BNDigital

Análise documental |As câmaras municipais das vilas de índios no Ceará e o processo de independência do Brasil

02 nov 2022

Artigo arquivado em Análise documental

Os membros das câmaras municipais de vilas de índios do Ceará estiveram atentos a todos os acontecimentos que fizeram parte do processo de independência do Brasil. Além de suas prerrogativas estarem em jogo nesse futuro incerto, também acabavam se envolvendo em tramas políticas locais. Era a partir dos desafios enfrentados a nível local e provincial que se posicionavam favoráveis à causa brasílica. A postura da câmara de Vila Viçosa já era pública em dezembro de 1822, quando o juiz de fora de Parnaíba, no Piauí, oficiou “logo a implorar auxílio” ao governo cearense contra a investida das tropas fiéis a Portugal que ainda atuavam na província vizinha ao Ceará. O juiz também estendeu o pedido “às câmaras e autoridades” de diversas vilas cearenses, e dentre elas, a de Viçosa, já reconhecidamente do lado brasileiro.[1]

Com a consolidação da independência, as câmaras municipais de vilas de índios poderiam se valer das relações estreitadas com o agora imperador dom Pedro I por meio da denúncia de seus agressores. Em março de 1823, o ministro José Bonifácio fez referência a uma comunicação da câmara de Viçosa de autoria “dos principais moradores da vila, sobre as violências praticadas pelo tenente coronel Manoel Antônio e outros contra os suplicantes”. Como resposta, o monarca ordenara ao “governo provisório da província do Ceará, tomando conhecimento dos fatos, e achando justa a referida representação, conceda aos índios por sumária o terreno que julgar necessário”.[2] Diante dos costumeiros abusos dos extranaturais, os indígenas se mobilizaram administrativamente para proteger suas terras e não partiram apenas do direito que possuíam sobre elas, mas principalmente da convicção de eram capazes de geri-la para conseguir a resposta favorável do rei.

A relação harmoniosa entre os índios e o primeiro imperador do Brasil sofreu uma reviravolta a partir de novembro de 1823, com a dissolução da Assembleia Constituinte por dom Pedro I e a promulgação de uma nova Constituição em março de 1824. O ato arbitrário e a imposição do famigerado “poder moderador” receberam reações contrárias nas províncias do norte. O imperador também nomeou Pedro José da Costa Barros como novo presidente do Ceará, para a indignação dos membros do governo interino composto por lideranças do interior como José Pereira Filgueira e Tristão Gonçalves de Alencar Araripe. Estes se refugiaram nas vilas de índios de Arronches e Messejana e de lá prepararam a ação que depôs Barros em 29 de abril de 1824, substituído por Tristão Gonçalves (COSTA, 2018, p. 333-334).

O novo líder do governo cearense se opôs abertamente ao chamado “despotismo” de dom Pedro, associando o monarca e a Constituição a supostas intenções recolonizadoras de Portugal. Tratou de conclamar os habitantes da província a se oporem às ameaças externas e a reforçar a aliança com os indígenas, que retribuíram os acenos daqueles que submeteram seus antigos inimigos da capital.

Porém, meses depois, quando a derrota do movimento rebelde pelas forças de dom Pedro I era inevitável, os índios rapidamente mudaram de lado. Em relato sobre a derrota do movimento a Pedro José da Costa Barros (o presidente deposto pelos rebeldes liberais), José Félix de Azevedo e Sá (o novo presidente empossado) contou que o fugitivo Tristão Gonçalves buscou em 12 de outubro apoio em Messejana “trovejando, do que os índios em geral não faziam caso, porque não queriam pelejar pelo seu imperador”. Segundo ele, no dia 24 já haviam “levantado o estandarte imperial” as vilas de índios de Arronches, Messejana, Soure, Vila Viçosa “com 10 mil homens de arco e flecha prontos às minhas ordens” e o lugar de índios de Monte-mor Velho. Ouvira dizer o mesmo de Monte-mor o Novo, mas não tinha certeza.[3] Entre janeiro e fevereiro de 1825, as câmaras das vilas de índios de Messejana, Soure e Monte-mor Novo “se congratula[ram] e agradece[ram] a S.M.I.” por meio de ofícios “pela nomeação do presidente da respectiva província”, recebidos pelo rei em abril.[4]

Além da força da relação com o monarca, é perceptível que os indígenas priorizavam a garantia dos ganhos em cada contexto. Para proteger suas terras e suas liberdades, foram capazes de empreender a mudança radical de, em dois meses, deixar o rompimento e defender irrestritamente o imperador, cuja vitória era certa. A tradição de fidelidade à Coroa portuguesa não era mero detalhe na cultura política dos índios das vilas pombalinas, mas não representavam uma convicção ideológica mais potente do que a luta por suas prerrogativas. O ato das câmaras também não correspondia necessariamente à opinião de todos os indígenas, mas a posição política dos vereadores a partir dos dilemas que surgiam no desenrolar dos acontecimentos.

As congratulações de 1825 foram as últimas referências que encontrei na documentação às câmaras municipais de vilas de índios ainda com vereadores indígenas. Neste mesmo ano ocorreu uma seca devastadora, a primeira do império do Brasil (OLIVEIRA, 2019), provocando um desastre demográfico nas povoações indígenas com mortes e dispersões. A situação alimentou o discurso governativo de que algumas delas deveriam ser extintas e suas populações sobreviventes reunidas nos lugares que restassem. Tudo piorou ainda mais para os índios com a promulgação da lei de 1º de outubro de 1828, que restringia o acesso às câmaras municipais a partir de um critério censitário,[5] excluindo definitivamente as lideranças indígenas do Ceará dos cargos de vereador (COSTA, 2021, p. 15-20). Apenas 10 anos após a instalação das Cortes de Lisboa, as elites que comandavam o Estado brasileiro pulverizaram as prerrogativas políticas dos índios que tão intensamente se manifestaram em prol da causa brasílica.

 

Referências bibliográficas

COSTA, João Paulo Peixoto. Na lei e na guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845). Teresina: EDUFPI, 2018.

________. Os índios vereadores, a câmara de Messejana e a formação do Estado nacional brasileiro no Ceará. História (São Paulo), v. 40, 2021

OLIVEIRA, Gabriel Pereira de. “Eu não dei meu dinheiro para inglês nenhum”: o ideal de nação e a seca de 1825 no norte do Brasil. Revista de História Regional, vol. 24, n. 1, p. 160-178, 2019.

_____________________________________________________________________________________________________________________________________

[1] Do juiz de fora de Parnaíba João Cândido de Deus e Silva a José Bonifácio de Andrada e Silva. Parnaíba, 28 de dezembro de 1822. In: Império do Brasil – Diário do Governo, nº. 67, vol. 1, 24 de março de 1823, p. 286. Biblioteca Nacional, Império do Brasil: Diário do Governo (CE) – 1823 a 1833, rótulo 706752, código TRB00297.0170. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=706752&pesq=vi%C3%A7osa&pasta=ano%20182&hf=memoria.bn.br&pagfis=286

[2] De José Bonifácio de Andrada e Silva. Rio de Janeiro, 5 de março de 1823. In: Império do Brasil – Diário do Governo, nº. 70, vol. 1, 29 de março de 1823, p. 303. Biblioteca Nacional. Império do Brasil: Diário do Governo (CE) – 1823 a 1833, rótulo 706752, código TRB00297.0170. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=706752&pesq=vi%C3%A7osa&pasta=ano%20182&hf=memoria.bn.br&pagfis=303

[3] De José Félix de Azevedo e Sá a Pedro José da Costa Barros. Fortaleza, 28 de outubro de 1824. Império do Brasil – Diário Fluminense, n. 130, vol. 4, p. 536-537. Biblioteca Nacional, Império do Brasil: Diário do Governo (CE) – 1823 a 1833, rótulo 706752, código TRB00297.0170. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=706752&pesq=mecejana&pasta=ano%20182&hf=memoria.bn.br&pagfis=2548.

[4] De Estevão Ribeiro de Rezende às câmaras municipais de São Bernardo, Messejana, Soure, Monte-mor o Novo e Fortaleza. Rio de Janeiro, 29 de abril de 1825. Império do Brasil – Diário Fluminense, n. 98, vol. 5, p. 391. Biblioteca Nacional, Império do Brasil: Diário Fluminense (RJ) – 1825 a 1831, rótulo 706744, código TRB00296.0170. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=706744&pesq=soure&pasta=ano%20182&hf=memoria.bn.br&pagfis=391

[5] Lei de 1º de outubro de 1828. Dá novas formas às câmaras municipais, marca suas atribuições e o processo de sua eleição e dos juízes de paz. Disponível em: < http://planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-1-10-1828.htm >. Acesso em: 1 de novembro de 2021.