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Literatura | BLOOMSDAY 2021

16 jun 2021

Artigo arquivado em Literatura

Hoje, em várias partes do mundo, mas especialmente na Irlanda, terra de James Joyce, amantes da literatura se reúnem, realizando diversas atividades com intuito de relembrar os acontecimentos vividos pelas personagens do romance Ulisses, nas dezenove ruas de Dublin. É o único feriado do mundo dedicado a um livro (excetuando-se a Bíblia). Trata-se do Bloomsday. A data é celebrada por fãs de literatura em diversos países, incluindo o Brasil.

Aproveitando o clima de celebração literária, a Fundação Biblioteca Nacional não poderia deixar de recordar os laços privilegiados de amizade histórica que o Brasil mantém com os irlandeses. Brasil e Irlanda estabeleceram relações diplomáticas em 1975. A abertura da Embaixada do Brasil, em Dublin (1991), e da Embaixada da Irlanda, em Brasília (2001), conferiu dinamismo ao relacionamento. Contudo, tais laços não são tão recentes assim. Uma antiga lenda já prenunciava laços de amizade entre os dois povos. Para o poeta irlandês Roger Casement (1864-1916), não existia a menor dúvida que muitos livros escolares, dicionários e enciclopédias estavam cometendo um engano a respeito das origens do nome "Brazil", que era já conhecido na Europa talvez desde o século IX, senão mesmo em épocas anteriores. De acordo com o poeta, por mais estranho que possa parecer, o Brasil deve o seu nome não à abundância de um certo pau-de-tinta, mas à Irlanda, a uma antiga crença irlandesa tão remota como a própria mente celta. A Hy Breazil dos celtas acabou se transformando na O'Brazil dos monges irlandeses. O nome "Ilha Brazil" aparecia nos mapas do almirantado inglês e deles só foi suprimido em 1865. Os sobrenomes Brazier, Brassil, Brazzill, Brazil são comuns até hoje na Irlanda.

Mas deixando de lado o lendário ou não da questão, uma prova decisiva da relação de proximidade desenvolvida entre a Irlanda e o Brasil, ao longo de séculos, é a existência nas Ilhas Britânicas de um rico patrimônio arquivístico e documental sobre o Brasil. (Cf. Olivier Marshall, Brasil nos arquivos britânicos e irlandeses: guia de fontes.). A relação, portanto, é de longa data.

Durante o Primeiro Reinado, irlandeses estiveram presentes em nossas tropas. A necessidade de contornar o problema da falta de contingente no interior do exército no momento posterior à Independência levou à incorporação de mercenários estrangeiros. Para tanto, o governo imperial arregimentou irlandeses para servirem como soldados a fim de fortalecer as tropas no conflito que se acentuava na região da Cisplatina. Em 1827, quando desembarcaram os primeiros irlandeses no Rio de Janeiro, estes estrangeiros recusaram-se a servir como mercenários, afirmando terem sido contratados como colonos. A título de curiosidade, vale também lembrar que José Bonifácio foi casado com uma irlandesa, Narcisa O' Leary de Andrada, e que um dos momentos mais especiais da vida de nosso Gilberto Freyre foi o seu encontro com um irlandês genial: o poeta William Butler Yeats.

A presença literária do famoso escritor irlandês Jonathan Swift também não passou despercebida entre nós. Ruy Barbosa chegou a escrever uma biografia analítica sobre o autor de "Gulliver's Travels", considerado figura talentosa na Política e nas Letras. Foi a pedido do tradutor e igualmente professor do Colégio Pedro II, Jansen Müller, que Ruy redigiu seu ensaio sobre Swift, datado de dezembro de 1887. Nos idos de 1887, sua obra era praticamente desconhecida no Brasil, mas na França era alvo do ataque de dois críticos famosos à época, Hippolyte Taine e Paul de Saint-Victor. Contra esses críticos, Ruy Barbosa se volta em seu ensaio e do autor torna-se ardente apologista. A Biblioteca Nacional possui a primeira adaptação da obra feita pelo professor Jansen, publicada no Brasil em 1888, pela editora Laemmert, com prefácio de Ruy, e que teve como título “As viagens de Gulliver a terras desconhecidas”.

Lamentavelmente, a fascinante história da Irlanda é pouco conhecida no Brasil. O que imediatamente vem à memória é a "grande fome" do final do século XIX e a imigração. No entanto, no período de cem anos após o saque de Roma pelo rei visigodo Alarico em 410 d . C . , a civilização ocidental foi salva pelos irlandeses, quando a Europa não mais tinha condições de proteger as tradições clássicas, suas bibliotecas, suas escolas, seus livros, tendo mergulhado num conturbado período histórico.

Há, na Irlanda, um passado de instituições de ensino de mais de XV séculos, que abrange monastérios e copistas empenhados, que transcreveram o tesouro reunido da cultura desde a Grécia do século V a. C. pelos mil anos seguintes. Enquanto o vasto Império Romano desmoronava durante o século V, o analfabetismo tornava-se disseminado, as grandes bibliotecas continentais desapareciam e o saber erudito recuava, na Irlanda, "ilha dos santos e estudiosos", longe dos assaltos ocorridos no continente, os monges irlandeses começaram uma tarefa civilizacional: copiar cada pedacinho da literatura ocidental que pudessem encontrar. Além de preservarem esta avultada herança cultural, os copistas irlandeses no exílio, restabeleceram a leitura no continente, criando uma ponte crucial entre o mundo clássico e a Europa medieval. Os irlandeses, neste sentido, não apenas salvaram a civilização, mas contribuíram para a formação da mentalidade medieval, colocando sua marca excepcional na cultura do Ocidente. Herança do monaquismo irlandês, este senso de preservação e continuidade cultural ainda está no sangue de muitos de seus cidadãos. Muito mais coisas poderíamos dizer a respeito dos laços que unem Brasil e Irlanda, mas talvez seja significativo encerramos esta efeméride com uma pergunta provocativa: o que o Brasil pode aprender com a Irlanda?

Para saber mais sobre James Joyce:

Suplemento Literário (SP), James Joyce (cá entre nós)

Suplemento Literário (SP), A Política de James Joyce

Letras e Artes: Suplemento de A Manhã, Os últimos meses da vida de Joyce