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Medicina Iorubá em Diálogos com Políticas Públicas de Atenção Integral à Saúde

01 dez 2023

A Medicina Tradicional Iorubá faz parte dos saberes trazidos do continente africano para o Brasil durante o período colonial, através do tráfico de negros escravizados. Esses saberes tradicionais de saúde do povo iorubá e seus remanescentes sobreviveram na afrodiáspora brasileira, pode-se dizer, guardados na memória de pessoas que utilizam orações, ervas, garrafadas e outros recursos de caráter “caseiro”. São benzedeiras(os), curandeiras(os), rezadeiras(os) e outros agentes da saúde em estruturas comunitárias que cumprem – embora muitas vezes não saibam disso – um relevante papel de resistência cultural, expressa, entre outras atividades, nas práticas populares de saúde.

Figura 1 - Mulher idosa.

Fonte: Mulher idosa ([19--?]).

No ano de 2013, iniciamos uma pesquisa, por meio de uma bolsa de iniciação científica contemplada no Edital de Apoio a Pesquisadores Negros realizado pela Fundação Biblioteca Nacional junto à Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), para colocar a “Medicina Iorubá em Diálogo com Políticas Públicas de Atenção Integral à Saúde”. Os principais objetivos da pesquisa foram mapear o conjunto de estudos já realizados sobre a Medicina Tradicional Iorubá e seu potencial de aplicação no atendimento à Saúde Individual e Coletiva (Saúde Pública), e identificar a presença de remanescentes das práticas negro-africanas de saúde e cura no bairro Parque Peruche (São Paulo, SP), de expressiva presença negra.

Com isso, apontávamos a contribuir para a construção de estratégias de articulação entre a Medicina Tradicional e a Saúde Pública, em prol de uma maior qualificação da atenção à saúde e, consequentemente, da melhoria da saúde dos povos, além de colaborar para o desenvolvimento de políticas públicas mais adequadas às necessidades da população brasileira.

Os resultados da pesquisa de campo confirmaram a presença de remanescentes de práticas negro-africanas de saúde e cura no bairro paulistano Parque Peruche. Do coletivo de moradores do bairro, identificamos três informantes, sendo duas delas ialorixás – sacerdotisas do culto aos orixás, neste caso, o candomblé – e uma benzedeira. Embora se percebam perdas significativas de parte dos saberes, as práticas dessas informantes mantiveram relativa coerência com o sistema originário da Medicina Tradicional Iorubá.

O território iorubá expande-se pela Nigéria, Togo e República do Benim (antiga Daomé). Dessa região foram trazidos, através do tráfico de escravizados, ancestrais iorubás que participaram ativamente da constituição sociocultural brasileira. Lamentavelmente, o registro escrito desse elo com o passado – os documentos relativos ao tráfico de africanos – foram destruídos, logo após a abolição da escravatura, sob o pretexto de apagar da história o horror da escravidão (Ribeiro, 1996, p. 79).

Esta pesquisa teve a modesta intenção de contribuir com subsídios para a reconstrução dessa memória, visando quebrar o silêncio sobre o tráfico de africanos e a escravidão, e para tal, encontrou inspiração no Projeto “Rota do Escravo: Resistência, Herança e Liberdade”, da UNESCO, estabelecido em 1994 (Unesco, 2006).

Tradição iorubá

Nas sociedades negro-africanas tradicionais, todos os aspectos da vida se articulam para constituir um indivíduo e um grupo saudáveis. Dessa forma, também, a medicina se articula com todos os aspectos da vida e da organização social. Segundo o antropólogo brasileiro-congolês Kabengele Munanga (2007), o negro africano possui uma concepção dinâmica da doença e uma visão holística da pessoa, na qual o espírito e o corpo, o indivíduo e a pessoa são inseparáveis do entorno telúrico, daí também a ausência de separação entre o corpo e os mecanismos inconscientes nos processos terapêuticos. Pesquisadores como a Etnopsicóloga e Doutora em Antropologia da África Negra Ronilda Iyakemi Ribeiro (1996, 2005) e o Doutor em Sociologia e Babalorixá nigeriano Adesiná Síkírù Sàlámì [King] (Sàlámì [King]; Ribeiro, 2011), tem se dedicado, ao longo de mais de três décadas, a fornecer um quadro o mais completo possível de informações sobre os iorubás e seus saberes milenares.

Sobre o conceito de saúde, para os iorubás, ser saudável é ser forte. A felicidade também se encontra vinculada a essa capacidade de ser forte, e ser forte é estar carregado de axé. Axé é como os iorubás chamam a força vital, a energia que flui nos planos físico, social e espiritual. Não há força maior que essa. Toda e qualquer realização depende do axé, que pode ser obtido ou perdido, acumulado ou esgotado, e também transmitido. Seu acúmulo manifesta-se física e socialmente como poder, e seu esgotamento, como doença física ou adversidade de toda ordem (Sàlámì [King]; Ribeiro, 2011, p. 43).

Figura 2 - Duas mulheres negras e santos.

Fonte: Ramos (1940a).

As doenças são consideradas pelos iorubás resultado da associação de múltiplos fatores de distintas ordens. Alguns autores, como Lépine (1992), classificam as doenças em três categorias: (a) naturais – decorrentes da ação de forças naturais ou físicas; (b) sobrenaturais – enviadas por espíritos da natureza e de ancestrais; e (c) aquelas resultantes da maldade de algum ser humano – tais como bruxas(os) e feiticeiras(os) (Lépine, 1992, p. 72).

Para obter a cura, recorre-se a elementos do mundo mineral, vegetal e animal. Em artigo inédito de 1989, o iorubá Doutor em Religião Tradicional Africana, Professor Peter Ade Dòpámú (1989, p. 8) define a Medicina Tradicional Iorubá como “a arte e a ciência de preservar ou restaurar a saúde, através de recursos e forças naturais”. Na sociedade tradicional iorubá, medicina e magia recebem a mesma denominação, pois é a intenção que determina se os procedimentos adotados visam à cura física ou à solução de problemas de outra natureza. Assim, medicina e magia são conhecidas pelos mesmos nomes – òògùn, egbògi ou ìṣègùn (Dopamu, 1989, p. 8).

Ambas utilizam recursos e forças naturais para preservar ou restaurar a saúde e encontram-se sob o domínio da mesma divindade, o Orixá Ossaim. Além disso, compartilham as convicções de que divindades e espíritos auxiliam a cura e que certas substâncias da natureza possuem qualidades próprias, de significado oculto. Os recursos mágicos e medicinais associam-se de tal modo que, em certos rituais, é difícil definir os limites entre eles (Sàlámì [King]; Ribeiro, 2011, p. 44).

O diagnóstico, bem como o tratamento são revelados por meio da consulta oracular, realizada através do jogo divinatório por um babalaô, ialorixá, babalorixá, oníṣègùn ou olosányìn. O jogo revela incompatibilidades energéticas, orientando quanto ao que deve ser evitado por ser energeticamente inadequado. E também apresenta compatibilidades, orientando sobre decisões a serem tomadas, adoção de condutas e prática de virtudes. A consulta inclui ainda a recomendação de interdições (ewo) relativas à alimentação, às cores do vestuário e a comportamentos ou amizades que devem ser evitados (Sàlámì [King]; Ribeiro, 2011, p. 36).

Figura 3 - Baiana do tabuleiro.

Fonte: Ramos (1940b).

No sistema terapêutico da Medicina Tradicional Iorubá, os tratamentos atuam simultaneamente nos planos biológico e espiritual. Decorre daí a necessidade da realização de rituais. Estes nem sempre acompanham a administração de medicamentos, mas podem ser um meio necessário à remoção de causas de ordem espiritual, para que o remédio possa então agir no plano biológico (Ribeiro, 2005, p. 97).

Integração da Medicina Tradicional Iorubá

A partir da Declaração de Alma-Ata, formulada por ocasião da Conferência Internacional sobre Atenção Primária à Saúde, realizada em Alma-Ata (URSS) no ano de 1978, a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1979) passou a recomendar a incorporação da Medicina Tradicional (MT) na atenção primária em saúde. Ainda no final da década de 70, a OMS também instituiu o “Programa de Medicina Tradicional”, que, entre outras ações, tem formulado resoluções no sentido de considerar o valor potencial da Medicina Tradicional em seu conjunto, para a expansão dos serviços de saúde regionais, assim como fornecer informações e orientações técnicas a fim de propiciar as práticas de Medicina Tradicional/Medicina Complementar e Alternativa (MT/MCA) de forma segura e eficaz.

Em 2001 foi realizada na Nigéria a Declaração de Abuja, que promoveu a instituição da 1ª Década da Medicina Tradicional Africana (2001 a 2010), pela Organização da Unidade Africana (OUA). Em 2003, foi inaugurado, na África do Sul, o Dia da Medicina Tradicional Africana, a ser celebrado todos os anos em 31 de agosto. Nossa pesquisa foi realizada durante a 2ª Década da Medicina Tradicional Africana – período de 2011 a 2020 (Organização Mundial da Saúde, 2012).

Na já mencionada busca por estabelecer um diálogo entre a Medicina Tradicional Iorubá e as Políticas Públicas de Atenção Integral à Saúde do Brasil, nosso estudo abordou duas importantes políticas cujas diretrizes permitiam a integração das técnicas da Medicina Tradicional. A primeira delas foi a Política Nacional de Humanização do SUS (PNH) (Brasil, 2013), que inclui a clínica ampliada e supõe “compromisso com o sujeito e seu coletivo” e o “estímulo a diferentes práticas terapêuticas” e a segunda, a Política Nacional das Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) (Brasil, 2006), que contempla sistemas médicos complexos e recursos terapêuticos tradicionais.

Duas das principais balizas do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro são a universalidade do acesso e a integralidade das ações (Conferência Nacional de Saúde, 1987). A partir desses princípios e de pontes estabelecidas com políticas como a PNH e a PNPIC, é possível desenvolver o potencial de aplicação da Medicina Tradicional Iorubá no atendimento à Saúde Individual e Coletiva, tendo em vista a construção de estratégias de articulação entre os saberes tradicionais e a Saúde Pública.

Essa integração, junto à comprovação da existência de remanescentes de práticas negro-africanas de saúde e cura no bairro Parque Peruche, mostra caminhos em direção ao propósito coletivo de resgatar, valorizar e legitimar os saberes tradicionais em favor do bem comum e também como forma de otimizar conhecimentos em prol do Pacto pela Vida no SUS.

[*] Douglas Cabral Rodrigues é enfermeiro pela Universidade Paulista (UNIP). Membro da Liga Acadêmica de Saúde da População Negra da Faculdade Santa Marcelina (LASPN-FASM). Pesquisador do Grupo de Pesquisas (UNIP-CNPq) Estudos Transdisciplinares da Herança Africana. Este artigo recebeu apoio da Fundação Biblioteca Nacional por meio do Edital de Apoio a Pesquisadores Negros (2013) ([email protected])

REFERÊNCIAS

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