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Literatura | João, o do Rio

24 jun 2021

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A palavra “crônica” tem raízes no grego “khrónos”, que significa “tempo”, e passou à lingua portuguesa através do latim “chronica”. Na Idade Média, “crônica” era um registro em ordem temporal, cujo objeto podia ser a vida e os feitos de um governante, a história de uma dinastia, o desenrolar de uma guerra ou de uma viagem... e também, com frequência, a história de uma cidade, desde a fundação (às vezes com raízes lendárias ou míticas) até os acontecimentos do momento.

Atualmente, o termo é usado de forma mais ampla, o qual, no entanto, manteve sua relação com o tempo: ainda que algumas crônicas façam um retrospecto de fatos antigos, estes sempre vêm desembocar no presente, no momento vivenciado pelo autor e por seus leitores, que podem assim fazer uma reflexão em primeira mão sobre o assunto tratado. E, embora haja uma grande variedade de assuntos -- cultura, política, esportes --, algumas crônicas contemporâneas continuam estreitamente vinculadas a lugares, contemplando a vida cotidiana de um país, uma cidade, às vezes até mesmo um bairro ou uma vila.

O Rio de Janeiro foi (e ainda é) assunto de vários cronistas, um dos quais incorporou ao seu o nome da cidade. Trata-se de João do Rio, um dos vários (e o mais utilizado) pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, ou simplesmente Paulo Barreto (1881 – 1921), que estreou na imprensa aos 16 anos de idade e colaborou com importantes jornais de sua época, tais como “O Paiz”, “O Dia” e “Correio Mercantil”. Entre 1903 e 1913, escreveu para a “Gazeta de Notícias”, onde surgiu o pseudônimo pelo qual se tornaria mais conhecido.

Leia no canto direito, concluindo na página seguinte, a crônica “O Brasil lê”, na “Gazeta de Notícias” de 26 de novembro de 1903. Foi a primeira assinada como João do Rio e tratava de uma pesquisa sobre os hábitos de leitura dos brasileiros, para a qual o autor entrevistou livreiros e alfarrabistas da cidade do Rio de Janeiro (que afirmaram enviar volumes para os demais estados). Acervo da Hemeroteca Digital.

Embora tenha usado vários pseudônimos (Joe, Claude, Caran d´Ache, Godofredo de Alencar, entre outros), foi como João do Rio que Paulo Barreto publicou todos os seus livros. Em sua maioria, reuniam crônicas de opinião e crônicas-reportagem acerca da sociedade, da cultura e do cotidiano dos habitantes da cidade. Dentre todos, o mais conhecido e cultuado é “A alma encantadora das ruas”, de 1908, em que o autor reúne crônicas publicadas na “Gazeta de Notícias” e na “Revista Kosmos” e no qual dá voz a pessoas excluídas da sociedade, que visitara e ouvira em entrevistas.

Leia “A alma encantadora das ruas” em e-book, disponibilizado pela BN Digital.

João do Rio também escreveu peças de teatro, dentre as quais se destaca “A Bela Madame Vargas”, representada pela primeira vez em 1912, no Teatro Municipal; e ainda um bom número de contos, nos quais, assim como nas crônicas, refletiam-se os hábitos dos cariocas de várias classes sociais. O mais conhecido, por integrar várias antologias, é possivelmente “O Bebê de tarlatana rosa”, conto de horror que se passa durante o Carnaval do Rio de Janeiro.

Veja o manuscrito do conto “Música de amor”, mais tarde publicado com o título “A Noiva do som” no livro “Dentro da noite”, de 1910. Acervo da Divisão de Manuscritos.

Em 1910, João do Rio entrou para a Academia Brasileira de Letras. Segundo sua biografia no site da instituição, foi considerado o maior jornalista de seu tempo, tendo lançado as bases do que seria a moderna reportagem investigativa. Seu inquérito “O Momento literário”, de 1908, para o qual entrevistou 36 escritores ligados a diversas tendências e estilos, é visto por Gilda Vilela Brandão, da Universidade Federal de Alagoas, como uma excelente fonte de informações acerca do panorama literário da época: não se refere apenas à produção, mas reproduz e reflete diferentes posicionamentos sobre o lugar da literatura brasileira no movimentado início do século XX.

Leia o livro de crônicas “Os dias passam...”, de 1912, inteiramente digitalizado. Acervo da Divisão de Obras Gerais.

Note-se que o livro acima foi publicado pela Lello & Irmão, editora portuguesa. João do Rio tinha uma relação intensa com o país, que visitou mais de uma vez e sobre o qual escreveu o livro “Fados, canções e danças de Portugal”. Também fundou, em 1920, o jornal “A Pátria”, voltado para a defesa dos imigrantes portugueses no Rio de Janeiro. Com isso, o autor, que já sofria ataques homofóbicos por conta de sua predileção por Oscar Wilde (de quem foi tradutor), passou a ser também alvo da fúria de nacionalistas xenófobos.

João do Rio faleceu de um enfarte fulminante, a bordo de um táxi, em 23 de junho de 1921. Seu corpo foi velado por dois dias no saguão do jornal “A Pátria” e, em seguida, acompanhado por mais de 100.000 pessoas ao longo do trajeto até o cemitério. Apesar dessa popularidade, sua obra logo caiu em relativo esquecimento, que durou algumas décadas. Hoje voltou a ser mais conhecida e prestigiada, embora, como salienta Brito Broca em “A vida literária no Brasil” (1960), os livros publicados por João do Rio não contenham mais que uma parcela das centenas de crônicas, artigos e reportagens escritas por Paulo Barreto sob seus muitos pseudônimos.

Retrato de João do Rio, contido em “Os dias passam...” (1912)