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História Geral  | Lech Walesa, o Solidariedade frente ao poder

17 ago 2020

Artigo arquivado em História Geral

A cooperação parcial entre Hitler e Stálin marcou a primeira fase da Segunda Guerra Mundial. Em 1939 os tanques panzers alemães invadiram o território polonês, vindos do oeste, e as tropas russas fizeram o mesmo, vindas do leste. Hitler tinha acordado secretamente com Stálin que a parte oriental do país ficaria com a União Soviética. O casamento entre o nazismo e o comunismo durou até a Operação Barbarossa, em 1941, quando a aliança chegou ao fim. O pacto teuto-soviético de não-agressão, assinado poucos dias antes da invasão e partilha da Polônia, foi rompido sem aviso prévio quando Hitler promoveu um ataque em massa contra as tropas de Stálin ao leste. Já no fim de 1944, o Comitê Lublin, apoiado por Moscou, recebera reconhecimento soviético oficial como governo provisório do país, enquanto os comunistas assumiam o controle da polícia e do aparato de segurança. O Governo Nacional, exilado em Londres desde o começo da guerra, reconhecido como o legítimo governo polonês, não tinha qualquer poder. Na Conferência dos Aliados em Yalta, em 1945, Stálin parecia concordar com as eleições na Polônia. Quando as eleições enfim ocorreram, em janeiro de 1947, foi num contexto de intimidação e repressão por parte dos soviéticos. A história polonesa entre 1945 e 1989 compreende o período de domínio soviético e do governo comunista.

Nova vida foi insuflada desde os finais da década de 70 e ao longo da de 80. Os dissidentes começaram a lutar contra as pretensões globalizantes do estado totalitário. Na manhã de 14 de agosto de 1980, um eletricista decidiu enfrentar o poderio comunista: pulou a cerca do estaleiro Lênin, em Gdansk, no norte da Polônia, para liderar uma greve de metalúrgicos. Na ocasião, o sindicalista católico Lech Walesa, que viria a ser o maior porta-voz anticomunista da Europa nos anos 1980 e presidente da República de 1990 a 1995, escalou um muro com o propósito de desafiar o governo, fato que o transformou imediatamente num herói nacional. Mais de 16 mil pessoas protestaram contra o alto custo de vida e as difíceis condições de trabalho.

Irritados com o aumento de preços determinado pelo governo comunista, os grevistas fizeram 21 exigências, entre elas o direito de organizar-se em sindicatos livres e independentes. Greves espontâneas se disseminaram pelas fábricas de todo o país. A reação dos trabalhadores poloneses se concretizou com a fundação do sindicato Solidariedade (Solidarność), liderado por Walesa. Em setembro, o governo assinou um acordo com os grevistas que permitiu a organização legal, e não mais clandestina, da Comissão de Coordenação Nacional do Sindicato Comercial Livre Solidariedade, que se tornou uma força política. Tal movimento encontrou amplo apoio do Papa João Paulo II, filho daquele país. O papa Wojtyla se expressou revisando o sucesso dos trabalhadores poloneses naquela década, no número 23, da encíclica Centesimus Annus:

"De entre os numerosos fatores que concorreram para a queda dos regimes opressivos, alguns merecem uma referência particular. O fator decisivo, que desencadeou as mudanças, é certamente a violação dos direitos do trabalho. Não se pode esquecer que a crise fundamental dos sistemas, que pretendem exprimir o governo ou, melhor, a ditadura do proletariado, inicia com os grandes movimentos verificados na Polônia, em nome da solidariedade. São as multidões dos trabalhadores a tornar ilegítima a ideologia, que presume falar em nome deles, a reencontrar e quase redescobrir expressões e princípios da doutrina social da Igreja, a partir da experiência difícil do trabalho e da opressão que viveram. Merece, portanto, ser sublinhado o fato de, quase por todo o lado, se ter chegado à queda de semelhante «bloco» ou império, através de uma luta pacífica que lançou mão apenas das armas da verdade e da justiça."

As grades de ferro da entrada principal do Estaleiro pareciam um grande altar de romaria. Além dos dois retratos de João Paulo II emoldurados, colocaram também imagens da Virgem de Chestokoma e de alguns outros santos, tudo misturado a muitas flores e bandeiras vermelhas e brancas, cores nacionais da Polônia. Uma grande cruz de madeira também foi colocada diante do portão. Em Roma, no dia 20 de agosto de 1980, dirigindo-se a Deus e invocando a Santíssima Virgem Maria, o Papa polonês procurou demonstrar, diante de 20 mil peregrinos e turistas presentes à sua audiência na Praça de São Pedro, "o quanto aqui em Roma, estamos unidos aos nossos compatriotas na Polônia, com a Igreja que está na Polônia e com os seus problemas." (Ver aqui)

A imprensa soviética, que recriminava a situação desconcertante, preferiu manter silêncio sobre os acontecimentos: http://memoria.bn.br/docreader/030015_10/11679. A tática das autoridades para desmoralizar a greve apoiou-se na difusão de boatos e no completo isolamento da região Norte das redes telefônicas e de telex normais, o que dificultou seriamente o trabalho de jornalistas e de dissidentes: http://memoria.bn.br/docreader/030015_10/11719. Mas o governo terminaria negociando com o chefe do sindicato independente. Era o princípio do fim da era do velho comunismo na Europa.

Em janeiro de 1981, Walesa esteve em Roma, com uma delegação do Solidariedade, e foi recebido pelo Papa de modo muito caloroso (Ver aqui e aqui). O discurso de Walesa ao pontífice foi de improviso. Mas João Paulo II havia escrito o seu e justificou-se: "O Sr. Walesa é um jovem e por isso pode falar de improviso, mas eu sou um velho e preciso ler meu discurso."

No mesmo ano, numa sessão do Politburo soviético, de 8 de abril, Brejnev chegou a lamentar que o regime polonês, embora consciente do perigo que o Papa representava, não estivesse fazendo nada de concreto para impedir sua influência. Um relatório da KGB sobre a atividade do Vaticano nos Estados socialistas, comunicando aos serviços dos "países irmãos', assinalou o caráter ameaçador da obra da Igreja para a estabilidade socialista: "Atualmente, a tarefa principal da política externa vaticana consiste em reforçar o papel da Igreja católica no interior da vida política e social dos Estados socialistas e transformá-la num poder real em condições de influenciar a política interna e externa desses Estados. (Cf. J.O. Koehler, Il libro che il Vaticano non ti farebbe mai leggere, Roma, 2009, p. 145).

Quando a jornalista italiana Oriana Fallaci entrevistou Lech Walesa em Varsóvia em 1981, o líder do Solidariedade confirmou o papel desempenhado pela Igreja na Polônia: "Sem a Igreja nada teria acontecido e eu próprio não teria existido, ou não seria o que sou. Digo mais: se eu não fosse um crente sincero, nunca teria resistido a tantas ameaças. [...] Para nós, poloneses, a Igreja é um símbolo de luta. Ela nunca se submeteu aos opressores." A entrevista foi publicada pela Revista Manchete na edição de 4 de abril de 1981 e pode ser conferida aqui: http://memoria.bn.br/docreader/004120/200760.

Nesse início de década, o Solidariedade, símbolo da oposição operária ao regime totalitário, ainda não estava fortemente estruturado, mas se achava presente em todo o país. O sindicato foi gradualmente assumindo o papel análogo ao de um partido político, tornando-se alvo de várias críticas. Os membros da organização sindical aspiravam à autonomia e à liberdade da Polônia, algo inaceitável para Brejnev. Depois de quinhentos dias de existência do Solidariedade, foi imposta lei marcial em dezembro de 1981 e milhares de seus membros foram presos, entre eles Lech Walesa. Dentro e fora da prisão, seus membros continuaram a organizar greves. Walesa foi libertado em 1982. No ano seguinte, ganhou o prêmio Nobel da Paz por sua obra, que o comitê considerou simbólica da esperança e da liberdade. Em 9 de novembro de 1990, tornou-se o primeiro presidente da Polônia escolhido em eleições democráticas com mais de 74% dos votos. (Cf. Hilary Poole (org. et al. Direitos Humanos: Referências essenciais. São Paulo: Edusp, 2007, p. 303)


http://memoria.bn.br/docreader/004120/198849

Para ler a entrevista completa de Walesa, acesse os links disponíveis:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/200760

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/200761

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/200762

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/200763

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/200764