BNDigital

Documentos Históricos

24 nov 2014

Artigo arquivado em Hemeroteca

A coleção Documentos Históricos, criada em 1928 na administração Mário Bering, é uma das mais antigas publicações nacionais especializadas na divulgação sistemática dos grandes corpos de fontes documentais da nossa história.

Em seus 112 volumes até hoje editados, publicou a transcrição de documentos oficiais dos governos de Portugal e do Brasil, na quase totalidade referentes ao período colonial, tais como alvarás, correspondência de governadores, doações, forais, livros administrativos, leis, mandatos, ordens régias, patentes, provimentos seculares e eclesiásticos, regimentos etc. quase todos referentes aos séculos XVI a XVIII.

Para se ter uma idéia da relevância e unidade do que foi publicado, pode-se tomar, por exemplo, os volumes LXXXVIII a C. Neles estão transcritas as consultas ao Conselho Ultramarino referentes à Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e capitanias do Norte, no período de 1643, quando foi criado, a 1746. Durante 165 anos (ele foi extinto em 1808), o Conselho Ultramarino, que centralizava os negócios coloniais, era consultado sobre todos os assuntos que seriam objeto de resolução régia: desde fatos do cotidiano, como obras, escândalos, festas, desavenças judiciais, conflitos, fenômenos climáticos, até questões políticas, econômicas e sociais, como os problemas de ensino na colônia, crises, invasões e colonização estrangeiras, ocupação do interior etc. A partir do volume CI, foram publicados documentos do século XIX, mais exatamente toda a documentação existente na Biblioteca Nacional sobre a Revolução de 1817 e, no volume CX, sobre a Conspiração dos Suassuna, ambas em Pernambuco.

São poucas no Brasil as publicações destinadas à transcrição de grandes corpos de fontes documentais, embora sejam indispensáveis para o conhecimento da história nacional. Segundo José Honório Rodrigues, que editou a Documentos Históricos no período de 1946 a 1958, quando era chefe da então Divisão de Obras e Publicações, o problema das fontes históricas pode ser considerado sob três aspectos: a preservação física do acervo, a elaboração de inventários e a publicação de textos.

As ações da Biblioteca Nacional nas áreas de conservação e microrreprodução atendem ao primeiro aspecto. Os catálogos e bibliografias, publicados em não poucos volumes dos Anais da Biblioteca Nacional e, desde 1966, também na coleção Rodolfo Garcia, correspondem ao segundo. A Documentos Históricos é um dos meios de realização do terceiro. Nenhuma destas iniciativas significa escrever a História, mas todas as três são condições para que ela possa acontecer. Todas são garantia de informação para o historiador e os pesquisadores em geral. E todas constituem missão por excelência de instituições de memória como a Biblioteca Nacional, de modo que não podem deixar de acontecer.

A Documentos Históricos veio à luz num momento em que, na Europa em especial, ocorriam mudanças historiográficas significativas. Mil novecentos e vinte e nove, ano seguinte ao seu lançamento, foi o ano de criação, na França, do periódico Annales d’Histoire Économique et Sociale, origem da chamada École des Annales, grupo notável pela renovação que operou na História, face ao positivismo e ao historicismo. A partir dos Annales, a História teve um diálogo permanente e profícuo com as demais Ciências Sociais e, também, com o Materialismo Histórico, passando a adotar métodos e técnicas de investigação mais sofisticados e apurados que elevaram sensivelmente o seu poder de compreensão da dinâmica histórica. Diversificando seus horizontes temáticos, a História, em síntese, ampliou intensamente o leque de seus interesses, procedimentos metodológicos e o continente de suas fontes documentais, redefinindo a própria noção de História e de documento.

No Brasil, a historiografia dominante até aquele momento era essencialmente factual e descritiva, voltada para as questões do poder central, para os temas político-institucionais, as biografias dos "vultos da História", os feitos militares, enfim, o mundo das elites. Isto implicava o predomínio de uma noção restrita (e conservadora) não só dos temas ou conteúdos, como também das fontes documentais, das técnicas de investigação e dos métodos. Capistrano de Abreu, que havia sido funcionário da Biblioteca Nacional (deixou-a em 1900) e falecera em 1927, um ano antes da criação da Documentos Históricos, era então o principal renovador da historiografia brasileira distinguindo-se por sua visão crítica e por iniciar, no terreno estrito da História, a passagem da abordagem factual-descritiva para a social-interpretativa.

Foi na década de 1920, sob o influxo também do conjunto de mudanças sócio-econômicas, políticas e culturais em marcha no país, que ganharia maior expressão a modernização dos estudos históricos e sociais, inclusive com o aparecimento das nossas primeiras investigações sociológicas. Evolução do povo brasileiro (1923), de Oliveira Viana, O Brasil na América Latina, caracterização da formação brasileira (1929), de Manoel Bomfim, Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado, Casa-grande e senzala (1933) de Gilberto Freire, Evolução política do Brasil, de Caio Prado Júnior, (1934) e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, são algumas das obras mais representativas desse momento. Embora adotassem orientações teóricas e metodológicas diferentes, esses autores mudavam, alguns deles profundamente, a forma de pensar sobre o país, sobretudo por passarem a problematizá-lo a partir dos fundamentos e aspectos sociais, econômicos, políticos, culturais e ideológicos da “realidade brasileira”.

Documentos Históricos surge nesse período, embora, não obstante a sua importância, inexistisse uma relação intencional com aquelas mudanças. A finalidade da coleção, conforme assinalava a brevíssima (e não assinada) apresentação do primeiro volume, era apenas "atender à necessidade de os divulgar, tornando-os conhecidos e facilitando a sua consulta e estudo a todos os que se dedicam à investigação dos fatos da nossa história, mas também a conveniência de subtrair o conteúdo desses valiosos papéis à ação destruidora da traça". Os editores expressavam preocupações do bibliotecário — organizar e divulgar a documentação — e também do arquivista, sobretudo se atentarmos para o fato de que a coleção era uma realização conjunta do Arquivo Nacional e da Biblioteca Nacional. Em 1930, ambas as instituições pertenciam ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, e os dois primeiros números publicaram documentos do Arquivo Nacional.

Mesmo sem a intenção de representar alguma tomada de posição no terreno historiográfico, a coleção Documentos Históricos iria dar uma expressiva contribuição ao desenvolvimento dos estudos históricos e das ciências humanas em geral no Brasil, proporcionando aos pesquisadores acesso a fontes indispensáveis. Até hoje inúmeros estudos e teses, principalmente em História e Geografia , continuam a se valer dessa documentação, o que é a materialização, numa de suas formas superiores, do cumprimento de uma das missões das bibliotecas nacionais.

O padrão editorial é primordial na transcrição de documentos antigos. No caso desta coleção, os seus primeiros responsáveis optaram pela "modernização da ortografia", ou seja, pela atualização da escrita, além de outros critérios como o desdobramento das abreviaturas, "pondo o texto ao alcance de todos os leitores". A partir de 1946 — segundo informa José Honório Rodrigues na apresentação do volume LXXXV — a Biblioteca Nacional adotou como modelo as Normas de Transcripción y Edición de Textos y Documientos (Madri, 1940), como também as do Comité Histórico Anglo-Americano, estabelecidas em 1923. No dizer de José Honório, seria a "edição autêntica, mas inteligente, que facilita a tarefa do leitor, pelo desdobramento das abreviaturas, pela emenda correta, pela adoção de determinado sistema ortográfico, pelas modificações da pontuação, pela interpretação fiel". A transcrição dos documentos ficou durante anos sob a responsabilidade do paleógrafo Manuel Alves de Souza, que mais tarde a transferiu aos filhos, Mário e Alice Alves de Souza. Eles respondiam também pela edição final do texto.

Interrompida em 1955, quando foi publicado o volume 110, a coleção foi duas vezes retomada: em 1998, com a publicação do volume 111, e em 2011, com a publicação do volume 112. Nesta nova fase, optaram os editores pela transcrição conservadora dos fatos (fonéticos, sintáticos e morfológicos) da língua, acompanhada das indispensáveis intervenções críticas e das atualizações de praxe (ortografia e desdobramento das abreviaturas), sem que haja qualquer prejuízo para a fidelidade da transcrição. A edição do texto, no volume 111, foi feita pelas especialistas Maria Filgueiras Gonçalves e Alice Assed Kik Estefan. A transcrição do documento fora efetuada pelo paleógrafo Deoclécio Leite Macedo, autor de inúmeros trabalhos realizados para o Arquivo Nacional, o Ministério das Relações Exteriores e a própria Biblioteca Nacional.

A dupla retomada da coleção traz outras inovações. Uma delas é a publicação, a título de introdução, de um estudo sobre o documento, preparado por especialistas e destinado a contextualizá-lo e comentar as suas possibilidades informativas. No volume 111, que publica um Tombo das cartas de sesmarias do Rio de Janeiro dadas por Cristóvão de Barros (1573-74), a tarefa foi confiada ao historiador João Luis Ribeiro Fragoso, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista na história colonial do Brasil; no volume 112, que transcreve o Diário do tenente-coronel Albuquerque Bello: Notas extraídas do caderno de lembranças do autor sobre sua passagem na Guerra do Paraguai, a introdução, assim como a organização e notas foram feitas pelos historiadores Ricardo Salles, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, e Vera Arraes.

Resta, porém, à instituição criar o conselho editorial da coleção, com a incumbência de estabelecer um plano de publicações. Em 1949, ao apresentar o volume LXXXV, José Honório Rodrigues chamou a atenção para a inexistência desse plano, o que, segundo observou, tornava "arbitrária" a escolha dos documentos a serem publicados. Interessado pessoalmente na documentação sobre a Independência, José Honório publicou todo o material existente na Biblioteca Nacional referente à Revolução de 1817 (volumes CI a CIX) e à Conspiração dos Suassuna (volume CX), em Pernambuco — fatos do período por ele determinado de "pré-nacional ou nacional" ou, ainda, de período de "nascimento da consciência nacional". Ele justificava a sua escolha com o argumento de que o interesse pelo "período nacional" (no Brasil, em 1950, a onda nacionalista começava a motivar muitos intelectuais a se interessar por temas como a “gênese” e a “evolução” da "consciência nacional") sobrepujava o interesse pelo "período colonial" (Introdução ao vol. CVIII, p.1). Embora tenham sido planejados e publicados mais dez expressivos volumes, a coleção permaneceu sem plano até ser interrompida em 1955.

O plano editorial não é suficiente, porém, para que a coleção saia do exílio a que foi relegada e volte a desempenhar o papel de facilitar ao pesquisador a consulta às fontes históricas. É preciso criar na Instituição as condições técnicas para se garantir a qualidade e a regularidade. Além do conselho editorial, é indispensável preparar equipe de paleógrafos, sem a qual não se lê e nem se edita, como se deve, o documento antigo. E, obviamente, dar continuidade à pesquisa voltada para a produção e ampla divulgação da informação, seja na forma da transcrição das grandes corpos de fontes manuscritas guardados na Casa, seja mediante a preparação de catálogos e bibliografias, os quais são tradicionalmente publicados na Coleção Rodolfo Garcia ou nos Anais da Biblioteca Nacional.