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Centenário | Scott Fitzgerald: um talento confirmado há 100 anos

03 maio 2022

Artigo arquivado em Centenário
e marcado com as tags Estados Unidos da America, Jazz Age, Os Belos e Malditos, Scott Fitzgerald, Secult, The Beautiful and Damned 100th Anniversary

2022, no tocante à literatura, está intenso: é o ano de centenário de Jack Kerouac, José Saramago, Alain Robbe-Grillet e José João Craveirinha. Como 1922 foi crucial para a cristalização da estética moderna, foi ainda o ano em que foram publicados Ulysses, verdadeiro divisor de águas e obra maior de James Joyce; A terra desolada, de T. S. Eliot; e O quarto de Jacob, de Virgina Woolf. Em outro universo, o dos quadrinhos, Stan Lee e Charles Schulz também soprariam velinhas com os números um, zero e zero, vivos fossem neste ano. E cá nestes trópicos, bom atentar, não ficamos atrás: soltamos fogos para o centenário da Semana de Arte Moderna, e também de Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Dias Gomes e Darcy Ribeiro. Sem contar o aniversário de 90 primaveras da estreia de José Lins do Rêgo no universo literário, com o lançamento de Menino de engenho, em 1932. Já seria o suficiente? Talvez. Só que tem mais. Pois 1922 foi determinante para certo Francis Scott Key Fitzgerald, também. Naquele momento, ele ainda não era um peixe grande na literatura dos Estados Unidos. Mas já era uma promessa, após a publicação de vários contos na imprensa literária e o lançamento de seu primeiro romance, Este lado do paraíso, em 1920. O grande Gatsby, sua obra prima e ícone em prosa da frenética empolgação da chamada "era do jazz", ainda estava para sair, em 1925. Mas, em 1922, ela estava sendo gestada da melhor forma. Pois foi bem quando, a 4 de março, seu autor trouxera a lume Os belos e os malditos, seu segundo romance, já ambientado no meio em que deitaria e rolaria o eterno boa praça Jay Gatsby. E foi também quando, a 27 de maio, um de seus maiores contos, O curioso caso de Benjamin Button, foi publicado em edição da revista Collier's Weekly. Se ainda havia dúvidas a respeito do talento de Scott Fitzgerald, em 1922 elas evaporaram.

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Nascido na pequena Saint Paul, em Minnesota, nos EUA, a 24 de setembro de 1896, F. Scott Fitzgerald morreu aos 44 anos, em 21 de dezembro de 1940, na pindaíba em plena Hollywood californiana. É que viveu uma vida de excessos. Sofreu muito com a condição psicológica de sua esposa, Zelda, e com o álcool: era daqueles que depois de três coquetéis ficava imprestável por uma semana. Mas, enquanto o bem-bom durou, aproveitou. Zeitgeist geracional que foi, acabou eternizado na imagem que mantinha aos loucos anos 1920, a feliz década que precedeu a Grande Depressão de 1930, entre coquetéis, roupas finas, tiradas sagazes, belos sorrisos e brilhantina impecável - talvez Fitzgerald seja o detentor da cabeleira mais rigorosamente repartida dentre todas as de escritores da história da literatura mundial. Mas deixou relativamente poucas obras, antes de entrar em crise criativa e, enfim, partir desta para uma melhor: foram seis romances e 164 contos posteriormente reunidos em quatro volumes. Embora tenha atingido fama e bufunfa em sua curta e intensa vida, seu reconhecimento por parte da crítica só veio postumamente, lá pelos anos 1950, quando passou a ser encarado como gênio literário que sintetizava nas letras a cultura norte-americana - daqueles que mostram os dois lados do "sonho americano". Foi, afinal, um belo e maldito sujeito.

Antes de se tornar novelista, contista, ensaísta e roteirista, F. Scott Fitzgerald foi um garoto de classe média que teve o privilégio de cursar a Universidade de Princeton. Mas, pândego e amorosamente desiludido pela socialite Ginevra King Pirie, não ficou muito tempo por lá. Caiu fora dos estudos em 1917 para partir para a Europa, e não buscando diversão: havia se alistado, no contexto da Primeira Guerra Mundial. Enquanto esteve mobilizado perto da cidade de Montgomery, no estado sulista do Alabama, conheceu sua futura esposa, Zelda Sayre. Como Fitzgerald não tinha um tostão furado, a moça, de família bem posicionada, recusou sua proposta de casamento. Mas, de volta das bombas e tirombraços no Velho Mundo, o jovem emplacou sucesso ao estrear na literatura com Este lado do paraíso, em 1920. Coqueluche cultural da época, o livro de estreia de Scott Fitzgerald vinha para afirmar: nascia um autor de peso nos modernos EUA. E, assim, Zelda aceitou o anel. Ambos viraram o jovem casal-sensação daquele tempo. Alourados, alinhados, cultos e de finos narizes empinados: todo mundo queria um pedaço deles.

Os belos e malditos, de 1922, ajudou a cimentar a reputação de Fitzgerald no jet set. O novo sucesso provava que seu primeiro romance, de dois anos antes, não fora obra do acaso. Em paralelo, o autor publicava contos em revistas da moda, como Esquire, The Saturday Evening Post e Collier's Weekly, onde O curioso caso de Benjamin Button deu as caras, naquele mesmo ano. Vivendo em plena agitação intelectual, Zelda e Scott iam e vinham da Europa, onde estabeleceram amizades com outros expatriados da dita "geração perdida" do momento. Foi deste contexto que nasceu a amizade de Fitzgerald com Gertrude Stein e, principalmente, Ernest Hemingway: a relação entre ambos foi mesmo parar no sugestivo livro Paris é uma festa, do último. Era a "Jazz Age": o termo que o próprio Scott popularizou para designar aqueles dias. Esbórnia e a agitação criativa.

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E como seriam, afinal, esses dois trabalhos de 1922 que catapultaram Francis Scott Fitzgerald à fama?

O curioso caso de Benjamin Button, quando publicado na Collier's, veio acompanhado de ilustrações de James Montgomery Flagg. Sua aceitação foi imediata - tanto que, em seguida, o conto entrou numa antologia do autor, do mesmo ano de 1922, chamada Tales of the Jazz Age. No Brasil, posteriormente, a mesma foi vertida para Seis contos da era do jazz, o primeiro livro de F. Scott Fitzgerald publicado por cá, pela José Olympio Editora. Nele, lá está o senhor Button, um sujeito nascido em Baltimore em 1860 com a aparência e a disposição de um septuagenário. Que, como na literatura fantástica, simplesmente vai rejuvenescendo, ou melhor, envelhecendo ao contrário, até virar um bebê e sumir. No hiato de sua vida, chegou a virar um prodígio do futebol americano e a lutar na Guerra Civil Espanhola. Mas não precisa se preocupar: não daremos mais spoilers. Só recomendamos: não vá deixar para ler depois de assistir ao filme de 2008, de David Fincher, com Brad Pitt no papel de Benjamin Button!

Hoje em dia menos popular, Os belos e malditos, lançado quase três meses antes da publicação do conto na Collier's, não só é um romance de rasgos autobiográficos como uma obra que traz a atmosfera de O grande Gatsby. Em quase 500 páginas, nos conta a história do bacana Anthony Patch, iniciada em 1913. Aluno de Harvard aos 25 anos de idade, o jovem hedonista se vê herdeiro da fortuna do avô, que custa a cair em sua conta bancária; no decorrer dos anos, dividide-se entre a alta sociedade da Costa Leste americana, o alcoolismo, a bancarrota depois de muita festa, seu serviço militar em pleno contexto da Primeira Guerra Mundial, a depressão e sua relação com a esposa, a coquete Gloria Gilbert, que acaba sofrendo com a infidelidade conjugal do maridão playboy. Uma narrativa de ascensão e decadência, nos sentidos físico, material e moral, vista como boa, mas um tanto pessimista, em sua época.

Assim como O curioso caso de Benjamin Button, Os belos e malditos também virou filme. Só que, curiosamente, essa adaptação ocorreu já em 1922: dirigido por William A. Seiter, a fita de cinema mudo trazia Kenneth Harlan e Marie Prevost nos papéis do complexo e libertino casal protagonista. O autor do livro a detestou. Mas, afinal, era um reflexo de seu sucesso. Por essas e outras, imagina-se o frisson que o livro e as próprias figuras de Scott e Zelda causaram nos EUA, em seu tempo. No geral, Os belos e malditos acabou sendo apontado como o romance mais imaturo de seu autor - tanto pela crítica quanto pelo próprio. Mas, em 1922, teve aceitação de público. Ao início da era do jazz, o estreante Scott Fitzgerald ascendia como um foguete. Sabe-se: até explodir, foguete não dá marcha-ré.

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O problema do jazz tocado ao vivo, em banda, ou nas vitrolas mais supimpas do momento, é que, uma hora, ele acaba. O mesmo vale para as garrafas de champanhe, na adega. No caso, a serelepe era do jazz acabou abruptamente com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 24 de outubro de 1929. O "crack" daquela sinistra quinta-feira fez com que Wall Street se debatesse para encontrar uma saída em meio ao caos no pregão. De cenho um tanto mais franzido, naqueles dias Scott Fitzgerald, que possuía grandes talentos para torrar, mas não poupar os rios de dinheiro que havia ganho, passou a ter um problema a mais: Zelda, que há tempos não andava bem, havia sido diagnosticada com esquizofrenia. Conforme a companheira acabava numa instituição mental, o próprio autor tinha que lidar com o próprio alcoolismo. Pior: em meio à dureza do momento, sua obra começou a ser vista como frívola, elitista e materialista - congelada no tempo, e um tempo de bobeira irresponsável. Os royalties, então, não pagavam quase nada. Não havia como manter as despesas médicas de Zelda e, muito menos, de um estilo de vida opulento.

Depois do estouro épico de O grande Gatsby, em 1925, Scott só fora capaz de publicar seu próximo romance, Suave é a noite, em 1934. Na luta do dia-a-dia durante a Grande Depressão, o escritor bem que tentava, mas não conseguia voltar a vender seus textos para editoras. Depois, teve uma ideia que se traduziu em tiro n'água: se mudou para Hollywood, para trabalhar como roteirista de cinema, sem sucesso. Entre 1936 e 1937, pingava aqui e ali, entre hotéis baratos. Scott Fitzgerald parecia um personagem de seus escritos - aquilo que sempre foi. Viveu seus últimos dias com Sheilah Graham, uma colunista de fofoca da chamada "era dourada" do cinema estadunidense. Depois de uma longa luta, deixou de ser um ébrio costumaz, mas o estrago estava feito: morreu de um ataque do coração em 21 de dezembro de 1940. Zelda, que havia sido também novelista, socialite, dançarina e pintora, não viveria muito mais: partiria oito anos depois.

O que fica, da intensa trajetória de Zelda e Francis Scott Fitzgerald? Ideias de mundo, de sociedade, de época, de moral. Complexidades e ironias. E talvez um bocadinho de esperança e celebração: a vida é um foxtrot curto, afinal. Melhor abrir o espumante bom antes do chinfrim - ou não abrir nenhum, caso não se veja sentido nas borbulhas. "Devemos compreender que as coisas são sem esperança, e mesmo assim estarmos decididos a mudá-las", dizia ele. Otimismo racional ou pessimismo maluquete?

 

Explore os documentos:

Em 1965, texto de Caio de Freitas para a revista carioca Manchete dá conta da biografia de F. Scott Fitzgerald:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/61558

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/61559

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/61560

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/61561

 

Texto de Sara Mayfield na Manchete, em 1971, evoca Paris é uma festa, de Ernest Hemingway, que delineia momentos em que o autor travara contato com Scott e Zelda Fitzgerald, em 1925:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/116012

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/116013

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/116015

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/116016

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/116019

 

Em sua tradicional série "As obras-primas que poucos leram", a Manchete, em 1973, joga luz a'O grande Gatsby:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/135909

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/135910

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/135911

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/135912

 

Curiosidade: em 1977, Manchete publica uma foto de um desconstruído Scott Fitzgerald em 1916, vestido de mulher. Havia sido publicada naquele ano, numa revista musical que o mesmo havia editado quando na Universidade de Princeton:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/170535