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Literatura | Feliz aniversário, querido Hobbit

21 set 2021

Artigo arquivado em Literatura
e marcado com as tags JRR Tolkien, Literatura Fantástica, O Hobbit, Secult

Convenhamos: toda história de superação tem lá o seu charme. Narrativas que abrigam personagens que, contrariando todas as expectativas, se desdobram a ponto de romper com suas próprias limitações, atingindo pontos inimagináveis de sua própria existência quando confrontados com situações atípicas, não raro perigosas, sabem conquistar a nossa atenção. Isso vale para a literatura de ficção e de não-ficção, para biografias e mesmo para grandes textos religiosos. No gênero que a indústria cultural habitualmente chama de fantasia, não poderia ser diferente. E é por isso que destacamos hoje um senhor aniversariante. Em 21 de setembro de 1937, pela primeira vez, Bilbo Bolseiro colocava seus volumosos e peludos pés para fora da Terra Média, caindo estrondosamente neste mundo de cá, precisamente na Inglaterra. Nessa data foi publicado pela primeira vez o livro que conta suas desventuras, O Hobbit, de J. R. R. Tolkien, pela editora George Allen & Unwin, do Reino Unido. Originalmente mais uma de tantas histórias boladas pelo autor para seus próprios filhos, virou instantaneamente um sucesso absoluto assim que publicado, clássico moderno da literatura mundial, influente para incontáveis gerações desde então (independentemente de seu gênero). O romance ecoa até hoje em sequências diversas do próprio Tolkien e na obra de outros autores, em livros, filmes, adaptações para teatro e radionovela, séries para a televisão, jogos de RPG ou eletrônicos e mais, muito mais. A edição brasileira mais recente do livro, pela Martins Fontes, datada de 2012, traz na contracapa uma grande verdade pinçada do jornal inglês The Sunday Times: "O mundo está dividido entre aqueles que já leram O Hobbit e O Senhor dos Anéis e aqueles que ainda não leram".

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Neste planeta dividido segundo Tolkien, os não iniciados podem se perguntar: mas qual é a do hobbit? Qual a fonte de tamanho êxito? Cá explicaremos com prazer, e sem spoilers.

Bilbo Bolseiro tinha tudo para ser um modorrento bon-vivant rural. Vivia mais do que feliz uma vida simples e confortável, sem sobressaltos ou ambições, no aconchego do lar, no Condado onde todos os hobbits, como ele, se encontram, em paz. Pequeninos em relação aos demais habitantes da Terra Média e muito, mas muito apegados aos prazeres da boa mesa, era bom mesmo que Bilbo e os seus não se arriscassem em grandes aventuras por aí, sobretudo em paragens povoadas por orcs, trolls, dragões, elfos, espíritos, relíquias amaldiçoadas, homens e anões em malhas metálicas, sem contar os magos e outros seres sombrios de gelar a espinha. Para um bom hobbit, criatura afinal fofa, com seus pés grandes cobertos por pelos e bochechas um tanto avermelhadas, como que pedindo um apertão, a vida deve se resumir no périplo da despensa para a adega, da adega para a cozinha, da cozinha para a poltrona da sala, em frente à lareira. Sair? Sim, claro. Cedo ou tarde precisaria-se cultivar e buscar mais comida, ou lenha. E visitar os vizinhos, para trocar duas ou três fofocas, entre xícaras de chá e fumaradas de cachimbo. Fora as retumbantes festas da comunidade local, entre intermináveis e inacreditáveis comes e bebes. Coisas da vida simples. Nada muito diferente do dia-a-dia dos nossos avós ou bisavós, lá no interiorzão.

Só que Bilbo era Bilbo. Era a exceção que fazia a regra, no caso de comportamento hobbit. Foi por isso, afinal, que, apesar de um tanto relutantemente, aceitou partir em expedição a convite do mago Gandalf e de uma trupe de anões. Seu objetivo não era nada modesto: tinham um plano para roubar o tesouro de Smaug, o Magnífico, um enorme, inteligente e mal-encarado dragão escondido dentro de uma montanha. Quem diria? O pequeno hobbit, que inicialmente não sabe o porquê havia de sua convocação, se surpreende - e nos surpreende - ao constatar que, sob a devida pressão, sabe agir com notável habilidade, como ladrão. Assustadoramente sábio, esse tal de Gandalf.

Se o crescimento pessoal, o amadurecimento e a obtenção de sabedoria são dons que valem ouro, conforme Bilbo Bolseiro percebe em sua jornada, outro tesouro, afinal, estava nas mãos de J. R. R. Tolkien. Valendo-se de seu conhecimento acadêmico, o autor havia concebido a obra com esmero: desenhou inclusive mapas, paisagens e runas para a publicação. Chegou mesmo a criar um alfabeto élfico para sua obra, como qualquer fã sabe. Com o passar do tempo, O Hobbit vendeu milhões de cópias em todo o mundo e encaçapou diversos prêmios literários, além de render novas e novas aventuras encenadas no mesmo universo, em especial O Senhor dos Anéis, trilogia da qual O Hobbit fora prelúdio. Em sua prosa clara e despretensiosa, no que pesa, ainda, um teor aventureiro e divertido, o livro fora concebido para o público infantil. Mas algumas das questões levantadas em sua narrativa não são nada pueris: para leitores mais maduros uma chave interpretativa que dá o que pensar está no contraste e no diálogo entre conhecimentos tradicionais e modernos. Além disso, a novela pode ser lida como uma parábola da experiência popular na Primeira Guerra Mundial, parecida com a que teve o próprio autor, onde, pinçado à força de sua realidade camponesa, o heroi é jogado num turbilhão de eventos inesperados, a milhas de distância, onde quaisquer ideias estereotipadas de heroísmo se mostram não só inúteis, mas perigosas. Não pedimos para vir para cá, mas cá estamos, vendo que conflitos armados são tudo, menos gloriosos! Bom mesmo é ficar esperto, afinal lidamos com forças poderosas, sejam elas dragões ou artilharias inimigas!

Pelo sim, pelo não, O Hobbit é dessas obras que quebram paradigmas e desafiam gêneros. Na verdade, é algo que não tem como não enfeitiçar a qualquer um com dois pingos de imaginação.

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Nascido a 3 de janeiro de 1892 em Bloemfontein, no então Orange Free State, na África do Sul, lá pelos idos de 1915 John Ronald Reuel Tolkien se alistou, com a entrada do Reino Unido na Primeira Guerra Mundial. Chegou à patente de tenente na unidade de infantaria conhecida como Lancashire Fusiliers, onde ficou até 1920. Esteve na sangrenta Batalha do Somme, sem se orgulhar disso. Seus interesses, de fato, estavam nas letras, na filologia, na história e na mitologia. Em 1925, iniciou sua carreira como professor de anglo-saxão no Pembroke College, da Universidade de Oxford. Apaixonado pela escrita de William Morris, que assumidamente moldava a sua, até aquele momento o jovem escritor tinha lá seus poemas publicados aqui e ali, em antologias ou revistas literárias. Entre a produção de narrativas fantásticas voltadas principalmente para o entretenimento de seus filhos - John Francis, Michael Hilary, Christopher John e a caçula Priscilla Anne - permeadas por ilustrações de gnomos, duendes e exuberantes animais, desde 1917 Tolkien veio trabalhando nos escritos que mais tarde seriam reunidos em seu Contos Inacabados, lançados originalmente em dois volumes. Tolkien misturava influências não só de Morris, mas de Júlio Verne, J. M. Barrie, George MacDonald e Samuel Rutherford Crockett, num caldeirão onde borbulhavam também seus conhecimentos em mitologias nórdica e grega, literatura inglesa antiga - a exemplo do poema épico intitulado Beowulf -, história anglo-saxã e filologia germânica. Estes eram seus grandes interesses acadêmicos, afinal. Originado a partir de lendas e narrativas na Antiguidade, o mundo de Tolkien, hoje, é um sabor a mais em todo um complexo caldo na cultura popular, de massa. Runas, dragões, elfos, tesouros e animismo: tudo já estava lá, há muito.

Imerso em seu mundo, Tolkien vivia tranquilo e anônimo como um hobbit. Até que, certo dia, já em Pembroke, no início da década de 1930, algo de mágico mudaria seu destino, sem volta. Em meio ao trabalho burocrático de marcar certificados escolares para cada um de seus alunos, deu de cara com uma inesperada folha de papel em branco, em meio aos documentos. Materializada ali como que por um mago, a página sem nenhuma escritura, branca como a neve, ou como um fantasma, já que tanto intimida estudantes e escribas de incontáveis meios, gostos e objetivos, serviu como fonte súbita de inspiração. Então, sem muito pensar, talvez para driblar certo tédio, Tolkien tascou ali: "Numa toca no chão vivia um hobbit". E o resto virou história.

Finalizado em 1932, o manuscrito de O Hobbit passou de mão em mão, entre amigos de Tolkien. Mas, em especial, foi parar nas mãos de uma aluna sua, Elaine Griffiths, que em 1936 o mostrou para uma amiga que a visitava em Oxford, Susan Dagnall. Por acaso, a sra. Dagnall trabalhava na casa editora George Allen & Unwin e enxergou o potencial daquela pitoresca história envolvendo seres mágicos de variadas formas, protagonizada por um carismático nanico de pés peludos e grandes, com um apetite maior ainda. O texto foi parar nas mãos do próprio dono da editora, Stanley Unwin, que o submeteu a um teste de fogo: seu filho de 10 anos, Rayner. Os comentários favoráveis do guri foram o suficiente para bater o martelo para publicação.

Lançado em 21 de setembro de 1937, O Hobbit, ilustrado em preto-e-branco pelo próprio autor, teve sua primeira tiragem de 1.500 exemplares esgotada em dezembro, muito pela influência da boa recepção da crítica na imprensa, motivando logo em seguida uma segunda edição a cores. A editora, como de costume, aproveitava a ocasião para pedir mais a Tolkien, que apresentou um rascunho do que mais tarde seria publicado como O Silmarillion. Mas recebeu uma negativa: Stanley Unwin queria mais a respeito de hobbits, seres ausentes da nova narrativa. Começaria a ser gestado, assim, o expoente tolkieniano: a trilogia O Senhor dos Anéis, com o reaparecimento de personagens centrais de O Hobbit, anos depois. Mas não nos precipitemos: ainda no sucesso de dezembro de 1937 deu-se a conquista hobbit do outro lado do Atlântico, com a antenada editora americana Houghton Mifflin lançando a coqueluche literária britânica nos EUA já no início de 1938. Maiores louros só não foram colhidos por causa da Segunda Guerra Mundial: o racionamento de papel freou novas impressões de O Hobbit, assim como de outros livros, até quase a virada para a década de 1950. Com nova edição lançada na Inglaterra em 1951 - entre outras que viriam nas décadas subsequentes -, o livro veio sendo traduzido, estando, hoje, em cerca de 60 idiomas (que se saiba, só nas línguas humanas, faltando ainda cópias em élfico e orc, por exemplo). Em 29 de julho e 11 de novembro de 1954, e em 20 de outubro de 1955, os três volumes de O Senhor dos Anéis enfim viriam a lume, matando as saudades dos fãs conquistados quase quinze anos atrás - fora os novos, que vinham sendo arrebanhados aos montes. Aí já estávamos em plena Era da Tolkienmania.

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Ao passo em que O Hobbit abriu alas para novas incursões de Tolkien pela fantástica Terra Média, outras obras de outros autores, seja na literatura ou no cinema, devem pagar certo tributo à história de Bilbo. O universo delineado ali influenciou Guerra nas Estrelas. Harry Potter. Game of Thrones. E também Crônicas de Nárnia, cujo autor, C. S. Lewis, amigo de Tolkien, chegou a ler os orginais de O Senhor dos Anéis. Escritores do naipe de Neil Gaiman, Marion Zimmer Bradley, Stephen King, Jostein Gaardner e mesmo Isaac Asimov eram fãs de Tolkien, e alguns talvez não fossem os mesmos caso as desventuras dos hobbits nunca tivessem vindo a público. Jogos de interpretação de papéis, os chamados RPGs da linha de Dungeons & Dragons, que passaram a movimentar legiões de fãs a partir dos anos 1970, bem como suas incontáveis adaptações para videogames um tanto mais tarde, seguem na mesma linha.

Ainda no rol de ilustres influenciados por J. R. R. Tolkien, o mundo do rock'n'roll merece parágrafo à parte. Certos gigantes do rock dedicaram ao menos uma canção aos feitos heroicos da Terra Média. A mera menção a alguns deles, como Led Zeppelin, Black Sabbath, Rush, Blind Guardion, Megadeath, Burzum, e Dimmu Borgir, entre outros, são encantamentos a certos ouvidos. Fora os todo-poderosos Beatles. Na fase em que o quarteto de Liverpool passou a ostentar bigodes, a saga dos hobbits os pegou de tal maneira que pensaram em realizar uma adaptação cinematográfica de O Senhor dos Anéis: Paul como Frodo, Ringo como Sam, John como Gollum e George como Gandalf. Stanley Kubrick foi cogitado para dirigir esse filme, mas declinou, humilde, por achar a obra de Tolkien impossível de ser filmada. O projeto morreu na praia, mas, pela exuberância da parceria entre seus possíveis envolvidos, permanece aceso num eterno "como teria sido?". Se bom ou se ruim, cult, cultíssimo, na certa. Pois, na verdade, mesmo hoje, tempos high-tech em que o cineasta Peter Jackson levou aos cinemas tanto adaptações de O Senhor dos Anéis quanto de O Hobbit, alguns fãs mais puristas do escritor tendem a concordar com Kubrick - fora as críticas dos menos tolerantes com a onipresença da computação gráfica no cinema mainstream de ação e aventura. Consequência de quando constatamos que um livro é bom demais? Confirmação da "regra" de que o livro é sempre melhor que o filme subsequente? Ainda mais se, grande demais, a obra literária já conquistara meio mundo, décadas antes? É como dizia Bilbo, ao fim de uma batalha sangrenta: "Vitória, afinal de contas, eu suponho!" Para em seguida completar, em meio a um mar de orcs abatidos: "Bem, parece uma coisa muito melancólica!". Vá para casa jantar, caro hobbit. Você já trabalhou demais!

Explore os documentos:

Em 1990, o Jornal do Brasil aborda uma novidade juvenil encabeçada por "tolkienmaníacos": jogos de RPG.

No centenário de J. R. R. Tolkien, em 1992, o Jornal do Brasil comenta a "Onda tolkiana".

Em dezembro de 2012, o Correio Braziliense trata da chegada de O Hobbit aos cinemas, após o estrondoso sucesso da adaptação de O Senhor dos Anéis às telas.