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Acervo da BN | Varadouro – um jornal das selvas

17 jul 2020

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Acervo Biblioteca Nacional, Amazônia, Chico Mendes, Economia e Meio Ambiente, Meio Ambiente

Fisicamente, a Amazônia está longe da Biblioteca Nacional. Mas os milhares de quilômetros que separam ambas parecem inexistir quando acessamos conteúdos como o jornal Varadouro, nas prateleiras de nossa Coordenadoria de Publicações Periódicas. Marco da imprensa crítica da região amazônica, o combativo tabloide surgido em Rio Branco (AC), em maio de 1977, deu – e anda dá – o que falar.

Varadouro, que chegou a ser vendido por Chico Mendes, de mão-em-mão, entre seringueiros e demais trabalhadores e habitantes de Xapuri, nasceu pequeno e morreu pequeno. Fruto da empresa jornalística Macauã Produções Gráficas e Publicações Ltda., montada pelos sócios Elson Martins da Silveira, Silvio Martinello, Abrahim Farhat Neto, Luís Carvalho, Célia Pedrina Rodrigues Alves, Alberto Furtado e Arquilau de Castro Melo, funcionava no improviso. Após oito meses de preparação, o grupo teve de trazer seu maquinário do Rio de Janeiro (RJ). Para sair, a 1ª edição do jornal contou com a ajuda de Dom Moacyr Grechi, bispo de Rio Branco, que adiantou dinheiro da cúria para a estreia – as cinco primeiras edições foram financiadas pela igreja local, que não exerceu controle editorial sobre a publicação.

Denominado “Um jornal das selvas” pelo seu próprio subtítulo, Varadouro não possuía exatamente uma linguagem doutrinária à esquerda, ao contrário da maior parte dos jornais politicamente engajados da época – o que não quer dizer que não fosse visto como contrário às autoridades. De aspecto rústico e despojado, tanto graficamente quanto na escrita, Varadouro era crítico e debatedor, sem papas na língua, vindo a lume recheado de denúncias e indignações de ordem política e social. Em linguagem popular, de forma simples e direta, tocava em inúmeros temas, normalmente referentes às ameaças que sofriam a Amazônia, seus recursos naturais e seu povo. Tratava primordialmente de questões indígenas, de posseiros e grileiros, de seringueiros e demais figuras do povo amazônico, frente ao poderio de empresas agropecuárias e seus respectivos agentes – muitas vezes denominados pela gíria lo cal de “paulistas”.

De modo geral, Varadouro saía em defesa de uma compatibilização entre o crescimento econômico, a qualidade de vida e a preservação do meio ambiente na região amazônica, embora poucas alternativas de desenvolvimento sustentável fossem de fácil alcance. Isso era discutido, sobretudo, em debates e entrevistas com historiadores, sociólogos, economistas, cientistas, indigenistas, artistas, políticos e lideranças sindicais ou estudantis, entre técnicos de formações diversas. Na variedade dos temas explorados em Varadouro via-se descaso de autoridades, contrabando de produtos extraídos da região, danos sociais e ecológicos do desmatamento e de contratos de risco para exploração madeireira local, malefícios da atividade pecuária, poluição, analfabetismo, grilagem de terras, falta de infraestrutura das cidades, mobilizações populares (incluindo levantes violentos contra jagunços e empreiteiros e articulações de sindicalização de seringueiros e demais classes), campesinato na Amazônia, encontros e assembleias de lideranças indígenas, caça e pesca predatórias, reforma agrária, projetos agropastorais, projetos de assentamentos dirigidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), situação estudantil no Acre, processos de migração, greves, alimentação, naturalismo, Assembléia Nacional Constituinte, prostituição e aliciamento de menores, casos de polícia, inflação, custo de vida, miséria, os malefícios da televisão e, timidamente, futebol, cultura, lazer e homossexualidade – junto com o da maconha, o último tema fez com que a igreja retirasse seu apoio ao jornal.

Um editorial presente na edição inaugural definia Varadouro como um jornal “(...) propositalmente feito aqui, na ‘terra’. Sai, portanto, de uma forma rude, cabocla, sem técnica, cheio de limitações e gerado pela necessidade de colocar em discussão os problemas de nossa região, de nosso tempo e principalmente de nossa gente”. Em outro texto, a publicação revela ainda seu comprometimento ao “(...) índio na região, por entender que sobretudo no Acre o homem branco tem uma dívida muito grande a saldar com os povos indígenas”.

A julgar por suas manchetes de capa, alarmantes e revoltadas, “Varadouro” já dizia a que veio: “Amazônia ameaçada”, “Os índios lamentam e oferecem denúncias”, “Nóis queria um Governador que olhasse pra nossa miséria!” (manchete do nº 7, de fevereiro de 1978, que, segundo consta, fez o Governador Geraldo Mesquita chorar em uma reunião no Palácio Rio Branco), “O bairro que a cidade não quer ver”, “O consumidor acreano e a inflação galopante”, “Roteiro da prostituição”, “Os ratos ameaçam a cidade”, “Trabalhadores: se a gente se unir numa boca só...”, “Alucinações do Santo Daime”, “Mentiras sobre o índio”, “O grande mutirão contra a jagunçada”, “Seringueiro defende seu chão”, “Estão envenenando o Estado do Acre”, “Panela no fogo – barriga vazia”, etc.

Em sua 5ª edição, de novembro de 1977, o jornal deu espaço a depoimentos de acreanos à CPI da Terra, montada no Congresso. No nº 8, datado de março de 1978, deu conta da falta de contrato de trabalho e ausência de segurança preventiva para um grupo de mulheres que trabalhavam na Cerâmica Municipal. Na 10ª edição, que marca o aniversário de um ano da publicação, o tabloide expunha os métodos que a Agropecuária Cinco Estrelas S. A. utilizava para expulsar famílias do seringal Araripe, no município de Tarauacá. Na edição seguinte, de agosto de 1978, vinha uma dramática entrevista com o seringueiro Francisco Lopes dos Santos, vítima do episódio, sob o título “O diabo para quem merecer”. Esta 11ª edição ainda se notabiliza pelas denúncias do descaso do governo local frente à higiene pública, da expulsão truculenta de seringalistas acreanos da Bolívia, de episódios violentos envolvendo o delegado de polícia de Xapuri (Enoch Pessoa de Araújo) e de episódios de discriminação e exploração de povoados indígenas (os apurinã, jamamadí, kanamarí e paumarí denunciam abusos seringalistas).

A impressão de Varadouro sempre foi complicada por conta de boicotes promovidos pelas escassas gráficas da região. Chegou a ser impresso fora do Acre. Criado para ser quinzenal, uma rotina de atrasos legou à publicação uma periodicidade que girava em torno da mensalidade. No ano de 1980, a situação era crítica: apenas dois números foram publicados nesse ano, o 18, em março, e o 19, em maio (o nº 20 só apareceria em abril de 1981). Conforme explanado por um texto da edição nº 21, já de maio de 1981, adversidades mais graves foram responsáveis pelo mais severo abalo na periodicidade do jornal. Varadouro foi fechado logo depois, em dezembro de 1981, em sua 24ª edição, após constatar uma série de fatores adversos: fragilidade financeira, falta de apoio da igreja, perda de espaço para os jornais diários e uma série de ameaças a seus repórteres e editores. Curiosamente, o tabloide nunca sofrera apreensões ou censura prévia.