Christiano Junior e a face escrava do Brasil

Christiano Junior e a face escrava do Brasil

Christiano Junior e a face escrava do Brasil

Carlos Eugenio Libano Soares
Doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas Professor adjunto da Universidade Federal da Bahia

A década de 1860 foi um momento chave na história da fotografia no Brasil. Apesar da primeira fotografia feita neste país datar de 1840 (um daguerrótipo do Paço Imperial mostrando a comitiva do recém-coroado Imperador Pedro II) estes primeiros vinte anos assistiram apenas isoladas experiências, com exceção de visitantes estrangeiros, como o alemão Klumb, que produziu excelentes imagens do Rio de Janeiro na exata metade do século XIX.
A partir de 1860 a fotografia definitivamente se populariza. Deixa de ser uma atividade excêntrica trazida por europeus e passa ser comercializada, com ateliês espalhados pelas ruas. Christiano Junior foi um destes pioneiros. Foi o primeiro a produzir imagens exclusivamente de escravos, vendidas em geral como cartes de visite (cartões postais) para europeus que retornavam, um formato inovador que também lhe deu grande popularidade na época.
Mas o pioneirismo de Christiano tem de ser entendido além do mercadológico. Por volta de 1860 a lei Eusébio de Queiroz, que extinguiu em definitivo o desembarque de escravos africanos no Brasil, fazia dez anos. Por quase meio século o tráfico de africanos escravizados para o Império era uma chaga na imagem do Brasil junto às nações européias mais “civilizadas”. A escravidão e a presença em massa de africanos nas ruas da capital do império era vista pelos mais europeizados como um sinal do atraso, que envergonhava frente às nações mais adiantadas do continente, como Argentina e Uruguai.
Mas na década de 1860 este problema parecia encaminhado. O tráfico atlântico cessou na totalidade. A mortalidade cuidaria dos africanos e a escravidão se extinguiria lentamente, sem comprometer a propriedade. Novos tempos se anunciavam. Assim, a presença de africanos pelas ruas da Corte perdeu muito do seu impacto negativo, como a lembrança da participação de renomados representantes da elite aristocrática nas criminosas especulações do tráfico clandestino.
É neste contexto que a coleção de Christiano Junior tem de ser enfocada. A primeira evidência que se destaca é que o escravo urbano não é só o centro, mais a totalidade da imagem retratada. Fotos com escravos não eram novidade (vide Klumb em 1850), mas agora eles não acompanhavam indivíduos de outras classes, e sim dominavam sozinhos o cenário.
O primeiro impacto é que Christiano quis retratar os cativos de rua na exata medida da sua ambiência de trabalho. As roupas são as mesmas usadas na lida urbana, sem retoques que alguns senhores tentavam imprimir na imagem de suas “propriedades”, e os instrumentos de trabalho são patentes. O escravo ao ganho – que percorria as ruas vendendo produtos ou sua capacidade de trabalho – era o centro, como o cesteiro, com as mãos na palha de seu ofício e o olhar desconfiado e rebelde, transmitindo para posteridade o estado de espírito de alguém estigmatizado todo tempo como propriedade servil.
No meio urbano os escravos gozavam de relativa autonomia, e pelo regime do ganho podiam acumular polpudas rendas. Ninguém retrata mais este paradoxo que as célebres quitandeiras da Costa da Mina. Hábeis vendedoras, oriundas da África Ocidental e re-exportadas da Bahia, elas dominavam na Corte o comércio de alimentos no varejo. Sua imagem característica, com o turbante vistoso e o Pano da Costa, encantava europeus e moradores, e as transformaram em lendas na paisagem das ruas. Christiano fez questão de retratá-las com destaque, possivelmente escolhendo as mais belas e mais jovens. A beleza das pretas minas era como a face rósea da escravidão africana, e elas seduziram vários europeus, como Charles Expilly, Dabadie e Luis Agassiz.
Também era intuito de Christiano superar os estereótipos de barbárie e selvageria que cercavam os africanos no olhar de alguns brancos. A imagem dos pretos apertando as mãos em trajes (quase) europeus evoca uma civilidade africana, uma sociedade de escravos, regida pela cordialidade e as boas maneiras, se bem que meio caricatural na visão dos modos e costumes da elite branca.
Buscava Christiano superar alguns arraigados preconceitos. A imagem da quitandeira com marcas no rosto da nação Mina em sua banca ao lado do moleque crioulo evoca, mesmo longinquamente, a família, num tempo em que os “letrados” afirmavam categoricamente que escravos não podiam ter sentimentos familiares. O mesmo pode ser dito na roupa da africana, que vende laranjas, também sinal de riqueza, rara entre escravos. A mesma africana aparece em seguida carregando o balaio de frutas, em sutil diferença da imagem anterior, pois na época as quitandeiras estabelecidas (que tinham ponto fixo nas ruas) estavam em status superior daquelas ambulantes, que percorriam as ruas sempre em movimento.
Outras escravas não gozavam da pompa das quitandeiras minas. A humilde crioula (não tem marcas de nação nem turbante) que olha tristemente para sua simples banca de verduras evoca a dura vida das vendedoras de rua, sempre expostas a sanha criminosa e aos desmandos da polícia. O detalhe pouco visto da barra da saia suja de lama testemunha o quanto elas vagavam pelas ruas de terra da cidade. Também merece destaque o barbeiro africano, figura onipresente nas ruas da cidade desde remotos tempos coloniais. Seus clientes em 1860 eram ainda outros escravos, mas os penteados étnicos da 1a metade do século XIX (vide Debret) tinham aparentemente desaparecido.
As marcas faciais não. Em uma das fotos, dois carregadores africanos, o primeiro da nação Quilimane, da África Oriental, e o mina, do extremo ocidental da continente, denotam a variedade “tribal” (étnica) que marcava a comunidade africana na cidade, transformada em um autêntico labirinto de nações. Variedade também ocupacional: Enquanto as mulheres ocupavam em geral funções de vendedoras de alimento (quitandeiras, de Quitanda, venda no idioma Kimbundo de Angola) os homens eram carregadores. Nada passava na cidade, na visão dos viajantes, que não fosse pela cabeça dos negros, como o idoso carregador de cadeiras retratado por Christiano. Um escravo jovem tinha no ofício de carregador a primeira forma, mais braçal, de entrar no mercado de ganho, e em uma cidade de ruas estreitas, todas de terra (a primeira rua pavimentada do Rio vai aparecer em 1872) a dependência dos moradores para com estes cativos era muito grande.
Christiano quis retratar a onipresença destes personagens, sua dominação na paisagem urbana, mesmo que fosse desagradável para alguns olhares brancos. Mas a lente de Christiano também se voltava para retratos raciais. Como homem de seu tempo ele em certo momento projeta em galeria os stocks da raça negra que espantavam europeus mal acostumados, e fazia do Rio uma urbe africana: crioulos jovens de torso nu, quitandeiras minas com longos turbantes, idosos de barba branca e olhar venerável, africanos ainda vigorosos trazidos nas últimas levas do comércio negreiro transatlântico com suas marcas faciais; um mina com três longos lanhos se projetando do canto da boca para as orelhas; uma mina quitandeira já retratada, com um duro olhar de recriminação, e as marcas da varíola; um africano com cabelos em desalinho, parecendo recém-desembarcado do negreiro; um jovem calvo; um senhor de barba corrida; um macua da África Oriental, e por fim um quilimane vindo das distantes planícies do Zambeze.
Christiano Junior é um testemunho raro de uma cidade do Rio que até hoje é incômoda para alguns de seus moradores. A crueza de suas fotos, sem retoques tão ao gosto da época, a mensagem crua que alguns olhares de negros transmitiram para a os contemporâneos (e para a posteridade) a presença do fardo do trabalho escravizado, os pés descalços, a persistência da África nos turbantes e Panos da Costa, tudo isso dá as imagens de Christiano um dom de testemunho, um quê de viagem ao desconhecido, que raros outros fotógrafos tiveram coragem de fazer, um olhar social (talvez involuntário) escondido no estereótipo do exótico, do primitivo, do bárbaro, do pitoresco, móvel comercial do seu apelo aos viajantes europeus de então. Christiano forjou um autêntico documento visual, ainda mal estudado pelos pesquisadores da escravidão urbana (ainda pouco estudada em contrapartida a rural). Seu olhar merece um novo olhar.

Veja aqui a galeria de fotografias de Christiano Junior pertencentes ao Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional.

Consulte o acervo de Christiano Junior na base de dados do Museu Histórico Nacional.

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