BNDigital

Música | Piazzolla: centenário de um ilustre "assassino"

19 out 2021

Artigo arquivado em Música
e marcado com as tags Argentina, Astor Piazzolla, Centenário de Astor Piazzolla, Música Popular, Secult, Tango

O tradicionalíssimo Teatro Colón, principal casa de ópera de Buenos Aires, reabriu em 2021, em meio às restrições impostas pela pandemia de covid-19, com uma missão hercúlea. Além dos novos protocolos sanitários, havia algo mais. Tudo bem que o Colón era mais do que tarimbado para a tarefa: o atual teatro, inaugurado em 1908 a partir de um original de 1857, é hoje considerado um dos cinco melhores do mundo, em termos de acústica. Mas, ainda assim, fazer história não é nada fácil. A partir de março deste ano a casa de espetáculos se juntou a outras tantas, do lado de lá do Rio da Prata, para homenagear, simplesmente, um dos maiores nomes da história da arte argentina, quiçá latino-americana: Astor Pantaleón Piazzolla, no centenário de seu nascimento. Compositor, arranjador e intérprete, gigantesco seja como regente ou à frente de seu bandoneón, Piazzolla foi o grande responsável tanto por renovar o tango argentino (a contragosto de muitas figuras da velha guarda tanguera) quanto por mundializar o gênero. Porque, sim, o tango vai muito além do mero dramalhão boêmio, entre bofetadas, corneadas e borracheras. Há como dimensionar Piazzolla? Pois destampemos um cabernet em memória do baita. E que soem os acordeões nas verdes terras do samba e da bossa também, pois.

***

Talvez alguns dos antigos detratores de Piazzolla se calcassem num simples fato: o de que importante parte da formação musical do compositor argentino se deu fora de sua pátria mãe. Sacrilégio, quando se trata de um nome de peso para um gênero musical ligado a uma identidade nacional? Pelo sim, pelo não, cabe contar um pouco a respeito de sua trajetória.

Rebento dos italianos Vicente Piazzolla e Asunta Manetti, o chiquito Astor veio ao mundo a 11 de março de 1921, em Mar del Plata. Mas, quando tinha apenas três anos de idade, se mudou, com a família, para Nova York, todos em busca de melhores condições de vida. Ah, esses italianos, sempre chegados num desbravamento: foram parar na grande metrópole bem no tempo em que a máfia dava as cartas, em plena Lei Seca. Pobre, manco e morando num bronco bairro imigrante, o pibe platense não tinha lá muitas expectativas de ascensão: podia bem acabar como mais um mamarracho por aí. Mas Astor, não. Começou indo bem nos estudos. Além do espanhol e do italiano, aprendeu o inglês e o francês, ao sabor cosmopolitano do apinhado centro urbano em que vivia, afinal. E aí se interessou pela música. 1929 foi o ano em que foi presenteado com seu primeiro bandoneón, o instrumento que seu pai sabia tocar. Era de segunda mão, comprado numa loja de penhores pelo velho Vicente, que nem desconfiava dos revolucionários desdobramentos futuros de tal regalo - o sucesso "Adiós, Noniño", hoje um clássico, seria a eternizada homenagem de Astor ao pai, quando de seu falecimento, em 1959. Mas ainda não chegamos lá. Vicente viveu o suficiente para constatar que os cerca de dez quilos do bandoneón, semelhante a uma sanfona, jamais deixariam o pescoço do filho, que aprendeu a tocá-lo quase sozinho.

No início dos anos 1930, quando Asunta e Vicente viram que a música era algo sério para seu moleque, veio outro passo importante: Astorzito passou a frequentar as aulas de piano do húngaro Bela Wilde, discípulo de ninguém menos que Sergei Rachmaninoff. Erudição pouca era bobagem. Para completar, foi ainda em Nova York que o jovem Piazzolla conheceu el rey del tango, o cantor Carlos Gardel, num episódio digno de nota. É que em 1934 o vozeirudo bamba trabalhado na gomalina estava zanzando pela cidade enquanto participava das gravações do filme El Día Que Me Quieras, de John Reinhardt. Vicente quis presentear a divindade do tanguera com umas peças de madeira entalhadas e mandou o filho fazer a entrega. Como o acesso à suíte de hotel de Gardel lhe era barrada pelos salames que faziam parte do séquito do astro, o piá ganhou acesso pela escadaria de incêndio. El Mudo caiu de amores pela audácia de Piazzolla filho, um zarpado de marca maior. Como o gurizola falava inglês perfeitamente, serviu de intérprete ao cantor, que o deu um pequeno papel no filme. Curiosidade irresistível para tentar achar no Youtube, nascida desse encontro de gigantes (enquanto um ainda era meio flaco, bem verdade), Piazzolla acabou atuando como entregador de jornais. E o mais importante: Carlos Gardel parou para ouvir o garoto tocar o bandoneón. Acabou saindo com essa: "Você será grande, mas o tango você toca feito um galego". Astor acabou, ainda assim, sendo convidado a participar da turnê pelas Américas de Gardel, mas Vicente ficou cabreiro. Recusou o convite, já que Astor tinha apenas 13 anos. Ainda bem. Pois foi naquela excursão, meses depois, que o avião de Gardel caiu, vitimando todos os seus acompanhantes em 24 de junho de 1935, em Medellín, na Colômbia. Que vida boluda. Foi um cortamambo sem tamanho na Argentina.

***

Se por volta de 1936 a família Piazzolla se mudou novamente para a terra do tango e do mate amargo, cerca de dois anos depois, com quase 18 anos, Astor se fixou em Buenos Aires, onde tudo acontecia. Já há muito sem tocar como um galego, foi ali que se integrou no meio tanguero, pulsando firme em grupos como a afamada orquestra de tango de Aníbal Troilo. Nesse momento já era casado com Odette María Wolff, sua primeira esposa, e pai de dois filhos, um chavón e uma nena. Mas a experiência não era suficiente. No grupo de Troilo Piazzolla ganhou fama de hincha pelotas: queria dar muitos pitacos, mudar uma coisa ali e outra coisa aqui, e mandava os demais instrumentistas estudar música. Então, no início dos anos 1940 o impaciente portento decidiu ele próprio seguir seu conselho: fora da orquestra, voltou aos estudos de música, com o compositor Alberto Ginastera, um erudito repleto de preocupações nacionalistas junto à arte, mas que nem por isso deixava de pagar o devido tributo às estéticas de vanguarda. Com essas influências, Astor pariu, por esses dias, sua "Suite para cuerdas y arpa".

Embora um tanto pesado e esquisitão, na década de 1940, Piazzolla parecia ter pela frente uma carreira musical nada mal. Abandonando a orquestra de Troilo, passou a dirigir uma outra, de acompanhamento ao cantor Francisco Fiorentino, popularíssimo, verdadeiro bam bam bam nos círculos portenhos. Ascendendo, em 1946 o jovem prodígio enfim organizou um grupo próprio, mas que ainda seguia o tango tradicional. Convencional, Astor ainda era o Piazzolla que em geral agradava o status quo estético de seu meio, local e época. Mas também não era nenhum chupamedias: sua situação logo mudaria. Adentrando os anos 1950, o artista ganhou diversos prêmios na Argentina, nos EUA e na França, por suas composições eruditas. Até que em 1954 faturou uma bolsa de estudos para aperfeiçoamento na França, com a virtuosa professora Nadia Boulanger. Guardem esse nome, a quem tanto devemos. Pois foi quando voltou de lá, para Buenos Aires, que Astor Piazzolla encetou, de fato, sua ruptura com o tango tradicional, fazendo escola por si só. Foi Nadia quem o incentivou a não abrir mão nem do tango, nem da música clássica. Em sua visão, não havia dicotomia entre os gêneros. E foi aí que Astor Piazzolla se tornou, de fato, um capo musical.

***

Piazzolla é hoje considerado genial, mas nem sempre foi assim. Seus louros, na verdade, se deram às custas de muito estudo, paciência, sofrimento, tempo, reflexão, rejeição e perseverança. Tudo porque resolveu mexer nesse grande vespeiro chamado tango - referência maiúscula da identidade argentina, até então intocável. Mas o músico de que falamos era um tanto toquetón. Depois de retornar da França, empreendeu, a seu gosto, uma fusão do gênero tradicional argentino com outros elementos da música ocidental, em especial a de concerto e o jazz, criando um estilo novo, individual, que transcendia quaisquer categorias. Não à toa, uma de suas músicas icônicas dessa fase de ruptura, composta anos depois, se chamaria "Libertango". O problema é que Piazzolla, quando veio com essa, chocou suas conchudas audiências, que consideraram que o compositor havia metido a pata no sacrossanto estilo musical. Não era de se admirar que tamanha revolução provocasse a ira de certas pessoas, da crítica especializada aos simples amantes da boa música: sempre que novas fronteiras são cruzadas damos de cara com a controvérsia, por bem ou por mal. Puristas argentinos reclamaram a ponto de xingá-lo pelas ruas, onde passou a ser chamado, não raro, de "assassino" do tango. Como fez um taxista, um dia, ao recusar uma corrida para Astor, na cara dura. Seus tangos não eram dançantes, diziam os demais, e além disso eram "complicados". Até que Piazzolla conseguia gravar discos e tocar em cafés, mas era considerado um maldito por muitos. Seus críticos achavam que o lugar devido ao virtuoso era, na verdade, o esquecimento, coisa que, por si só, já daria um tango, e dos mais guamperos. Triste, Astor emendava um pucho no outro.

Mal iniciada sua nova fase, em 1958 o compositor acabou achando melhor se estabelecer em Nova York, onde trabalhou como arranjador. Piazzolla não era nenhum papa-fritas cagón: com suas extensas harmonias, dissonâncias e uso de contraponto, misturados a boas doses de lirismo, dor e solidão, sua música acabou sendo reconhecida como um gênero novo, o Novo Tango, palatável, exótico e familiar na medida certa a audiências estrangeiras, que ficaram boquiabertas com a novidade. Haveria aí algum diálogo entre a música de Piazzolla e o fascínio gringo com a literatura da América Latina, em autores como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar, bem na mesma época? Fato é que o compositor acabou voltando para a Argentina por volta de 1960, já com outro status, formando, enfim, o quinteto Nuevo Tango, que excursionava dentro e fora do país.

Antes considerado malaleche, Piazzolla ganhou o mundo, dando, na verdade, nova vida ao gênero que "matara". Tamanho estrondo rendeu. Até que lá pela década de 1980 Astor Piazzolla passou a ser reconhecido, finalmente, na Argentina. Demorou. Nem houve tanto tempo para que o tarimbado curtisse o sucesso em casa, falecido em 1992 após uma hemorragia cerebral dois anos antes. Melhor deixar a amargura para o tango. E apenas imaginar se em pleno centenário do (hoje sim) filho pródigo de Mar del Plata não se prestariam as devidas homenagens. ¡Ni en pedo!

Explore os documentos:

Em 1972, Amelita Balthar, segunda esposa de Astor Piazzolla, dá entrevista para a revista Manchete, em plena onda de popularização do novo tango

Em 1983, Roberto Muggiati avalia o "tango progressivo": "nasceu do casamento da Cumparsita com o bebop".

"Astor Piazzolla: um bandoneon na terra do samba", entrevista de Piazzolla a Tarlis Batista em 1989, para a Manchete:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/257870

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/257871