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História do Livro | O Dicionário de Bluteau

15 nov 2020

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Em sua apresentação à “Enciclopédia”, mencionada pelo historiador Peter Burke, D´Alembert informa que existem dois métodos básicos, empregados no Ocidente, para organizar a informação. Um é o temático, adotado pelas enciclopédias; o outro é a ordem alfabética, ou seja, o “princípio do dicionário”.

Burke informa que a ordem alfabética foi empregada pela primeira vez numa enciclopédia bizantina do século XI e desde então foi bastante utilizada, tanto em publicações quanto como forma de ordenar os catálogos das bibliotecas e museus. Tornou-se ainda mais comum no decorrer do século XVII, e ganhou ainda mais força quando, no final do século XVIII, as bibliotecas passaram a organizar seus catálogos por meio de fichas.

Entre as muitas obras de referência existentes na época destacam-se os próprios dicionários, termo que, segundo o Dicionário Michaelis, define uma “coleção, parcial ou completa, das unidades lexicais de uma língua (palavras, locuções, afixos etc.), em geral dispostos em ordem alfabética, com ou sem significação equivalente, assim como sinônimos, antônimos, classe gramatical, etimologia etc., na mesma ou em outra língua.”. Por extensão, refere-se a vocabulários próprios de uma determinada arte ou ciência, ou em determinada época, e pode ainda ter uma especificidade; esse é o caso, por exemplo, dos dicionários etimológicos ou históricos.

A obra que passamos a apresentar é tida como um marco na história da lexicografia da língua portuguesa. Trata-se do “Vocabulario Portuguez e Latino” do padre Raphael Bluteau, publicado em oito volumes in-folio entre 1712 e 1728. Bluteau (1636 – 1734) nasceu na Inglaterra, mas estudou na França, terra natal de seus pais, onde ingressou na Ordem dos Clérigos Regulares e se doutorou em Teologia. Foi enviado a Lisboa em 1668 e, a partir de 1680, começou a recolha de material para compor o dicionário que ocuparia cinco décadas de sua vida.

O trabalho contou com alguns colaboradores, membros de Academias científicas e literárias, e teve sua impressão adiada algumas vezes antes de ser publicado às custas do erário público. Segundo o pesquisador português João Paulo Silvestre, era uma obra de muito mais vulto do que as precedentes, o “Dictionarium Lusitanico Latinum” de Agostinho Barbosa (1611) e o “Thesouro da Lingoa Portuguesa”, de Bento Pereira (1647); não se destinava a funções práticas ou pedagógicas, mas sim a figurar na biblioteca de homens cultos, propondo-se ainda a ser um auxiliar da composição literária. Fatores como o preço e a portabilidade foram, assim, de pouca importância.

Como de costume, a obra é precedida por vários textos – cartas, licenças, poemas, índices de autores consultados e de abreviaturas, entre outros. O primeiro é uma dedicatória a D. João V, na qual Bluteau diz que o “Vocabulário” vem afirmar a grandeza da língua portuguesa, bem como a do rei. No entanto, este não é um dicionário apenas da língua; é também histórico, toponímico e etimológico, busca reunir informações sobre o vocabulário específico de vários campos da ciência, de forma a se constituir no que podemos chamar de “dicionário enciclopédico”.

Embora tenha se valido de muitas fontes escritas e obras de referência, Bluteau afirma ter ido buscar parte dos vocábulos diretamente onde eram utilizados; disse ter estado em forjas, moinhos e oficinas para registrar a fala dos trabalhadores, daí resultando um retrato vivo e diverso do que era então a língua portuguesa. Pouco espaço foi reservado para o latim, mas o autor contemplou alguns vocábulos provenientes das colônias. Em artigo recente, os pesquisadores Jorge Domingues Lopes, da UFPA, e Ana Suelly A. C. Cabral, da UnB mapearam o “Vocabulário” e encontraram cerca de 300 entradas relativas ao Brasil, 120 das quais se referem a termos derivados de línguas faladas pelos povos indígenas, especialmente de origem tupi.

Veja o primeiro volume do “Vocabulário”, pertencente à Divisão de Obras Raras e digitalizado a partir do microfilme. Na página de rosto, tem-se a ideia de como Bluteau pretendia cobrir o vocabulário referente a várias artes e ciências (áulico, anatômico, arquitetônico, bélico...).



O restante da coleção, da qual alguns volumes estão incompletos, também se encontra acessível através da BN Digital.