Psicologia | 100 anos de O Eu e o Id, de Sigmund Freud
por Bruno Brasil
24 abr 2023
Artigo arquivado em Psicologia
No mundo ocidental, deitar num divã, depois de 24 de abril de 1923, nunca mais foi sinônimo exclusivo de puro e simples repouso. Pudera: foi nessa data, há cem anos, que Sigmund Freud trazia a lume seu clássico estudo O Eu e o Id, ajudando a reforçar a psicanálise, verdadeiro divisor de águas na forma de se entender a psicologia humana. Publicado pela Internationaler Psycho-analytischer Verlag, de W. W. Norton & Company, em Viena, o livro não era o primeiro do psicanalista: retomava, sintetizava e desenvolvia décadas de estudos, reflexões e observações clínicas, previamente veiculados em obras seminais como Estudos sobre a histeria, de 1895; A interpretação dos sonhos, de 1900; Narcisismo: uma introdução, de 1914; e Além dos princípios do prazer, de 1920. Trazendo, assim, uma coletânea revisada de teorias e pensamentos básicos sobre a proposta psicanalítica, desde então, O Eu e o Id se tornou uma ferramenta indispensável para qualquer um que queira se aventurar pelas sombrias sendas da mente humana. E não só por dentro da metodologia científica: diversos conceitos desenvolvidos por Freud, em suas páginas, se tornaram tão populares que extrapolaram os limites da academia: quem afinal nunca ouviu falar em ego e em subconsciente?
***
Aos leigos, cabe sempre dar uma palhinha. Segundo Freud, o Id seria uma faceta instintiva e orgânica da vida humana, presente desde o nascimento em cada um de nós; é ele o responsável pelos impulsos mais básicos em nossas vidas, em especial os de agressividade e desejo sexual. É uma força que age independentemente do pensamento, e em duas direções: buscando prazer e tomando distância da dor, em movimentos coexistentes, que não se cancelam. Já o Eu (ou o Ego) age segundo o “princípio de realidade”, seu sinônimo: é a forma racional como a mente entende os fluxos do mundo exterior, tentando mediar os impulsos inconscientes do Id com as impossibilidades do real, buscando atendê-los, mas “com os pés no chão”. A cachola humana ainda tem espaço para o compartimento do Super-ego, que é, basicamente, o conjunto de normas morais e culturais que absorvemos na vida em sociedade, ensinados por modelos: tanto em família como através de instituições educacionais, ou mesmo via identidade e noções de pertencimento comunitário. Um exemplo clássico de Freud sempre ajudou a entender de forma bem clara: o Id é um cavalo selvagem tentando ser controlado pelo Eu, seu cavaleiro, de acordo com ordens de um professor de equitação, o Super-ego.
Como exposto em O Eu e o Id, a divisão entre os campos mentais da consciência e da inconsciência é uma premissa básica para a psicologia: assim sendo, algumas partes do Eu e do Super-ego estão às claras, na consciência; mas o Id descansa lá em nosso fundo, no subconsciente, essa grande, obscura e curiosa caixa de surpresas que parece entender mais sobre nós do que nós mesmos. A linha de raciocínio exposta por Freud no livro busca, assim, explicar inúmeras condições psicológicas, todas oriundas de profundas tensões internas entre o Id, o Eu e o Super-ego. No fogo cruzado entre pulsões distintas – como as de vida ou de morte –, a interação entre os três pode lançar mão de grande leque de mecanismos de defesa, como racionalização, negação, fantasia, compensação, projeção, regressão, repressão, etc.
A observação dos movimentos entre os três aspectos da mente humana, manifestos em comportamentos classificados como patológicos ou não, gerou, através dos pensamentos do autor e de percepções clínicas retiradas do divã, inúmeras outras caracterizações freudianas, todas importantes para a fundação da psicanálise e, portanto, para o estabelecimento de arcabouços terapêuticos. Isso vale mesmo para a conceituação questionada e refutada por terapeutas posteriores a Freud, que desde cedo encontrou divergências a seus estudos, a exemplo do ocorrido com seu antigo pupilo mais famoso, Carl Gustav Jung. Esse não foi exatamente o caso da menos lembrada Anna Freud, que não só manteve o legado teórico de seu pai conforme seus direcionamentos, mas o expandiu. Seja como for, entre prós e contras, cedo ou tarde mesmo os mais incrédulos tiveram que refletir a respeito de ideias originalmente freudianas.
***
Detalhes biográficos de Sigmund Freud abundam por aí. Sabe-se que seu primeiro paciente foi ele mesmo, em 1897, um ano depois de cunhar o termo “psicanálise”. Foi quando, abalado pela morte de seu pai, deu-se a analisar suas fantasias e sonhos com a ajuda do médico e amigo íntimo Wilhelm Fliess, um especialista em estudos ligados à sexualidade humana. Até o ano de publicação da revisão de toda a sua obra até ali, em O Eu e o Id, muitas águas rolaram. 1923, aliás, foi um ano de tormento para Freud: foi quando obteve um diagnóstico de câncer na mandíbula. Até o fim de sua vida, em 1939, o cientista teve que passar por 33 intervenções cirúrgicas, fora o incômodo trabalho protético. Ainda assim, Freud costumava brincar com a própria doença. Mas chorar mesmo só chorou, por aqueles dias, quando seu neto de 4 anos faleceu: há sempre dores piores.
Nenhum pensamento humano – e nenhuma atitude – se dá por acaso, como diria Sigmund Freud. Para ele, tudo tem uma causa, como um pano de fundo. Seja por intenções (ou tensões) conscientes ou inconscientes, tentativas de se rearranjar o caos aparente no mundo ou dentro de nossas cabeças estão repletas de elos mais ou menos ocultos. Descortiná-los é uma questão de bem-estar. Pode ser que essa predisposição não explique tudo. Mas explica muito.

Explore os documentos:
Em 12 de agosto de 1933, quase dez anos depois da publicação de O Eu e o Id, a revista semanal carioca Cruzeiro, dos Diários Associados, traz pequena reportagem ilustrada sobre Sigmund Freud, em momento em que o pai da psicanálise contava 76 anos de idade:
http://memoria.bn.br/DocReader/003581/9826
Na revista Manchete de 23 de outubro de 1965, Pedro Bloch entrevista "discípulo do pai da psicanálise", tratando do relativo esquecimento a respeito de Sigmund Freud na Viena dos anos 1960:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/66087
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/66088
Em 27 de abril de 1968, revista traz texto biográfico sobre Freud, assinado por R. Magalhães Júnior:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/85558
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/85560
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/85562
Problemas no velho divã: Manchete mostra, em edição de 22 de março de 1969, a perda de terreno da psicanálise convencional, individualista, para dinâmicas de grupo:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/93531
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/93532
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/93533
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/93534
Divergências e novas leituras: depois de Freud, o bastão da psicanálise passou a Anna, sua filha. Mas quais seriam os rumos do tratamento clínico da mente humana? Em 18 de abril de 1970, Manchete tentava responder:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/104728
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/104729
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/104730
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/104732
Já em 28 de agosto de 1971, revista de Adolpho Bloch abordava a relação complicada entre a psicanálise e a Igreja Católica:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/117000
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/117001
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/117002
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/117004
Em 4 de junho de 1988, Manchete traz foto de Sigmund Freud e sua filha Anna, sua única descendente a trilhar o caminho da psicologia, tirada em passeio no ano de 1913, dez anos antes da publicação de O Eu e o Id:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/251156
Bibliografia:
BIRMAN, J. Estilo e Modernidade em Psicanálise. São Paulo: Ed. 34, 1997.
FREUD, Sigmund. O eu e o Id (1923). In: O eu e o Id, uma Neurose Demoníaca do século XVII e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand Lefebvre. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
MOREIRA, Jacqueline de Oliveira. Revisitando o conceito de eu em Freud: da identidade à alteridade. Estudos e pesquisas em psicologia, volume 9, número 1. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), abril de 2009. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/9147/7522. Acesso em: 23 de março de 2023.
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Aos leigos, cabe sempre dar uma palhinha. Segundo Freud, o Id seria uma faceta instintiva e orgânica da vida humana, presente desde o nascimento em cada um de nós; é ele o responsável pelos impulsos mais básicos em nossas vidas, em especial os de agressividade e desejo sexual. É uma força que age independentemente do pensamento, e em duas direções: buscando prazer e tomando distância da dor, em movimentos coexistentes, que não se cancelam. Já o Eu (ou o Ego) age segundo o “princípio de realidade”, seu sinônimo: é a forma racional como a mente entende os fluxos do mundo exterior, tentando mediar os impulsos inconscientes do Id com as impossibilidades do real, buscando atendê-los, mas “com os pés no chão”. A cachola humana ainda tem espaço para o compartimento do Super-ego, que é, basicamente, o conjunto de normas morais e culturais que absorvemos na vida em sociedade, ensinados por modelos: tanto em família como através de instituições educacionais, ou mesmo via identidade e noções de pertencimento comunitário. Um exemplo clássico de Freud sempre ajudou a entender de forma bem clara: o Id é um cavalo selvagem tentando ser controlado pelo Eu, seu cavaleiro, de acordo com ordens de um professor de equitação, o Super-ego.
Como exposto em O Eu e o Id, a divisão entre os campos mentais da consciência e da inconsciência é uma premissa básica para a psicologia: assim sendo, algumas partes do Eu e do Super-ego estão às claras, na consciência; mas o Id descansa lá em nosso fundo, no subconsciente, essa grande, obscura e curiosa caixa de surpresas que parece entender mais sobre nós do que nós mesmos. A linha de raciocínio exposta por Freud no livro busca, assim, explicar inúmeras condições psicológicas, todas oriundas de profundas tensões internas entre o Id, o Eu e o Super-ego. No fogo cruzado entre pulsões distintas – como as de vida ou de morte –, a interação entre os três pode lançar mão de grande leque de mecanismos de defesa, como racionalização, negação, fantasia, compensação, projeção, regressão, repressão, etc.
A observação dos movimentos entre os três aspectos da mente humana, manifestos em comportamentos classificados como patológicos ou não, gerou, através dos pensamentos do autor e de percepções clínicas retiradas do divã, inúmeras outras caracterizações freudianas, todas importantes para a fundação da psicanálise e, portanto, para o estabelecimento de arcabouços terapêuticos. Isso vale mesmo para a conceituação questionada e refutada por terapeutas posteriores a Freud, que desde cedo encontrou divergências a seus estudos, a exemplo do ocorrido com seu antigo pupilo mais famoso, Carl Gustav Jung. Esse não foi exatamente o caso da menos lembrada Anna Freud, que não só manteve o legado teórico de seu pai conforme seus direcionamentos, mas o expandiu. Seja como for, entre prós e contras, cedo ou tarde mesmo os mais incrédulos tiveram que refletir a respeito de ideias originalmente freudianas.
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Detalhes biográficos de Sigmund Freud abundam por aí. Sabe-se que seu primeiro paciente foi ele mesmo, em 1897, um ano depois de cunhar o termo “psicanálise”. Foi quando, abalado pela morte de seu pai, deu-se a analisar suas fantasias e sonhos com a ajuda do médico e amigo íntimo Wilhelm Fliess, um especialista em estudos ligados à sexualidade humana. Até o ano de publicação da revisão de toda a sua obra até ali, em O Eu e o Id, muitas águas rolaram. 1923, aliás, foi um ano de tormento para Freud: foi quando obteve um diagnóstico de câncer na mandíbula. Até o fim de sua vida, em 1939, o cientista teve que passar por 33 intervenções cirúrgicas, fora o incômodo trabalho protético. Ainda assim, Freud costumava brincar com a própria doença. Mas chorar mesmo só chorou, por aqueles dias, quando seu neto de 4 anos faleceu: há sempre dores piores.
Nenhum pensamento humano – e nenhuma atitude – se dá por acaso, como diria Sigmund Freud. Para ele, tudo tem uma causa, como um pano de fundo. Seja por intenções (ou tensões) conscientes ou inconscientes, tentativas de se rearranjar o caos aparente no mundo ou dentro de nossas cabeças estão repletas de elos mais ou menos ocultos. Descortiná-los é uma questão de bem-estar. Pode ser que essa predisposição não explique tudo. Mas explica muito.

Explore os documentos:
Em 12 de agosto de 1933, quase dez anos depois da publicação de O Eu e o Id, a revista semanal carioca Cruzeiro, dos Diários Associados, traz pequena reportagem ilustrada sobre Sigmund Freud, em momento em que o pai da psicanálise contava 76 anos de idade:
http://memoria.bn.br/DocReader/003581/9826
Na revista Manchete de 23 de outubro de 1965, Pedro Bloch entrevista "discípulo do pai da psicanálise", tratando do relativo esquecimento a respeito de Sigmund Freud na Viena dos anos 1960:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/66087
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/66088
Em 27 de abril de 1968, revista traz texto biográfico sobre Freud, assinado por R. Magalhães Júnior:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/85558
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/85560
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/85562
Problemas no velho divã: Manchete mostra, em edição de 22 de março de 1969, a perda de terreno da psicanálise convencional, individualista, para dinâmicas de grupo:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/93531
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/93532
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/93533
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/93534
Divergências e novas leituras: depois de Freud, o bastão da psicanálise passou a Anna, sua filha. Mas quais seriam os rumos do tratamento clínico da mente humana? Em 18 de abril de 1970, Manchete tentava responder:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/104728
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/104729
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/104730
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/104732
Já em 28 de agosto de 1971, revista de Adolpho Bloch abordava a relação complicada entre a psicanálise e a Igreja Católica:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/117000
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/117001
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/117002
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/117004
Em 4 de junho de 1988, Manchete traz foto de Sigmund Freud e sua filha Anna, sua única descendente a trilhar o caminho da psicologia, tirada em passeio no ano de 1913, dez anos antes da publicação de O Eu e o Id:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/251156
Bibliografia:
BIRMAN, J. Estilo e Modernidade em Psicanálise. São Paulo: Ed. 34, 1997.
FREUD, Sigmund. O eu e o Id (1923). In: O eu e o Id, uma Neurose Demoníaca do século XVII e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand Lefebvre. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
MOREIRA, Jacqueline de Oliveira. Revisitando o conceito de eu em Freud: da identidade à alteridade. Estudos e pesquisas em psicologia, volume 9, número 1. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), abril de 2009. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/9147/7522. Acesso em: 23 de março de 2023.