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Literatura | Borges: o mistério e o assombro das letras

28 jun 2021

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Um distinto cavalheiro argentino, avançado nos anos, uma vez veio com esta: “Ao longo dos anos observei que a beleza, como a felicidade, é frequente. Não passa um dia em que não estamos, um instante, no paraíso”. Palavras genéricas, aprofundadas pelo seguinte: “Não há poeta, por medíocre que seja, que não tenha escrito o melhor verso da literatura, mas também os mais infelizes. A beleza não é privilégio de uns tantos nomes ilustres”. Ora, ora. Ocorre que tal cavalheiro era justo um desses ilustres. Modesto. Quando lançou tais palavras, em seu último livro, Os conjurados, de 1985, falava do alto de seus 85 anos de idade, já cego, vivendo seus últimos dias na longínqua Genebra, como o menino maravilhado por histórias – literalmente todas, de todos os tipos, ângulos, formas ou tempos – que sempre foi. Longe do plumitivo que assina o presente texto discordar: quer dizer então que aqui mesmo pode-se ler, neste ou nos parágrafos abaixo, a maior pérola da literatura que já se viu! Que diremos dos comentários de rede social que o sempre carinhoso amigo leitor nos mimoseará! (Tanto num caso quanto no outro, deixemos discretamente de lado tudo aquilo que poder-se-há escrever de infeliz, naturalmente) É que, claudicantes e malditos que somos, nós, estapafúrdias criaturas que ainda se dão ao disparate de pensar em literatura, temos poucas certezas. Mas quando as temos, as temos. E uma delas é essa, sabida até pelos hipopótamos de Pablo Escobar: quando se fala na literatura da América Latina é impossível não citar, logo de cara, certas figuras. Já falamos aqui de Julio Cortázar, uma delas. Já falamos aqui de Gabriel García Márquez, outra. Justo, então, que hoje citemos outro calejado opífice deste triste rincão do sul do mundo. Que é justamente o tio citado acima. Para muitos um dos maiores da literatura universal, independente de quaisquer fronteiras: geográficas, temporais, filosóficas e o escambau. Se escrever um poema é ensaiar uma magia menor, pelo tão misterioso instrumento dessa magia, a linguagem, recomendável será, hoje, apertar os cintos. Que tiraremos Jorge Luis Borges da cartola. Neste 14 de junho completam-se 35 anos de sua morte. Mas não se preocupem: como todo imortal, passa bem.

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Jorge Luis Borges nasceu prematuro em Buenos Aires num 24 de agosto, o de 1899. Fruto de uma família de militares, pastores metodistas e professores, passou a infância no bairro de Palermo, onde, aos quatro anos, já sabia ler e escrever. Ao fim e ao cabo, viveu a maior parte de sua vida com a mãe, Leonor Acevedo, que lia para ele – e depois escrevia. A influência paterna, por outro lado, se deu por meio de uma biblioteca abarrotada de volumes, sobretudo em inglês. Foi ali que conheceu e passou a admirar nomes como William Shakespeare e Walt Whitman. Também do pai herdou um problema congênito na visão, que praticamente o cegou ainda relativamente jovem.

Quando tinha seis anos Borges escreveu sua primeira história, La visera fatal, e aos onze, por incrível que pareça, traduziu O príncipe feliz, de Oscar Wilde, que acabou publicado como folhetim no jornal portenho El País. Antes disso já havia sofrido na escola: quando ingressou num colégio público, aos nove, o pequeno gênio esquisito de óculos e roupa de menino rico tinha praticamente um alvo na testa. Já adolescente, veio certo alívio: em 1914 seu pai teve que se submeter a um tratamento contra a cegueira, na Europa. Dali até 1921 Borges viveu com a família no Velho Mundo, principalmente na Suíça, onde era conveniente se fixar por conta da neutralidade do país na Primeira Guerra Mundial. Enquanto o resto do mundo se acabava em pólvora e baionetas, no Collège Calvin de Genève o pequeno Jorge Luis deu prosseguimento a seu interesse por línguas e história, levando bomba em ciências exatas e naturais – educação física, então, é algo que é melhor fingirmos que existiu somente em literatura fantástica.

Foi em Genebra que a sensibilidade literária de Jorge Luis Borges deu um salto – a cidade sempre seria lembrada com carinho pelo autor. Num ambiente escolar menos hostil que o bonaerense do subúrbio, conheceu os prosadores do realismo francês e a poesia expressionista e simbolista, de autores como Arthur Rimbaud. O outro gume da espada de Borges foi afiado pelo contato com Schopenhauer, Nietzsche, Mauthner e Carlyle. Mas com o fim da guerra os Borges migraram novamente, para a Espanha, onde o jovem prodígio das letras participou do movimento literário conhecido como ultraísmo. Corrente que logo teve que ser desenvolvida à parte pelo autor do outro lado do Atlântico, já que, em 4 de março de 1921 sua família embarcou para Buenos Aires. Recebidos pelo excêntrico escritor Macedonio Fernández, amigo que passou de Borges pai para Borges filho, Jorge Luis praticamente redescobriu sua pátria natal, com outros olhos, outro coração, outra cabeça. A década que então se iniciava seria de intensa agitação cultural, para nosso heroi.

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Quando teve que ganhar a vida, Borges trabalhou como publicitário, empregando sua criatividade fora da curva no mercado publicitário, redigindo anúncios para iogurtes, por exemplo. Em paralelo, publicava cá e lá, em inúmeros periódicos, de ênfase literária ou não, poemas, crônicas, ensaios. Em 1923 saiu seu primeiro livro de poesia, em cerca de trezentas edições: Fervor de Buenos Aires. Como a edição era modesta, alguns dos exemplares vinham com correções manuscritas do punho do próprio autor, hoje raridades inestimáveis. Lá pelos idos de 1925, publicando a todo o vapor, e abordando a miúdo as agruras do subúrbio portenho, Borges já era apontado como jovem líder da vanguarda literária argentina. E não era exagero. Figura de vulto na imprensa literária local, deitava e rolava no lunfardo, a gíria das terras do Prata, chegando mesmo a escrever letras de tangos e milongas. No entanto, tamanho regionalismo estava com os dias contados, em sua obra. Aos poucos, na década de 1930 passava a nascer um novo Borges, mais cosmopolita e metafísico. Sua escrita passou a ser mais clássica, mais nítida e mais simples. Era o Borges da aclamada revista Sur. O Borges universal. Por outro lado, ao fim da década, as mortes de sua avó e de seu pai o obrigaram a buscar um emprego minimamente estável: conseguiu, em 1938, um cargo na biblioteca municipal Miguel Cané, em Boedo. Como era pouco visitada, Borges passava os dias entre livros, lendo e escrevendo.

Na véspera de Natal daquele mesmo ano de 1938, três anos após a publicação de sua História universal da infâmia, um acidente fez com que o autor desse uma guinada definitiva em seu novo processo criativo – isso num contexto de tudo ou nada. Andando apressado pelas ruas da capital argentina já meio cegueta, o escritor agiu como se fosse um fantasma: atraiçoado pela visão e pelo empolgado curso de seus pensamentos enquanto caminhava, atravessou uma vidraça. Cortes profundos na testa, farto sangue pingando pela calçada. Já no hospital, a falha na higienização dos cortes o deixou entre a vida e a morte. Um fim trágico, digno de tango, se anunciava para o prodígio literário. Borges delirou por cerca de duas semanas, sem saber se ficava neste mundo ou no de lá. Passou por uma interferência cirúrgica que salvou sua pele, mas não sua cabeça: saiu de lá julgando não ter mais a capacidade de escrever. Pelo que a escrita representava para si, estava, decerto, mais morto que vivo. Mas a situação talvez não fosse assim tão grave. Borges passou a ter dificuldades, de fato, em voltar a escrever a poesia impregnada dos “ismos” da década anterior. O episódio, lamentável que fosse, fez com que o escritor arriscasse entrar num terreno que até então não havia explorado: o do conto de ficção. A narrativa “Pierre Menard, o autor do Quixote” nasceu aí, como que por exercício. E foi um sucesso. Os anos passaram e a prosa acumulada também, devidamente publicada em hoje clássicos da literatura universal: O livro de areia, O Aleph, Ficções. Curtos relatos que, na dificuldade que o autor passou a ter, por sua falha visão, tiveram de ser ditados à sua mãe, depois a uma assistente. Obra e graça de uma (in)conveniente vidraça, quem diria!

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Com o tempo galardoado de cima a baixo, Borges sempre foi humilde quanto a seus inúmeros títulos de doutor Honoris Causa. Apenas não sabia se realmente os merecia. Ganhou também prêmios literários internacionais, mas não chegou ao Nobel, embora tenha sido candidato de peso por cerca de trinta anos. Alguns afirmam que isso se deu por conta da postura política do argentino, que preferia se definir como um “anarquista conservador”. Tinha ojeriza a Fidel Castro e ao regime socialista em Cuba, mas chegou a demonstrar apoio, publicamente, ao ditador militar chileno Augusto Pinochet. O aceite no convite a receber um prêmio no Chile, em 1976, foi o que queimou o filme do argentino com a academia sueca, que, ao contrário do autor, preferia manter ao menos a neutralidade com os regimes militares iberoamericanos. No mais, muitas das colocações políticas de Borges, tinham o peronismo como alvo, iniciadas a partir da eleição de Juan Domingo Perón na presidência da Argentina, em meados da década de 1940.

Os anos 1940 tinham começado bem para o autor. No primeiro ano da década lançou sua Antologia de literatura fantástica, em colaboração com o casal de amigos Silvina Ocampo e Adolfo Bioy Casares, que contraíram boda quase que na mesma ocasião, tendo Borges como testemunha. Em 1943 o escritor publicou uma antologia com seus poemas, ganhando, logo em seguida, o Grande Prêmio de Honra da Sociedade Argentina de Escritores pelo livro Ficções. Um ano depois, em casa de Ocampo e Casares conheceu Alba Estela Canto, uma jovem inteligentíssima, e caiu de queixo por ela. No entanto, tanto a própria quanto a mãe do escritor se opunham ao relacionamento, que na verdade nunca existiu fora de sua rica imaginação, numa espécie dolorosa e unilateral de tango, até um ponto final somente oito anos depois. Nesse meio tempo, em 1946, Perón foi eleito presidente, derrotando a então chamada União Democrática. Borges, adepto do individualismo como virtude, como todo liberal spenceriano que se preze, passou a ser identificado como um oposicionista de carteirinha. E um oposicionista de peso, diga-se: pouco depois, em 1949, publicou O Aleph, apontado pela crítica como sua maior coletânea de contos. Seu reconhecimento dentro e fora da Argentina começou a dar as caras já em 1950. Nesse ano, mesmo trocando rusgas com o governo, Borges virou presidente da Sociedade Argentina de Escritores, ditando conferências aqui e ali, enquanto escrevia e publicava.

Quando um golpe militar derrubou o governo peronista, o já imponente medalhão literário o passou a ser mais ainda. Em 1955 passou a ser o diretor da Biblioteca Nacional da República Argentina. Sua adesão ao novo regime se confirmaria cinco anos depois, quando se filiaria ao Partido Conservador Popular, levantando contra si mais críticas do que aplausos, de todos os lados do mundo literário. Por pura ironia, no momento em que assumiu a BN argentina, a cegueira do “anarquista conservador”, até então paulatinamente aumentando, piorou de vez. Justo ele, que sempre achara que o paraíso seria uma espécie de biblioteca. Na ocasião, mal podia distinguir as lombadas e as cores dos então cerca de novecentos mil volumes em diversos idiomas sob a guarda da instituição. Ainda assim ficaria 18 anos no cargo, nunca deixando sua produção ficcional de lado.

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Se política é um jogo, cabe dizer que, conforme o ditado, sorte nesse aspecto inspira azar em outro, o do amor. Pois Jorge Luis Borges, no ápice de sua carreira como figura oficial do establishment cultural platense, enfim se casou, em 21 de setembro de 1967, aos 68 anos, com a viúva Elsa Astete Millán, de 57. Dona Leonor Acevedo, mãe de nosso prodígio das letras, se carcomia de ciúmes, numa relação que, aos poucos, beirou ao insustentável. Mais tarde Elsa admitiu que era infeliz: seu marido era ausente, vivia em outro mundo – sabemos exatamente qual. O casamento, enfim, durou apenas três anos. Declarado cidadão ilustre de Buenos Aires em 1973, no mesmo ano Borges pendurou as chuteiras da BN argentina. Fora que naquele ano as eleições em seu país viram a volta temporária do peronismo ao poder; um tanto resignado, Borges reconheceu que votou em Julio Chamizo, da Nueva Fuerza, por insistência de Dona Leonor, acamada e impossibilitada de ir às urnas.

Com o falecimento de sua mãe em 1975, aos 99 anos, Borges se deu ao luxo de contar mais livre e assiduamente com os serviços de Maria Kodama, uma ex-aluna que se tornara sua secretária particular. Era ela quem botava no papel as palavras oralizadas pelo escriba, na ausência da matriarca linha dura. Viveu, com ela, em relativa paz, até descobrir um câncer hepático em 1986. Tímido inveterado, temendo que sua agonia virasse espetáculo na televisão e na imprensa nacionais, se casou com a secretária em 26 de abril do mesmo ano, fixando residência, em seguida, em sua amada Genebra, para se tratar. E veio a falecer 14 de junho. Diz o amigo Bioy Casares que seu tradutor para o francês, Jean-Pierre Bernès, o assistiu em seu leitor de morte. Partiu como só Borges poderia partir: dizendo o Pai-Nosso em diversos idiomas, anglo saxão, inglês antigo, inglês contemporâneo, francês e espanhol. O homem era uma Babilônia.

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O barato da escrita de Jorge Luis Borges é que nada do que é de fato é, seja em aparência ou realidade, e aquilo que não é pode ou não ser que realmente não seja, e vice versa, às vezes ao contrário. Ou não. Nosso dileto autor adorava misturar fato com invenção, plausibilidade com absurdo. Suas palavras tocavam em quase tudo, dando-se preferência a sonhos, labirintos, bibliotecas, mitologia europeia, memória, eternidade. Não raro Borges é identificado como uma figura da literatura filosófica. Sapeca, adorava citar referências e autores inventados, explorando situações e contextos complexos, causando no leitor não só assombro, mas profunda reflexão. Nunca foi leitura das mais fáceis, caindo mais no campo da erudição do que o valor do peso argentino na Bolsa de Valores. Com um pé bem calcado no terreno etéreo da fantasia, criava verdadeiros labirintos linguísticos. Por isso mesmo foi um dos primeiros autores a usar a própria literatura como tema de suas narrativas. “A realidade sem sempre é provável”, como costumava dizer. De fato. Mas, tanto aquilo que entendemos como real quanto aquilo que em nossa existência material ou imaterial cristalizamos como cognição depende de muitas variáveis. Justa concepção. Um dos aforismos mais famosos de Borges foi este: “Não tenho a certeza de que eu exista. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados”. E quem não, cá neste planeta aguado?

Pós moderno que era em sua estética, Jorge Luis Borges influenciou meio mundo literário. De Italo Calvino a Roberto Bolaño. Thomas Pynchon a Gonçalo M. Tavares. J. M. Coetzee a Ricardo Piglia. Orhan Pamuk a Salman Rushdie. E por aí afora, inclusive fora da literatura: Michel Foucault e Gilles Deleuze que o digam. Certos críticos argumentam que, embora tenha sido relativo seu papel no chamado “boom” da literatura latino-americana no mercado editorial internacional, nos anos 1960 e 1970, sem a sua obra o chamado realismo mágico de Julio Cortázar e Gabriel García Márquez provavelmente não existiria – e se existisse não seria a mesma coisa. E que dizer quanto a Umberto Eco? Em “O nome da rosa”, o mais conhecido romance do último, a monumental biblioteca medieval que serve de elemento chave no enredo é gerida por um guardião cego de nome Jorge de Burgos. O Borges argentino, ao que conta, ficaria para lá de satisfeito com a homenagem, calcula-se.

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“Sempre imaginei que o paraíso seria algum tipo de biblioteca”, dizia Borges. Que dizer do ponto de vista de uma casa irmanada à Biblioteca Nacional da Argentina? Não seria uma honra para cada biblioteca deste mundo dedicar-se um pouquinho que seja ao mestre argentino?

Explore os documentos:

“Fascista, nunca! Anarquista, talvez”. Entrevista de Borges à revista Manchete, em 1978:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/179448

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/179449


“Jorge Luis Borges: Um gênio literário vai para o paraíso”, na revista Manchete, em 1986:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/238868

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/238869



Entrevista de Maria Kodama transcrita na revista Manchete, na ocasião da morte de Borges, em 1986:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/238896

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/238897