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História da Alimentação | Como pensar o Brasil sem o café?

01 ago 2020

Artigo arquivado em História da Alimentação
e marcado com as tags Alimentação, História do Café

Muitos de nossos leitores podem estar, neste exato momento, degustando a segunda bebida mais consumida no mundo: o café – a primeira, aliás, é uma tal de água. A Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC), nos mostra aquilo que, no fundo, já sabemos de cor: 9 entre 10 brasileiros com mais de 15 anos o consomem. Puro, “pingado”, expresso, cappuchino. Vale até café gelado, em drinque ou sem álcool. No Brasil, aliás, sequer existe o “dejejum”: existe o “café da manhã”, expressão que denota a suposição de que o comensal vá calcar a refeição no consumo da bebida. E está errado? De qualquer maneira, ocorre que, para o Brasil, o café é bem mais do que se imagina.

Quem diria que a ingestão de uma bebida surgida na Etiópia, por volta do século IX, faria toda a diferença para uma nação gigantesca do outro lado do Atlântico, mais de mil anos depois? Nada mais justo: desde o Império, o consumo do café moldou a sociedade brasileira e sua cultura, definindo os rumos da política e da economia do nosso país. Quando se olha para a bandeira do Brasil imperial, trazendo o brasão criado na Independência, o ramo disposto à esquerda, dentro do retângulo áureo – ou seja, à direta da coroa – é de café, devidamente frutificado. Como não poderia deixar de ser, o brasão de armas do Brasil republicano traz o mesmo ramo, no mesmo lugar. Justo: o poder político e econômico da elite cafeeira paulista ao fim do século XIX foi determinante para o fim da monarquia e para o estabelecimento de um novo regime, pouco diferente do anterior. E também para o atraso na abolição da escravatura.

Arguto, Lima Barreto ironizava a recém-nascida República identificando-a como outro país, distante, mas real: em 1889 éramos a República do Kaphet. O sátiro dos bruzundangas colocava tudo de forma bem simples: “No fundo, o que se deu em 15 de novembro foi a queda do Partido Liberal e a subida do Conservador, sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados”. Em plena ascensão no final do século XIX, trazendo a reboque a debilitada economia nacional, a produção de café no interior paulista colocava as pessoas certas nos lugares certos, na política. Homens como Campos Salles e Prudente de Moraes.

Às vésperas da República, pelos moldes em que o regime se estabelecia, os cafeicultores precisavam da mão-de-obra escrava – e fizeram jogo duro para abrir mão dela. Enquanto abolicionistas queriam libertar o negro, produtores paulistas de café só estavam dispostos a fazê-lo quando o conseguissem substituir: o que aconteceu, através do incentivo à imigração. Em seguida, a hoje chamada República Velha, sob os moldes da alternância entre oligarquias paulistas e mineiras no poder, é reconhecida pela chamada política do “café-com-leite”, este representando Minas, aquele São Paulo – perfeitamente ilustrada nesta capa da revista Careta, de 1925. Economia ditando regras, interesses e políticas públicas. República do Kaphet.

A influência do café, é claro, não parou por aí. O escoamento da produção brasileira, para atender às mercados internacionais, forçou a modernização dos transportes no país, interligando províncias. A mão do Estado sempre esteve ali: o chamado Convênio de Taubaté, reunião entre autoridades paulistas, mineiras e fluminenses em 1906, fixou a intervenção federal em benefício dos cafeicultores. Estes acabaram financiando boa parte da industrialização e da urbanização de São Paulo e do Rio de Janeiro. Com a crise econômica de 1929 e o início da Era Vargas em 1930, o novo governo se viu obrigado a nacionalizar as dívidas que o governo paulista contraiu no exterior. A economia cafeeira enfim entrou em crise, mas se reergueu: hoje, a produção de café continua sendo uma das principais do Brasil, que o vê principalmente em São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo, Bahia e Rondônia.

Exemplo do hoje habitual marketing envolvendo o mundo do futebol, mesmo a forte Seleção Brasileira de 1982 desempenhou um momento icônico na história do café nacional: estreou na Copa do Mundo daquele ano com um ramo de café dentro do escudo da CBF, patrocínio do Instituto Brasileiro de Café (IBC), sob aplauso do regime militar, que esperava os devidos dividendos. Hoje o selecionado colombiano é apelidado de “cafeteiro”, mas nós já tivemos Sócrates, Zico, Falcão, Toninho Cerezo, Reinaldo e Roberto Dinamite propagandeando nossa bebida nacional mundo afora.

Mil desculpas a quem o prefere fraco: o café é forte, isso sim.

Explore o documentos:

Carregadores de café no porto de Santos

Carregadores de café com 4 e 5 sacos, no porto de Santos (1909?)

Johann Steinmann (1800-1844). Souvenirs de Rio de Janeiro. p. [Gravura 01]. Plantaçao de café

Marc Ferrez (1843-1923). Depart pour la cueillette du café (1870-1899)

Fazenda Guatapará. Terreiro com Café

Guilherme Gaensly (1843-1928). Lembrança de São Paulo. p. Foto 42. Colheita de café em Araraquara

Guilherme Gaensly (1843-1928). Lembrança de São Paulo. p. Foto 43. Cafezal

Luiz Terragno. Machinas para beneficiar o café (19--)

Anuncio em Machinas para beneficiar o café, de Luiz Terragno


Revista Careta, edição 897, de 29 de agosto de 1925.