao Brasil”, testemunho de sua passagem entre os anos de 1821 e 1823, que obtemos importante registro sócio-histórico sobre o país. Logo no prefácio, encontramos ressalva da edição sobre o conteúdo, cuja parcialidade expressa pela autora vem somente a atestar o compromisso empreendido por Graham, sem qualquer demérito aos seus esforços por retratar os fatos tais como eles são.Graham figura entre os poucos viajantes capazes de articular de forma satisfatória narrativa pessoal e dadosestatísticos sobre os locais por onde passou. O cruzamento de dados citados e transcritos e as impressões particulares, ora confirmando, ora confrontando o conjunto documental mobilizado, concorre como metodologia verificada em toda sua obra.

Sobre o registro da chegada e circulação de embarcações e escravizados, Graham admite as dificuldades quanto ao levantamento de informações seguras sobre o comércio negreiro:

Eu tenho me esforçado até aqui, sem sucesso, conseguir obter o correto número de escravos importados para todo o Brasil. Eu temia que isso seria muito improvável para mim, em função da distância de alguns portos; mas eu não descansarei enquanto não obtiver pelo menos uma declaração do número que entrou na alfândega daqui durante os últimos dois anos. O número de navios vindos da África que eu vejo constantemente entrar no porto e as multidões que se aglomeram nas casas de escravos nesta rua, me convencem que a importação deve ser muito volumosa. A proporção comum de mortes na passagem é, conforme me disseram, cerca de um para cinco.

Tempos depois relatos de Lorde Cochrane, amigo e admirador do trabalho de Maria Graham informava: “[...] de acordo com o relato obtido pela senhora Graham, 21.199 escravos foram importados pelo Rio de Janeiro, e em 1822, 24.934.” A preocupação de Graham com a escravidão está presente em boa parte do seu diário. Graham acompanharaos debatesentre as liberdades individuais e coletivas da era iluminista, cujo tópico “escravidão” apontava os prejuízos morais e mesmo econômicos face auma Europa civilizada. É notório em seus relatos o sentimento de desconforto frente a situação. Uma das estratégias de Graham ao se direcionar ao leitorcompatriota,consistia na exibição de imagens ao longo do texto. As fontesilustradasconferiam estratégia de persuasãoa fim de esclarecer sobre aquilo que é descrito. Desde a paisagem tropical exuberante as cenas deploráveis, dos ambientes insalubres dos depósitos de escravizados e maus tratos cotidianos.

O diário de Graham permite notar especial atenção sobre as mulheres, precisamente as mulheres negras, aspecto singular nos relatos de viagem do século XIX. Pouco se sabe sobre o cotidiano de mulheres negras, escravizadas ou libertas, dado o tratamento objetificado reservado a população negra em diáspora. O rastreio do cotidiano e das experiências vividas por mulheres racializadas tem sido captada através de documentação jurídica (certidões, declaração de compra e venda de cativos, registro de ofícios, autorização de trabalhos em locais públicos etc.), registros médicos, pela impressa e literatura.

Além das imagens presentes no diário da viajante inglesa (11 pranchas entre vistas e cenas do cotidiano), a iconografia de Graham conta com a produção avulsa de mais de 60 originais de arte coloridos e com temáticas diversas. Desta série, sublinhamos a produção de tipos humanos, protagonizados por mulheres negras e mulatas, definições presentes em seu relato. Adaptados ao português os títulos “vendedora de doces e utensílios”, “vendedora de peixe”, “vendedora de frutas”, “quitandeira e comerciante”, “carregadora de água” etc. são algumas das denominações atribuídas por Graham. A maioria registra mulheres, forras ou escravas de ganho localizadas no estado da Bahia. São ilustrações individuais, com exceção do desenho que traz mercadora ou comerciante junto a carregadora de água, que aparece em outra imagem individualmente. Todas são representadas com riqueza de detalhes, em especial a aquarela “Holliday Dress” (vestido de festa) finamente adornada com colares, pulseiras e uma espécie de coroa dourada sobre um turbante branco. A indumentária se completa pelo uso de sapatos, artefato raro entre mulheres negras.

A análise em conjunto desta série de desenhos guarda heterogeneidade nas feições e na fisicalidade de seus corpos. As diferenças são pontuadas tenuamente dado o traçado sutil. Não há abuso de cores vibrantes geralmente associadas à iconografia negra, salvo em duas imagens de mulheres mais retintas. Uma delas com um dos seios a mostra. A produção pictórica de Graham se diferencia da representação habitual, registrada principalmente pelos seus antecessores, por devolver certa subjetividade às mulheres. Elas não estão fadadas a meras sombras, disformes na multidão. Há variação nos tons de pele, nas cores e estampas das saias, na expressão do olhar.Apesar da semântica utilitária expressa nos títulos, trata-se de uma iconografia distante do regime classificatório, característico do racismo científico propagado pelaprodução imagética do XIX.

Assim, a diversidade dos papéis exercidos por mulheres negras e mestiças dá a ver a complexa relação entre traços étnicos e destinação das funções. Texto eimagem em Graham manifestam a estratificação social operada tanto nas plantations quanto nos espaços domésticos e urbanos. A flexibilidade das atividades proporcionava manobras para ganhos e negociações outras, como a compra de alimentos, vestes, terras, e por último e mais importante: da alforria.

A passagem a seguir versa sobre lavadeiras de Pernambuco retratadas minuciosamente por Graham:

Em torno da casa de guarda um grupo de jovens negras, de largos e rasos cestos na cabeça, vendiam frutas e água fresca. Tinham os cabelos lanudos ornados de guirlandas feitas de alteia escarlate, bem como as beiradas das cestas. Seus xales de azul claro ou brancos estavam atirados com graça por sobre os escuros ombros e as saias brancas. Era um quadro tal como os antigos espanhóis imaginariam o Eldorado.

O trecho acima recobra a atmosfera de curiosidade e admiração. A representação de umapaisagem idílica, carregada de adjetivações, de forte densidade semântica configura aparato típico da literatura de viagem. As expressões “jovens negras” e “com graça” recebem destaque pela positivação do gesto. A caracterização física e simbólica emprestada ao grupo adquire humanidade suficiente para a elevação da cena descrita como um eldorado. No entanto, cabe ressaltar que a contribuição de Graham para o deslocamento de signos de civilidade, aqui legitimado pela herança hispânica, para este grupo social,nada mais é que a transfiguração da superioridade europeia. O contraste marcado pelo xale branco sobre o ombro negro alude ao exotismo da cultura local, outro ponto constantemente compartilhado entre os exploradores do velho mundo.

Em contrapartida, Graham tende a oferecer perspectiva positivada se comparada aos demais viajantes. A retórica de compaixãofigura com frequência em seus relatos. São testemunhos que deixam entrever questões como a miscigenação das raças ou a valorização da mão-de-obra negra especializada como remédio para a escravidão.

Muitas das mulheres índias casaram-se com os portugueses crioulos; os casamentos entre mulheres crioulas e índios são mais raros. As crianças de tais uniões são mais belas e parecem mais inteligentes do que as de raça pura de qualquer dos lados.

Graham compreende a ocupação negra em terras brasileiras como fatalidade a ser solucionada. Desse modo, suas anotações se alternam entre a comiseração e a aversão à condição da “pobre raça”. Nada que impeça flagrarmos em seu discurso o tom paternalista compartilhado entre seus pares, ainda que estespor vezes imponham restrições legais à própria viajante.

A despeito das distinções de acesso e produção de saber entre homens e mulheres da sociedade letrada, amissão civilizadoravem de encontro as ações beneméritas protagonizadas por gestoras e colaboradoras de entidades pró-abolição. Ações que encontrarão respaldo em solo europeu, particularmente pelo pleito ao voto efetivamente universal. Graham pode não ter se apropriado da alcunha de abolicionista, mas o teor libertador está impresso em sua obra.

A escravidão em sua prática compulsória é atestada também entre os alforriados. Como já visto anteriormente, Graham observa a diferenciação entre negros, escravos e libertos, conforme suas ocupações, direitos e obrigações. Mas assinala que a hierarquização ocorre também de forma endêmica pela prática da servidão entre os próprios negros.Ao descrever a boa sorte de alguns libertos, nos oferece outras facetas, não apenas sobre a convivência entre negros e cativos, mas das relações afetivas entre homens e mulheres sinalizadas pelas trocas materiais. A acumulação de bens demonstra na visão de Graham signos de liberdade. Ao se se referir às libertas: “Quando elas saem, eles usam uma capa ou manto; este manto é frequentemente das cores mais alegres; sapatos também, que são a marca da liberdade, são vistos em todas as cores, menos preto”.

Outro ponto relevante consiste na interação entre a autora e os retratados.Énecessário ponderar a intensidade de alteridade expressa em Graham e o relato em si como objeto etnográfico. Apesar de reconhecer a fluidez das posições entre grupos racializados, essa mobilidade não encontra espaço nas camadas mais superiores da sociedade. Graham, enquanto mulher europeia, branca e letrada exerce distanciamento suficiente para interpretar as relações interraciais preservando o seu olhar etnocêntrico. Logo, a libertação de escravizados não rivaliza com as expectativas possíveis por ela almejada.Os trópicos permaneceriam em seu imaginário como terra precária, carecente de valores exemplares. Em correspondência com o embaixador Sir Charles Stuart dizia:

[...] na verdade mal posso me conter de ficar rindo sozinha o dia todo de tão contente de estar em casa […] em resumo poderia citar um poeta e dizer quão felizes passam os dias [num lugar como Wimpole]. Aqui não há Pretas-Anas nem Josés-Atrevidos, nossos cavalos não deitam nos riachos nem nossas árvores cheiram a alho, nem tenho eu que passear pelo campo sozinha ou conversar com embaixadores a respeito do último vestido azul de Madame de Gestas. Em resumo, estou finalmente agora num país civilizado e positivamente tentando me comportar como cristã

A passagem acima aponta para as reações controversas entre compadecer-se da vida miserável dos negros e negras ao alívio de não mais compartilhar da vil situação. De fato, se nos detivermos apenas ao relato supracitado teremos a conclusão do não envolvimento de Graham aos problemas sociais do Brasil. Por tal razão, é possível que a contrariedade expressa na correspondência se expliquemais pelas circunstâncias que causaram a destituição de Maria da função de professora da princesa e dos atritos entre visões de mundo distintas, que por simples intolerância. Após a demissão, Graham permanecera por mais um ano no bairro das Laranjeiras, voltando-se aos estudos de botânica. Além disso, seu diário conta com panorama analítico extensivo sobre o Brasil, desfazendo qualquer alusão a uma estada frustrada.

Podemos depreender, portanto, que as interações entre Graham e o país, neste particular, entre escravizadas e escravizados resultam de “zonas de contato”, para lançarmos da categoria de Pratt, cujas trocaspermitem contaminações e interferências culturais, ainda que assimétricas, dada a posição privilegiada da autora como agente emissora do discurso legitimado. As habilidades elencadas em notas comparativas, reconhecendo as especificidades funcionais dos grupos sociais denota capacidade de adaptação de Graham ao repertório linguísticoe estéticopor ela assimilado. Isso não faz de Graham uma viajante descolada da sua formação eurocentrada, mas nos auxilia a captar, ainda que parcialmente,as agências negras em suas estratégias de afirmação e sobrevivência.