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Literatura | Adalgisa: augúrio, alento, amor

07 jun 2021

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e marcado com as tags Adalgisa Nery, Modernismo, Mulheres Na Imprensa, Poesia, Poesia Brasileira, Secult

Há 41 anos, num asilo junto ao então verde bairro carioca de Jacarepaguá, uma das maiores poetisas do modernismo brasileiro – e também uma das mulheres mais importantes da história do jornalismo brasileiro – vivia seus últimos dias. Era mais uma de tantas figuras de vulto na cultura que passavam ao outro plano em quase total esquecimento: coisa que sempre nos deixa a pensar em quão bárbara é nossa civilidade. Depois de sofrer um acidente vascular cerebral em 1977, Adalgisa Nery, que no final do ano passado completaria 115 anos, falecia, no dia 7 de junho de 1980. Na época, quase sem um tostão, apesar dos 12 livros publicados, em mais de 35 anos, e depois de provocar tantos rebuliços na imprensa nacional, em seu tempo.

Nascida num Rio de Janeiro ainda Distrito Federal, em 29 de outubro de 1905, Adalgisa Maria Feliciana Noel Cancela Ferreira era cria do bairro de Laranjeiras. Se é verdade o que diz Roberto Bolaño, que os poetas aguentam tudo, o caso da futura poeta, romancista, contista e jornalista seria digno de nota: de início, se tornou órfã de mãe aos apenas oito anos de idade. No segundo casamento do pai teve que lidar com uma madrasta difícil. Se rebelou, foi expulsa da escola. Sensibilidades que dialogariam com o fato de Adalgisa ser, mais tarde, mais ligada à poesia do que a qualquer outra coisa. Seu primeiro poema publicado deu as caras na Revista Acadêmica, em 1937, mesmo ano em que publicou seu primeiro livro, uma antologia poética. Na época, já muitas águas haviam rolado: desde 1934 era viúva do pintor Ismael Nery, um dos precursores do modernismo brasileiro. Tinha se casado com apenas 16 anos justo no emblemático ano da Semana de Arte Moderna, 1922. Conviveu, nesse contexto, com figuras como Heitor Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Mário Pedrosa, Graça Aranha, Álvaro Moreyra, Pedro Nava, Murilo Mendes, entre tantos outros, como não poderia deixar de ser – fora os das vanguardas artísticas europeias, quando ela e o marido se estabeleceram em Paris, entre 1927 e 1929: Marc Chagall, Juan Miró, Tomas Terán. Mas a relação de Adalgisa com Ismael foi céu e inferno, marcada tanto pela efervescência intelectual quanto pela violência doméstica. Situação bela e trágica, como a própria poesia. Acabou tendo sete filhos com o primeiro marido, todos homens, mas apenas dois, o mais velho e o caçula, sobreviveram: eis Ivan e Emmanuel.

Embora viúva aos 29 anos, e com dois rebentos para sustentar sozinha, sem grandes poupanças, Adalgisa Nery continuava bem relacionada. E arregaçava as mangas, quase um escândalo frente ao atrasado papel social que então se impunha às mulheres de então: trabalhou na Caixa Econômica Federal e no Conselho de Comércio Exterior no Itamaraty. Pouco depois de debutar na imprensa e no meio literários, onde passou a figurar não mais como apenas a esposa de alguém, começou a colaborar com a célebre revista Diretrizes, do bamba Samuel Wainer. Mas a verdade é que nessas alturas já era, afinal, esposa de certo alguém: o fato de seu então segundo marido ser outro medalhão, Lourival Fontes, simplesmente o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em pleno Estado Novo de Getúlio Vargas, oferecia à revista, afinal, uma censura mais frouxa. Acompanhando o marido em viagens diplomáticas ao exterior na década de 1940, Adalgisa trocou figurinhas, no México, onde se estabeleceu com Lourival, agora embaixador brasileiro por aquelas bandas da América, com ninguém menos que Frida Kahlo, Diego Rivera e José Clemente Orozco, sendo retratada pelos dois últimos. Por uma série de conferências sobre a poeta local Sor Juana Inés de la Cruz, acabou condecorada pelo governo mexicano com a Orden del Águila Azteca – foi a primeira mulher a ficar com a comenda, em 1952. Mais interessante é saber o quanto havia marcado Frida, aparecendo de forma curiosa no diário da pintora.

Foi depois de sua incursão no modernismo e nas altas esferas diplomáticas que Adalgisa se consagrou no jornalismo, feito que data da década de 1950, especificamente com sua participação como colunista no diário popular Última Hora, também de Samuel Wainer. 1953 foi um ano daqueles: enquanto lançava coletânea de poemas em Paris, traduzidos pelo editor francês Pierre Seghers, se separava de Lourival – e, consequentemente, de todo um aparato oficial que a ajudava a se mantar no topo. Sabendo que estava novamente divorciada e com a saúde debilitada, Wainer, amigo, havia pedido a ela um artigo – colocando-o no segundo caderno. Quando recebeu o artigo seguinte, Wainer lera o sucinto aviso, anexado ao texto: “Quero o caderno dos homens, o primeiro caderno”. Justo. “Retrato Sem Retoque”, a coluna de Adalgisa em Última Hora, foi um sucesso, publicada de 1954 a 1966. Ali, seus artigos de denúncia fizeram-na comprar briga com muitos poderosos, o maior deles Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados – e desafeto de Samuel Wainer. Uma mulher na imprensa que, além de divorciada duas vezes, cismava em tratar justo de política, e não de moda, culinária, educação dos filhos ou utilidades domésticas? Pois sim. Quando Chatô anunciou sua segunda candidatura a senador, em 11 de janeiro de 1955, depois de manobras políticas que incluíam a renúncia do senador eleito Alexandre Baima, Adalgisa disparou um petardo intitulado “Arranjos Políticos”. A briga foi feia, de foice e martelo no escuro – e longa, pelos padrões da imprensa; se manteve por vários artigos, indo parar até na edição de 7 de fevereiro de 1955 da revista americana Time. Na edição de 18 de fevereiro de 1955 de Última Hora, o alvo de Adalgisa era o lançamento da candidatura de Juarez Távora.

Por conta de sua combatividade, Adalgisa Nery exerceu três mandatos como deputada, primeiro pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1960, com posterior passagem pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB): atuou na Assembleia Constituinte do Estado da Guanabara, até sua cassação em outubro de 1969, pouco antes do Ato Institucional nº 5 (AI-5). Mas aí já eram outros tempos, bem diferentes da Era Vargas: sua coluna na Última Hora há muito era censurada. O jornalismo, ofício sempre arriscado, fechava suas portas. Desse ponto em diante, até sua morte, o ostracismo parecia vir em doses homeopáticas para Adalgisa. Seus livros não rendiam muito. Sua reputação, como mulher que gostava de se meter com política, e ainda por cima na oposição ao regime militar, depunha mais contra do que a favor. Contou então com a ajuda do filho mais novo, Emmanuel Nery, artista visual, e com favores de Flávio Cavalcanti, jornalista e apresentador televisivo. Sobrevivia, dava seu jeito. Mas a idade cobrava a fatura. Em 1976, um retrato de solidão: deu entrada por conta própria numa clínica geriátrica em Jacarepaguá, de onde não sairia mais, depois de um acidente vascular cerebral.

Quem a visse acamada, em seus últimos momentos, mal poderia acreditar nas palavras que Frida Kahlo utilizara para descrever Adalgisa em seu diário: “Augurio, aliento, aroma, amor, antena, ave, abismo, altura, amiga, azul, arena, alumbre, antigua, astro, axila, abierta, amarillo, alegria, almircle, alucema, armonia, América, amada, agua, ahora, aire, artista, acácia, ayer, aurea, aviso, ágata, alta, apóstol, arbol, acierto, arca, arma, amargura”.

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http://memoria.bn.br/docreader/386030/311

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