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Livros de Aventura | As Viagens de Gulliver

31 maio 2022

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Em crônica sobre suas memórias de leitura, o intelectual Nelson Werneck Sodré afirmou que, ao ler “As Viagens de Gulliver” na adolescência, não foi capaz de perceber a sátira e a critica social no texto de Jonathan Swift. Ele o apreciou pela história, por ser um emocionante e criativo livro de aventura – exatamente como se afigura, ainda hoje, para jovens e nem tão jovens leitores.

Jonathan Swift (Dublin, 1667 – 1745) estudou no Trinity College, em sua cidade natal, doutorou-se em Teologia pela Universidade de Oxford e depois se transferiu para Surrey, Inglaterra. Ali se tornou secretário do estadista e escritor Sir William Temple, cujas posições defendeu em panfletos que já ironizavam tanto os Whigs, liberais, quanto os Tories, do partido conservador. Com a morte de Temple, assumiu sucessivas posições na Igreja Anglicana, ao mesmo tempo que prosseguia com seus escritos satíricos e panfletários.

Uma das obras mais conhecidas de Jonathan Swift, publicada em 1729, é “Uma Modesta Proposta”, na qual sugere que os filhos dos pobres sirvam de alimento às classes ricas. Escrito como crítica às políticas adotadas pelo governo britânico para a Irlanda, o texto, ainda hoje, é referência quando se trata de analisar questões ligadas à justiça social. Outras obras do autor, sempre escritas em tom satírico, são “A Batalha dos Livros” (1704), “A Conversação Polida” (1738) e o poema “Versos sobre a Morte do Dr.Swift” (1739), em que o escritor brinca com a própria morte. Esta, afinal, ocorreu em 1745, com Swift mergulhado na surdez que o acometera em vários episódios desde a infância.

O livro que tornaria o autor irlandês mundialmente famoso começou a ser escrito por volta de 1713. A ideia era satirizar os livros de viagem, então muito em voga (lembremos que “Robinson Crusoé) foi publicado em 1719, quase na mesma época, e se baseava no relato do náufrago Alexander Selkirk, que saiu alguns anos antes). O processo de escrita se estendeu por vários anos. Por fim, a obra foi enviada, de forma anônima, ao editor Benjamin Motte, o qual, antes de imprimi-la, tratou de suprimir as partes que considerou excessivamente provocativas.

Em 1726, o livro foi publicado com o título “Viagens a diversos países remotos do mundo, em quatro partes, por Lemuel Gulliver, a princípio cirurgião e mais tarde capitão de vários navios”. Em 1735, foi abreviado como “As Viagens de Gulliver”, forma pela qual é conhecido até hoje. Trata-se de um romance satírico que acompanha as viagens do protagonista por países (quase sempre) imaginários. As duas primeiras etapas o levam a Liliput, povoado por pessoas minúsculas que gastam seu tempo em discussões triviais, e a Brobdingnag, lugar em que as leis são sumárias, sem margem a interpretações. A terceira viagem passa por outros reinos imaginários, cada qual com suas peculiaridades, e termina, curiosamente, no Japão. Por fim, Gulliver visita um país governado por uma raça de cavalos falantes, chamados “houyhnhnms”, onde os humanoides “yahoos” vivem de forma primitiva.

Embora, em carta ao escritor Alexander Pope, Swift tenha afirmado que seu intuito com esse livro era “agredir o mundo, e não diverti-lo”, apontando de forma impiedosa as imperfeições da civilização e da própria condição humana, o fato é que não apenas adultos, mas também leitores mais jovens se interessaram pelas aventuras de Gulliver. O livro conquistou seu lugar entre as obras-primas da Literatura inglesa, teve várias edições ao longo dos séculos XVIII e XIX e, no período vitoriano, ganhou edições ilustradas, adaptadas para crianças, que em geral se limitavam às duas primeiras viagens.

A primeira tradução de “As Viagens de Gulliver” no Brasil segue esse padrão. Feita por Carlos Jansen, professor do Colégio Pedro II que adaptou várias obras para uso escolar no país, o livro, publicado pela Laemmert em 1888, contava com nove ilustrações e com um prefácio assinado por Rui Barbosa. Adriana Vieira, da UNICAMP, afirma que, à parte haver desmembrado os trechos mais longos em parágrafos menores, a adaptação brasileira é bastante fiel ao original, exceto pelo fato de suprimir quaisquer passagens escatológicas: o episódio em que Gulliver apaga o incêndio no palácio real de Liliput, por exemplo, é modificado de forma a mostrá-lo usando a água de uma cloaca, recolhida no chapéu, e não a própria urina, como na obra original.

Após a adaptação de Carlos Jansen, “As Viagens de Gulliver” ganhou uma edição em fascículos na revista infantil “O Tico-Tico”. A exemplo do que aconteceu com “A Ilha do Tesouro”, o tradutor não é creditado, mas as ilustrações são assinadas por Dudú, pseudônimo do artista baiano Cícero Valladares.

Veja o início da publicação em “O Tico-Tico”, 1909.

Em 1937, foi a vez de Monteiro Lobato publicar sua adaptação da história de Jonathan Swift, por meio da Cia. Editora Nacional. Limitou-se à primeira parte, que intitulou “Viagem de Gulliver ao País dos Homenzinhos de um Palmo de Altura”. Como era seu hábito ao traduzir, optou por usar um vocabulário mais cotidiano, e também fez Gulliver apagar o incêndio com água; condensou algumas passagens, mas se alongou nas discussões sobre a disputa entre Liliput e o reino rival, Blefuscu, que tinha como motivo inicial a forma correta de quebrar a casca dos ovos.

Uma edição integral da obra apareceu, por fim, em 1953, tal como anunciado sucintamente na revista “O Cruzeiro”:

A tradução de Octavio Mendes Cajado foi republicada várias vezes, em diferentes editoras, e ainda circula no Brasil. Outras adaptações e traduções foram feitas, bem como inúmeras transposições para outras mídias, em especial o cinema – a primeira foi o curta-metragem de Georges Meliès, “Le Voyage De Gulliver À Lilliput Et Chez Les Géants”, lançado em 1902. As edições integrais, muitas das quais dotadas de paratextos, resgatam o caráter satírico da obra de Swift; mas a originalidade de sua história e as transformações pelas quais passou, determinadas por editores, adaptadores e pelos próprios leitores ao longo dos anos, acabaram por inscrever “As Viagens de Gulliver” na categoria dos livros clássicos de aventura, sem perda do seu status como uma das maiores obras da Literatura universal.



Ilustração de Cícero Valladares (Dudú) em “O Tico-Tico”, 1909.