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História do Livro | Enciclopédias e A Enciclopédia

03 nov 2020

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No início da Idade Moderna, a tentativa de sistematizar o conhecimento humano, fornecendo informação rápida e organizada acerca de qualquer assunto, fez com que surgissem mais e mais obras de referência. As de Geografia já eram abundantes desde o século XVI, assim como almanaques, coletâneas de leis e de orações, catálogos de livreiros e bibliotecas e, ainda dicionários, que se multiplicaram a partir dos séculos XVII e XVIII.

No mesmo período, as enciclopédias, destinadas a abarcar todos os ramos da ciência e do saber, passaram a contar com um número cada vez maior de volumes. Algumas rivalizavam entre si, superando a “adversária” por meio de expansões que, inclusive, ultrapassavam o período de vida de seu idealizador. O historiador Peter Burke cita a “Oekonomische Encyklopädie” do alemão Johann Georg Krünitz, que, de 16 volumes iniciais, passou por várias ampliações até chegar a 242 volumes – o autor faleceu enquanto trabalhava no septuagésimo terceiro. Nada tão grandioso em vista das enciclopédias chinesas, das quais Peter Burke diz ter havido nada menos que 139 durante o Período Ming (1368-1644). Uma chegou a ter 10.000 volumes, enquanto uma obra patrocinada pela Dinastia Qing e publicada em 1726 tinha ao todo mais de 750.000 páginas. Já na Europa eram comuns as enciclopédias com algumas dezenas de volumes, dos quais, muitas vezes, se extraíam referências rápidas a fim de compor livros “portáteis”: enciclopédias em volume único, às vezes até de bolso, que resumiam as informações contidas na obra integral.

A proposta de escrever trabalhos tão extensos e abrangentes envolvia, quase sempre, mais do que um único autor. Na China, segundo Burke, a “Yongle Dadian”, do século XV, teve 2.000 colaboradores. No Ocidente, os editores passaram a contratar equipes de redatores e pesquisadores que trabalhavam em conjunto, além de outros profissionais, como gravuristas e tipógrafos. A publicação por assinatura era muito comum, e patrocinou as duas enciclopédias britânicas mais conhecidas na época: a “Cyclopaedia” em dois volumes, de Ephraim Chambers (1728), e a “Britannica”, ação conjunta do gravador Andrew Bell e do impressor Colin Macfarquhar, ambos residentes em Edimburgo (1768-1771). A “Britannica” saiu pela primeira vez sob a forma de fascículos semanais que depois podiam ser encadernados em três volumes; é a mais conhecida das duas, atualizada até os dias de hoje, quando existe em formato digital. Já a “Cyclopaedia”, que teve uma única reedição após a morte do autor, foi o ponto de partida para a mais famosa enciclopédia de todos os tempos: a “Encyclopédie, ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers”, organizada por Denis Diderot e Jean d´Alembert.

A história da Enciclopédia foi estudada e narrada em detalhes pelo historiador Robert Darnton em seu livro “O Iluminismo como Negócio”. Seus editores originais – André Le Breton, Antoine-Claude Briasson, Michel David e Laurent Durand -- tinham como plano inicial a publicação em quatro volumes de uma tradução da “Cyclopaedia” de Ephraim Chambers, para o que adquiriram três diferentes privilégios, ou seja, licenças de publicação. Os planos eram para a impressão de 1625 exemplares, mas o número de assinaturas cresceu a ponto de a tiragem ser triplicada. No prospecto de 1751, quando a publicação foi iniciada, prometiam-se oito volumes de texto e três de ilustrações, e o padrão se repetiu ao longo das décadas seguintes. Ao mesmo tempo, os editores e articulistas lidavam com a censura por parte do Estado – que revogou os privilégios e proibiu a impressão da obra – e a condenação da Igreja, que, em 1759, incluiu a “Encyclopédie” no Index de livros proibidos.

Apesar dos percalços, Diderot, principal responsável pela obra, e vários articulistas continuaram a trabalhar em segredo, ao passo que os editores lançaram mão de vários artifícios, tais como a mudança de título para publicação das ilustrações. Os dois últimos volumes apareceram em 1772, completando um total de 28, dos quais 17 continham texto – somando pouco menos de 72.000 artigos – e os demais pranchas ilustradas, com um total de aproximadamente 3.000 gravuras. A primeira edição saiu em formato in folio (cerca de 26,5 X 39,5 cm) e era bastante cara; não teve vendas significativas em termos de números, mas, segundo Darnton, garantiu uma fortuna para os editores. A obra ainda estava sendo publicada quando surgiram edições “piratas” fora da França, sobretudo na Itália, ampliando o interesse pela Enciclopédia em toda a Europa.

Em 1768, os direitos das futuras edições, bem como as matrizes de cobre das gravuras, foram adquiridos por um editor de Lille, Charles-Joseph Panckoucke, e seus associados. Estes logo venderam as cotas para dar lugar a novos sócios, entre os quais editores de Genebra e Amsterdam. Foi o grupo de Panckoucke que, mais tarde, veio a publicar edições in-quarto e in-octavo, menores e mais baratas, com as quais a Enciclopédia chegou às mãos de um público muito mais amplo.

Tida como o grande best-seller do Iluminismo, a Enciclopédia foi de fato um grande empreendimento comercial, assim como cultural. Além do filósofo Diderot, que a ela dedicou 25 anos de trabalho, e do físico e matemático d´Alembert, contou com a colaboração de nomes como Voltaire, Rousseau e Montesquieu; passou com sucesso por uma acidentada trajetória que envolveu contrafacções, espionagem editorial e acordos internacionais. E se a publicação, como adverte Robert Darnton, não pode ser considerada por si só um catalisador para o movimento revolucionário, percebe-se, por outro lado, que o ideário segundo o qual a Razão e a Ciência devem triunfar sobre modelos baseados tão-somente na tradição estava presente em cada um daqueles volumes.

Diderot e d ´Alembert se encontram entre autores célebres nesta litogravura de Jacques Llanta, datada das primeiras décadas do século XIX.


A Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional possui uma edição da Enciclopédia, in-folio, composta pelos 17 volumes de texto e 11 de pranchas, além de suplementos. Os exemplares possuem carimbo da Real Biblioteca e do INL – Instituto Nacional do Livro.