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Centenário | Jack Kerouac: o asceta maldito

15 mar 2022

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e marcado com as tags 100 Anos de Jack Kerouac, Clássicos da Literatura, Contracultura, Jack Kerouac, Literatura Moderna, Literatura Norte Americana, Secult

A gasolina anda cara? Não tem problema. Rodar apenas pelo mundo das letras é mais saudável para o planeta! Do contrário, como comemorar o aniversário de Jean-Louis Lebris de Kerouac? Um cortesão de Luís XV, decerto? Tão correto quanto dois e dois são vinte e dois: trata-se, sim, do escritor estadunidense de ascendência franco canadense nascido na pequena Lowell, em Massachusetts, em 12 de março de 1922. Mundialmente conhecido pelo seu nome artístico, Jack Kerouac completaria exatos 100 carnavais hoje, agora, neste exato momento, vivo fosse. Motivos para celebrar não faltam: o escriba - e verdadeiro herói cultural - foi uma das principais figuras da geração beat, um movimento sobretudo literário que serviu de Lua para incontáveis uivos, sobretudo por parte das goelas mais jovens, da segunda metade dos anos 1950 em diante, nos Estados Unidos. On the road (cá traduzido como Pé na estrada ou Na estrada), livro maior de Kerouac, escrito por volta de 1951 e lançado em 1957, narra em tons autobiográficos um dos momentos mais intensos da vida do autor: quando, ao lado de Neal Cassady e LuAnne Henderson, largou sua vida sem graça em Nova Iorque para cruzar o país. Totalmente sem destino. Com a grana curta. Movidos a cerveja, subtrampos temporários, benzedrina, jazz e total liberdade. Iam do jeito que dava: de carona, trem de carga ou carro, um Hudson-49 arrumando sabe-se-lá onde, talvez roubado. Com as devidas reservas à parte da intoxicação, é claro, quem nunca desejou fazer algo assim? ("Eu!", dirá o leitor de cabelo milimetricamente repartido, mas deixemos as diferenças de lado.)

Não à toa, On the road foi um livro que mudou a vida de muitos - como do jovem Bob Dylan, que ficou com vontade de fugir de casa quando o leu. Patti Smith, Francis Ford Coppola, David Bowie e Jim Morrison sentiram coceiras parecidas. Maiúscula para toda uma geração, instantaneamente a obra se fez um pilar do movimento beat, vindo a influenciar toda a efervescência sociocultural jovem inconformada de seu tempo, dentro daquilo que, a miúdo, se chama de contracultura: abraçando, portanto, desde o movimento hippie ao punk, ou às subculturas mais ou menos manifestas como "underground". Dizem que a juventude começou a se manifestar artística e politicamente de forma mais libertária conforme o modorrento autoritarismo começou a se fazer sentir de forma mais aguda no mundo ocidental do final dos anos 1960. Mas "beat generation" foi um termo cunhado por Jack Kerouac quase vinte anos antes, em 1948.

"Beat": aquele que está quebrado, sem grana e maiores chances na vidade, que apanhou de punhos de terceiros ou por parte do sistema (quando não ambos). Seja nos anos 1950 ou 1960, certas cabeças juvenis viviam a antítese do sonho americano, uma ilusão, afinal. Além de batizá-lo, Jack Kerouac foi o patrono do grupo - que na verdade não tinha patrono algum, apenas uma constelação de artistas que brilhavam com intensidade. Loucos como Allen Ginsberg. William Burroughs. Diane di Prima. Carolyn Cassady. Gary Snyder. Gregory Corso. Lucien Carr. Lawrence Ferlinghetti. Herbert Huncke. Loucos. Justamente aqueles que importavam, para Kerouac. Conforme um trecho das primeiras páginas de On the road: "(...) aqueles loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, desejosos de tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam ou falam algum lugar-comum, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como aranhas através das estrelas e no meio de tudo você vê o centro azul estourar e todo mundo faz 'Awww!'".

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Anos antes de se tornar uma estrela literária, Jack, ou melhor, Jean-Louis, teve uma infância pouco feliz na pequena Lowell. Desde o início um estrangeiro em seu país, falava joual, um dialeto de origem francesa, e só veio a aprender o inglês entre os cinco e seis anos de idade, na escola. Frequentava um colégio jesuíta e era dedicado à mãe, profundamente católica, compartilhando com ela sua fé. Ajudava o pai numa impressora. Seus dramas: as dificuldades financeiras da família e, em 1926, a perda de Gerard, seu irmão mais velho, de então nove anos, vítima de uma febre reumática. Mais tarde, contrariando o lugar comum de que quem é bom de crânio é ruim de bola, conseguiu ser escalado para a equipe de futebol americano de seu colégio, coisa que posteriormente o valeu uma bolsa de estudos para a Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Lá, tudo mudou.

No Bronx, Jack passou por um ano preparatório na Horace Mann School, onde fez amizade com Seymour Wyse, um inglês que, ironicamente, despertou seu gosto para o quente da música americana do momento: o bebop jazz. Uma vez em Columbia, no entanto, sua carreira de desportista deu na água. Discutia muito com o técnico Lou Little, que o mantinha no banco, até que quebrou a perna. Sorte sua (talvez), e sorte dos loucos por literatura (com certeza). Fora de campo por meses, Kerouac passou a frequentar cada vez mais a biblioteca universitária, caindo de amores pelos escritos de um xará, Jack London, entre outros: James Joyce, Louis Ferdinand Céline, Fiódor Dostoiévski e Thomas Wolfe foram seus verdadeiros professores no ensino superior, já que deu lhufas para as aulas. Por Columbia , morando nos alojamentos de Livingston e Hartley, travou contato com Lucien Carr, também residente por lá. Se tornaram amigos e parceiros intelectuais por longos anos (e também cúmplices, aliás).

Com a carreira no futebol arruinada, Jack abandonou os estudos. Em família as coisas não iam bem: se preocupava com o pai, que perdera o negócio que tocava e se encharcava no álcool. Resolveu, então, se estabelecer no Upper West Side com Edie Parker, que seria sua primeira esposa, disposto a se arranjar. De julho a outubro de 1942 esteve na marinha mercante, pegando gosto pelas viagens. Nesse período chegou a escrever sua primeira novela, The sea is my brother, em tom de desabafo - só foi publicada 70 anos depois de escrito e 40 anos após a morte do autor, apenas como curiosa fagulha do que seria o "early" Kerouac. Em 1943, todavia, Jack entrou para a marinha de guerra, mas foi dispensando com um diagnóstico: "personalidade esquizoide". Daí, não lhe restava muito a não ser aprofundar os laços com a moçada. Através de Lucien Carr, enfim conheceu Allen Ginsberg e Bill Burroughs, cristalizando o núcleo duro do beat. Perambulava por Nova Iorque com os parças e com Neal Cassady, um talentoso ladrão de carros que passou boa parte da infância em reformatórios. Neal não era um artista. Era das ruas.

Em 1944, Lucien Carr matou um cara. Em legítima defesa. Ainda assim, no desespero, se livrou do corpo no Rio Hudson e pediu ajuda a Jack, que deu sumiço na arma do crime e nos óculos que o presunto até então utilizava. Kerouac e também Burroughs foram tocar piano no xilindró, ambos testemunhas, a rigor. Desgostoso, o pai do primeiro se recusou a pagar a fiança. Mas seus sogros não, desde que se casasse com Edie Parker. Um casamento desses não tinha como dar certo: se separaram logo em seguida e quatro anos depois estava anulado, no papel. Kerouac e Burroughs, por outro lado, chegaram a escrever um romance sobre todo o episódio, já em 1945, nomeado And the hippos were boiled in their tanks. É que, naqueles dias, se era imenso o prurido de Kerouac por viajar (geograficamente e também na batatinha), o por escrever não era menor. Foi por aí que, deprê, começou a se mexer para cumprir um plano que havia feito tempos antes: cair na estrada. No caso, com Neal Cassady. E a gerar, aos poucos, num processo de mais de cinco anos, o que seria seu grande bilhete de entrada no hall da fama literária.

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Depois de passar a morar em Ozone Park, no Queens, com os pais, em 1949, em 1950 Jack conseguiu publicar seu primeiro livro, The town and the city, sob o quase pseudônimo de "John Kerouac". Extremamente pensado e trabalhado, havia sido uma experiência penosa para o escritor. Que, afinal, não rendeu o sucesso esperado. On the road, que então estava no forno, entretanto, era um produto totalmente diferente, selvagem. Foi finalizado em abril de 1951, em momento em que o autor vivia num apartamento em Manhattan com sua segunda esposa, Joan Haverty, depois de fincar um pouco os pés no chão: uma pausa naqueles momentos junto de Cassady era merecida. Mas isso não significava descanso. Depois de muita coleta de material em seus diários, a primeira versão do que seria On the road foi parida em cerca de três semanas ininterruptas de espontânea prosa confessional. A versão final do original foi completada em outros alucinantes vinte dias. Joan deveria ter sido canonizada: cuidava de abastecer o acelerado escritor com sopas de ervilhas, cigarros, doses de café e, claro, benzedrina. Mas todo santo tem seu limite: naquele mesmo ano de 1951, ela caiu fora do relacionamento. Grávida. Janet Michelle Kerouac só foi reconhecida por teste de paternidade nove anos depois; se meteu numa banda de rock feminina que não decolou, chamada The Whippets, viajou aparentemente até mais do que o pai e no fim também se fez escritora, embora tivesse vivido na pior, morrendo aos 44 sem direitos legais sobre a produção de Jack, que praticamente não conheceu.

Jack Kerouac não foi o primeiro autor americano a focar pobres marginais e vagabundos errantes em sua obra: seu inspirador Jack London já viera com essa. Também não foi o escritor que pela primeira vez ligou o mundo da literatura à necessidade física, quase fisiológica, de se deslocar geograficamente - o poeta francês Arthur Rimbaud já tinha o costume de botar o pé na estrada ao fim do século XIX. Mas, até um pouco à semelhança de Rimbaud, quando Jack entrou nessas searas, entrou direito: rompendo com a mesmice nas letras de seu tempo. É que, em On the road, ao narrar as viagens de Sal Paradise, Dean Moriarty e MaryLou (os equivalentes de Jack, Neal e LuAnne) - indo e vindo, se encontrando e desencontrando pelos EUA, até uma louca estada na Cidade do México - Kerouac lançou uma linguagem própria, praticamente inaugurando um novo tipo de prosa - carregada de desobediência civil, diga-se. Os mais acadêmicos a chamam de seu "fluxo de consciência": uma escrita que parece rápida, frenética, febril, oralizada, orgânica, espontânea e pouco "trabalhada", digamos assim. As palavras iam pipocando e Jack não as depurava, não cortava seu barato: as vomitava.

A forma de Jack trabalhar implicava, justamente, um fôlego narrativo considerável, capaz de impressionar seus editores. Não admira que, por parte do autor, o uso de algumas substâncias tivera certa função no processo: Kerouac se sentava, datilografava e fazia correções por horas a fio, não raro o dia inteiro, ao longo de semanas. Usava grandes rolos de papel manteiga, que cortava para caberem em sua máquina de escrever: tudo para não perder tempo trocando as folhas, quando completas. O original de On the road levou muito tempo para ser digerido pelas editoras, que o recusavam sucessivamente, tanto por seu estilo quanto por seu conteúdo, fora a grande questão técnica. Quando enfim foi aceito, apenas em 1957, pela Viking Press, deu um trabalho hercúleo a seus revisores: o rolo de 37 metros de texto catártico em parágrafo único e sem divisões de capítulos teve que ser revisto com atenção, com constantes inserções de pontos e vírgulas. O texto original, cru, tinha trechos explícitos a ponto de fazer Dercy Gonçalves corar. Os nomes dos envolvidos estavam todos ali, então pseudônimos tiveram que ser criados, para evitar acertos de contas na Dona Justa. O equivalente a 120 páginas foi cortado - algo que hoje pode até parecer um pecado literário. Menos mal que atualmente a versão "uncut" do livro também é publicada, sob o título de On the road - the original scroll. Reflexão: fosse pelas editoras de hoje, conforme são, a obra prima dificilmente teria vindo a lume.

A forma de prosear de Jack Kerouac tinha sua razão de ser. Ela não só segue o ritmo das formas mais improvisadas de jazz - estilo musical do qual o autor era fã - como dialoga com o pulso frenético das ruas, onde mal temos tempo de pensar se atravessamos a rua ao dobrar a esquina ou se ficamos parados para sermos colhidos pelo busão que, ih, olha só, acaba de furar o sinal. Na urbe os estímulos são tantos, o estardalhaço é tão onipresente, como uma forma estranha de deus, que passa a ser quase uma grande calmaria, um grande silêncio. A realidade como a concebemos, esse mundo sensorial de luz e sombras, causas e consequências, em eterno ciclo de vida e morte, é ilusória. Saiamos do círculo vicioso. Aí a importância de não pensar, agir: como no zen. Até parece que não é possível se iluminar espiritualmente dentro (ou na frente) do 782 Cascadura-Marechal Hermes, via Vaz Lobo. Essa é a cosmovisão da marginalidade de Jack Kerouac. O asceta maldito definia sua obra prima como "uma narrativa sobre dois amigos católicos viajando através do país em busca de Deus. E nós o encontramos". No finzinho de Lonesome traveler, publicado em 1960 e traduzido para Viajante solitário no Brasil, encontramos isso: “Jesus era um estranho vagabundo que caminhava sobre a água. Buda também foi um vagabundo que não prestava atenção nos outros vagabundos”. As buscas do autor nesse sentido têm raízes no passado: as impressões de Jack frente ao fervoroso catolicismo de sua mãe, devidamente absorvido pelo filho, e a falta de fé do pai, sobretudo quando da morte de Gerard.

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Nos longos seis anos em que buscou a publicação de On the road, Jack Kerouac teve que ganhar a vida. Em 1952 escreveu Visions of Cody (Visões de Cody), que seria publicado vinte anos depois, já postumamente. Nesse livro, que o próprio autor considerava sua verdadeira obra prima, lascou essa: "Tudo me pertence, porque eu sou pobre". Era a filosofia de seu espírito livre: a condição superior, elevada de sua vagabunda condição. Mas, por vezes, o cascalho era necessário. Sobretudo quando se transita pelo lado obscuro da realidade. Trabalhou então no sistema ferroviário americano, o que o possibilitou viagens entre as costas dos EUA - às vezes parava na casa de sua mãe, onde tinha como descansar e escrever mais. Entre longas viagens pelo país e para o México, bebedeiras cada vez mais homéricas e crises depressivas. "Um trem interminável para um interminável cemitério, é tudo o que é essa vida", refletiria, anos mais tarde, em Viajante solitário.

Curiosamente, dentro e fora da fossa em que o escritor vivia, estava sua espiritualidade, independente dos rótulos da religião: em 1954, dando mostras de grande capacidade ecumênica, Jack conheceu o budismo, concatenando seus ensinamentos com sua fé católica. Mas já antes disso se interessava pelo pensamento oriental, à maneira de J. D. Salinger, seu contemporâneo mais comportado e desenturmado. Naquele período as primeiras versões de The subterraneans (Os subterrâneos), Doctor Sax, Tristessa e Desolation Angels (Anjos da desolação) foram escritas, dando conta, basicamente, do que então se passava com o autor. “Só o que eu me lembro é que antes de eu nascer existia alegria”, escreveu, budisticamente, no último título.

Em meados dos anos 1950 tudo indicava que Jack Kerouac caminharia para o semianonimato. Sua personalidade era suficientemente extravagante: para começar, era visto como uma espécie de proto-punk caroneiro metido com drogas e prostituição, e cheio de um papo confuso entre Buda e Jesus Cristo. Na política, nenhum consolo. Estava decididamente à direita: em 1954 chegou a frequentar as audiências promovidas pelo senador Joseph McCarthy, as "Army-McCarthy hearings", que tocavam o terror anticomunista em quem parecesse suspeito, socialista de carteirinha ou não. Embora torcesse pelo cruzado republicano, ia aos encontros fumando maconha. Não se dava com os mais conservadores não só por questões toxicológicas, mas também por sua liberdade sexual, tida como promíscua, e por sua instabilidade profissional e socioafetiva: nessa linha, vagabundos como ele, antielite e antiautoridades, mereciam uma dura da polícia, para endireitar. A esquerda, por outro lado, dos mais ortodoxos aos desbundados, suspeitava de seu catolicismo, sempre visto como retrógrado, e desprezava seu desprezo por Karl Marx e Sigmund Freud. Talvez Jack fosse uma espécie de anarquista. Seja como for, só mesmo os hippies para, futuramente, o cultuarem - embora Kerouac também os tivesse desprezado, no fim das contas, alegando que não tinham consistência espiritual. Mas isso foi depois.

Ocorre que, ainda ao fim da década de 1950, contra todas as chances, On the road foi aceito para publicação. E, assim que veio a lume, em 1957, sacudiu meio mundo literário - e além. Muitos estranharam seu estilo, claro, como acontece com toda ruptura estética. A crítica caía de pau. Truman Capote disse que aquilo não era escrita, era datilografia. Mas, no fim, seus louros foram colhidos: o livro fez a cabeça da molecada anticonformista. E quem não era rebelde e o leu, ficou. Ganhou até apelido: a "bíblia hippie". Kerouac pirou, literalmente.

A vibração selvagem de On the road, antenada com o público jovem, foi uma grande sacação de marketing da Viking Books: sabiam, desde que bateram os olhos no bizarro e grosso pergaminho de papel manteiga, que ali estava o canto de uma geração - exatamente como Gilbert Millstein cravou, em sua crítica ao livro, no New York Times. Dito e feito. Seu autor foi elevado à categoria de mito quase que instantaneamente, mesmo com as edições para tornar a obra mais "palatável" ao público. Mas cada ofício tem seu osso: Jack Kerouac não nasceu para ser celebridade. Uma noite, bem no meio de seus dias de glória, foi espancado por três sujeitos, às portas do San Remo Cafe, no Greenwich Village. Com a notoriedade de seu livro, Neal Cassady entrou no radar da polícia como prioridade: acabou rodando por vender erva. Conforme sua fama se consolidou repentinamente, começou a experimentar certa paranoia. Não se sentia confortável andando na rua, em público e tentava viver discretamente em sua casa, já na Flórida.

Menos mal que editoras querendo manuscritos previamente rejeitados começaram a chover, para Jack. Não à toa, já a fins de 1957 o escritor decidiu se isolar para trabalhar em novo projeto. O romance subsequente de Kerouac, The Dharma bums, traduzido no Brasil para Os vagabundos iluminados, saiu do prelo em 1958, tentando, de certa forma, repetir algo de On the road, mas já na fase pós-descoberta budista do autor: numa pegada pré-new age, narrava, entre outras coisas, uma escalada a uma montanha, feita junto com o poeta Gary Snyder, em busca de realização espiritual. "Nenhum homem deveria passar pela vida sem experimentar pelo menos uma vez a saudável e até aborrecida solidão em um lugar selvagem, dependendo exclusivamente de si mesmo e, com isso, aprendendo a descobrir a sua verdadeira força oculta", escreveu, depois, em Viajante solitário.

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O sucesso de On the road nunca foi superado pelos demais livros de Jack Kerouac. Que são vários. Ironicamente, o lançamento de The Dharma bums parece mesmo ter iniciado o início do fim de nosso dileto vagabundo literário. Se o mesmo já era um "outsider" no mundo literário de seu país, de forma análoga, a obra bateu mal nos meios budistas dos EUA, onde o autor passou a ser encarado como "impostor". E isso bateu mal em Jack. Que caiu de vez no álcool. Onde, na verdade, já vinha caindo. Deixou de ser budista, afinal. E passou a se concentrar em outras coisas. Em seguida, roteirizou e narrou um filme sobre a geração beat, chamado Pull my daisy, de 1959, dirigido por Robert Frank e Alfred Leslie.

No ano seguinte, pela emissora CBS, uma série de TV chamada Route 66 foi ao ar, inspirada nas aventuras de Sal Paradise e Dean Moriarty - lançando, naturalmente, uma versão para as grandes audiências, "sanitizada", portanto, de ambos os anti-heróis, lamentavelmente vendáveis, afinal. Criada por Stirling Dale Silliphant, a série durou até 1964 trazendo as figuras de Buz e Todd, cruzando o país num Corvette gentilmente cedido pela patrocinadora Chevrolet. Pois bem: Kerouac acabou tentando processar todo mundo, quando se viu paulatinamente deixado de lado do projeto. Acabou dissuadido, pois mexia com gente endinheirada e o coice sairia pela culatra - perdoe o leitor a expressão impensada, foi escrita em fluxo de consciência e não passou por revisão.

No mercado literário Jack Kerouac não estava exatamente mal, no início da década de 1960 - publicou The scripture of the Golden Eternity (1960), o roteiro de Pull my daisy (1961), Big Sur (1962), Visions of Gerard (1963) e Desolation angels (1965). Mas, naquele período, três baques acertaram em cheio sua vida particular: a morte de sua irmã mais velha por infarto, em 1964; um derrame que paralisou sua mãe, em 1966, mesmo ano em que publicou Satori in Paris; e, enfim, em 1968, a morte de Neal Cassady no México. Game over para o bad boy mais querido entre os bad (e também good) boys da América. Nesse último ano, aliás, se deu a ruptura de Allen Ginsberg com Kerouac, muito pelas díspares avaliações de ambos quanto aos rumos que a contracultura vinha tomando: o primeiro totalmente a favor, caindo nas graças da juventude barbada e cabeluda, o último odiando todo mundo.

Os anos 1970 estavam logo ali e eles seriam tristes, horripilantes: começariam, aliás, como bem se sabe, com as mortes de Janis, Jimi e Jim - precedidos por Meredith Hunter, o garoto negro assassinado pelos Hell's Angels, naquele show dos Rolling Stones perto da data em que os Beatles se separaram e o mundo parecia ir direto para o buraco. No fim das contas, Kerouac foi também o precursor desse seleto grupo: sequer chegou a ver a nova década. Em 20 de outubro de 1969, aos 47, foi dessa de uma melhor. Trabalhava num livro sobre a prensa onde o pai trabalhava, um tanto isolado, em sua casa na Flórida, onde vivia com a mãe e a terceira esposa, Stella Sampas, uma amiga de infância. Até que se sentiu nauseado e foi para o banheiro. Vomitava sangue. Dali para o hospital, para a intervenção cirúrgica de emergência. Efeito algum. A quantidade de sangue que a cirrose o fez botar pelo esôfago colocou um ponto final em seu trajeto.

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Jack Kerouac explodiu como autor com a mesma intensidade com que escreveu. Seu ritmo espontâneo, no improviso, seu para-rá-para-rá-para-rá-rááá-biiiiiim-paaaaaaah à Charlie Parker pode ser visto na maior parte de sua obra publicada, além de On the road. Foi um tímido incurável, sensível até o fim. Nem santo, nem diabo, mas também ambos. A única mulher que amou de verdade foi a mãe, conforme disse. Na prosa e na poética, imitadíssimo. Sem ele, The Doors não teriam existido - e mesmo os Beatles não teriam sido os mesmos. Gostava de ser considerado, ademais, acima de tudo, simplesmente, um católico. E também uma espécie de branco preto - em Visões de Cody se declara, na verdade, tanto indígena quanto "nègre blanc". Dizia, sincero, em Viajante solitário: "Sou apenas um agente secreto de outro planeta, e o problema é que não sei por que me enviaram, me esqueci da maldita mensagem". Mesmo sendo uma criatura intergaláctica, só aprendeu a dirigir aos 34. E mesmo assim, sem habilitação. Que nunca chegou a ter. Awww!

Explore os documentos:

A partir de 1958, o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo publicava textos do crítico pernambucano Willy Lewin, sobre a novíssima "geração beat":

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/475

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/643

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/1149


"Dada, made in USA?", pergunta o Suplemento Literário, sobre o beat, em 1960.


No ano seguinte, 1961, é a vez de Otto Maria Carpeaux abordar o caso dos "Playboys do budismo".


Inspirados em Jack Kerouac, o filme Easy Rider e zenbudismo, Paulo Rubens Fonseca e Márcia Capella vão de Ipanema, na Zona Sul carioca, à Terra do Fogo, na Argentina: seu relato sai na revista Manchete, do Rio de Janeiro, em 1976:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/158880

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/158881


Em 1984, na Manchete, Roberto Muggiati decreta: "A beatmania chega ao Brasil". On the road acabara de ser traduzido para o português, por Eduardo Bueno e Antônio Bivar, ficando na lista de 10 mais vendidos no país por um tempo.


"Automóvel também é cultura", diz Muggiati em ensaio para a Manchete, em 1996. Na iconografia, a capa da primeira edição americana de On the road não poderia ficar de fora:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/292790

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/292791


Em entrevista ao Correio Braziliense, em 2009, Cláudio Willer fala da "alma beat".


Especial de 2013 do caderno cultural "Pensar", do Correio Braziliense, revisita a geração beat.