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Centenário | Sidarta, de Hermann Hesse: uma libertação de si mesmo

30 set 2022

Artigo arquivado em Centenário

2022, sabe-se, foi o ano de centenário de Ulysses, de James Joyce, um dos maiores romances da história da literatura. Disso já sabemos de cor e salteado. No entanto, outro livro – muito menos ovacionado, mas também altamente popular – também sopra 100 velinhas neste ano, precisamente neste mês de setembro. Ele conta a história do filho de um abastado brâmane, numa região correspondente ao atual Nepal, lá pelos anos 500 a. C. Inquieto, o jovem se debatia em questões eternas: queria saber sobre a natureza da alma e da imortalidade, e mesmo aprofundar os ensinamentos espirituais das escrituras sagradas a que tinha acesso. Então, à la Jack Kerouac, abandona a rica e confortável vida familiar para embarcar em uma jornada em busca do sentido da vida e de seu lugar no mundo, jejuando, meditando e renunciando a toda e qualquer posse material ao lado de Govinda, seu melhor amigo. Ah, sim. Seu nome é Siddhartha Gautama. Então estamos falando da história do Buda? Sim e não, ou quase! Trata-se de um homônimo contemporâneo do venerável Iluminado. O Sidarta do qual falamos aqui é apenas um humilde seguidor do original, embora guardasse incríveis semelhanças com o mesmo. A principal diferença é que ele é ficcional: protagonista da obra Sidarta, do alemão naturalizado suíço Hermann Hesse, Nobel em literatura em 1946. Pois esse é outro livro que completa 100 primaveras neste 2022.

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Os laços de Hermann Hesse com a cultura hindu não eram poucos. Já sua mãe, Marie Gundert, havia nascido no sul da Índia, em tempos em que o avô do escritor, Hermann Gundert, havia passado por lá, atuando como evangelizador luterano da então chamada Basler Mission. No início do século XX, a Índia e o Nepal, palcos de inúmeras invasões coloniais, eram territórios percorridos de cima a baixo por europeus fascinados com exótico oriente. E Hermann Hesse não era exceção: depois de passar por uma crise de criatividade na escrita do romance Gertrude, e em meio a problemas conjugais, foi para lá em 1911, onde se tornou apenas mais um de incontáveis “indólogos”.

Então muito interessado em budismo, teosofia e a filosofia de Arthur Schopenhauer, pretendia visitar não só a Índia, mas a Indonésia, Sri Lanka, Bali e Java. Não deu muito certo: ocidental que era, teve um grave problema digestivo com a cozinha local. Viu Sumatra, Bornéu e Burma, mas seu itinerário ficou comprometido, e teve que voltar para casa antes mesmo de botar o pé na Índia. O que conseguiu ver foi impactante, mas diferente do que esperava.

Embora a viagem de 1911 tenha sido tão fascinante quanto frustrante, sem fugir muito à regra, Hermann Hesse voltou ao Velho Mundo totalmente mudado: assim como para seu futuro personagem, viveu uma intensa jornada espiritual. Ele acreditava que o ascetismo oriental poderia de fato ajudar a salvar o mundo ocidental dos rumos em que sua espiritualidade parecia entrar. Para alguém criado nas tradições protestantes no interior da Alemanha do século XIX, a Índia parecia um lugar atraente para se buscar o sentido da existência: algo mais do que um modismo, para Hesse se tratava de uma tomada de consciência crucial para vida humana. Transformar isso tudo num livro parecia ser uma boa ideia. E eis que em 1922, lá estava a publicação.

É bem verdade que hoje em dia a leitura do Sidarta de Hesse possa levantar certas críticas. No romance, o escritor, enfim, não conseguiu se livrar de visões idealizadas e estereotipadas, enxergando com lentes de romantismo a espiritualidade da sociedade hindu. Impossibilitado de ver a Índia clássica dos Vedas in loco, o escritor tentou captar sua essência no plano das ideias, via literatura. Quem sabe ela ainda fosse, de alguma forma, acessível, filosoficamente? A busca por uma verdade absoluta – projeto de vida de muitos, inclusive de Hermann Hesse – dependia de narrativas assim. E dito e feito.

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Embora em seu lançamento, em 1922, Sidarta, já o sétimo romance de Hermann Hesse, não tenha angariado muita atenção por parte da crítica e dos leitores na Europa, na Índia o livro entrou logo no currículo dos institutos universitários que tratavam de germanística. Foi, de fato, bem recebido por lá, ainda mais quando ganhou tradução para o inglês, em 1951. Mas, no Ocidente, só se tornou popular muito após Hesse conquistar o sucesso com outras obras, como O lobo da estepe e O jogo das contas de vidro. Foi mais por elas que o autor passou a ostentar o Prêmio Nobel em literatura em 1946, não sem antes obter também o galardão do Prêmio Goethe, no mesmo ano. Foi mais de vinte anos depois, e quase cinquenta após o lançamento de sua primeira edição em alemão, que Sidarta ganhou de fato projeção no mercado editorial, quando se transformou numa espécie de bíblia para a geração “flower-power” – assim como On the road, de Kerouac, apesar das diferenças.

No final dos anos 1960, particularmente a partir do engajamento majoritariamente jovem nos movimentos de ressignificação política e contracultura em 1968, Sidarta passou a ser encarado como obra de relevância para a contestação de valores ocidentais conservadores então vistos como falidos, em diversos aspectos: na espiritualidade, na sexualidade, nas visões de mundo e sociedade, nas formas de se encarar a realidade, etc. Mas, que fique registrado: embora essa quebra de paradigma seja normalmente atribuída às juventudes europeias e norte-americanas, também na Índia a passagem da década de 1960 para a de 1970 foi repleta de convulsões, sobretudo a partir da eclosão do movimento antiautoritário conhecido como Naxal. Também pelas imediações do Gânges, sua verdadeira casa, Sidarta foi lido, absorvido, debatido e amado.

Em tempos mais recentes, muito pela fundação da Hermann Hesse Society of India em 2005, Sidarta passou a ser traduzido para diversas línguas indianas, ganhando novo fôlego de publicação, por aquelas bandas – a mais recente foi a para o tamil, lançada em 2017. No Brasil, aliás, o livro parece estar presente muito antes, desde 1965, quando foi colocado à disposição do leitor pela Editora Civilização Brasileira, de Ênio Silveira.

Hoje, mesmo aos 100 anos de sua existência no mundo literário, o livro guarda relevância. E há que se perguntar: algum dia a perderia? Questões filosóficas e espirituais são atemporais, inerentes à humanidade independentemente da época. Não importa quais crenças, posturas ou ideologias tenhamos: as buscas pelo sentido da vida, pelo “quem sou e para onde vou”, apelos inesgotáveis em direção à essência da condição humana, sempre estarão em nossas cabeças e corações. De norte a sul. Do Oriente ao Ocidente.

 

Explore os documentos:

Em 20 de outubro de 1962, Anatol Rosenfeld aborda a obra de Hermann Hesse no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo.

Na edição de 24 de maio de 1969, momento em que o romance Sidarta explodia no mundo contracultural, o Suplemento Literário publica poemas de seu autor.

Em 4 de outubro de 1969, Rosenfeld volta a falar de Hermann Hesse, dessa vez focando sua popularidade naquele tempo.

No ano seguinte, Alfredo Lage inicia uma série de artigos sobre Hesse em “busca da sabedoria”, ainda pelo Suplemento Literário.

 

Na revista Manchete, em 1970, hippies brasileiros aparecem em destaque: leitores de Hermann Hesse, afinal:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/108352

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/108353

 

Em 1972, Manchete volta a abordar Hesse como “guru” da “crise do Ocidente”:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/123892

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/123893

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/123894

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/123895

 

Um ano depois, revista noticia o lançamento do filme Siddartha, filmado na Índia com atores locais.

 

Em 1977, Suplemento Literário trata do centenário de Hermann Hesse, em texto de Erwin Theodor, em meio a ilustrações do autor alemão:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/6541

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/6543

 

A obra de Hermann Hesse no Brasil é especificamente tratada em artigo de Christl Brink para o Suplemento, em 30 de março de 1980:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/8805

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/8806

 

Fontes:

Encyclopaedia Britannica. Hermann Hesse: Facts & Related Content. Disponível em: https://www.britannica.com/facts/Hermann-Hesse. Acesso em 16 de setembro de 2022.

GOPALAKRISHNAN, Manasi. "Sidarta" de Hermann Hesse completa 100 anos. Deutsche Welle Brasil, 15 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/sidarta-de-hermann-hesse-completa-100-anos/a-63141105. Acesso em 16 de setembro de 2022.

HESSE, Hermann. Sidadrta. Rio de Janeiro: Record, 2009.

MENEZES, Frederico Lucena de. Hermann Hesse: o personagem que se fez autor. Brasília: LGE, 2007.