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A Cartografia Histórica: do século XVI ao XVIII

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PARTE DO GOVERNO DE S. PAULLO [E] PARTE DOS DOMINIOS DA COROA DE CASTELLA E PARTE DO GOUERNO DE SAM PAULLO E PARTE DOS DOMINIOS DA COROA DE ESPANHA

Os mapas sertanistas, com os respectivos títulos: “Parte do governo de S. Paullo [e] parte dos dominios da Coroa de Castella” e “Parte do gouerno de Sam Paullo e parte dos dominios da Coroa de Espanha” são de autores anônimos, manuscritos no século XVIII.

Ambos compreendem a região situada entre a costa dos atuais Estados de São Paulo e Paraná e a região do Pantanal Mato-Grossense, como também, parte dos atuais países: Paraguai e Bolívia. Tendo em vista que os dois mapas se completam, a descrição será feita em conjunto. É importante ressaltar que eles foram citados na obra de Jaime Cortesão – História do Brasil nos velhos mapas, nas páginas 226-227.

Eles são ricos em legendas e descrições dos caminhos dos bandeirantes, das reduções jesuíticas destruídas, das aldeias indígenas e das minas. O primeiro representa um esboço para o segundo, de acordo com Jaime Cortesão este parece ter sido feito por volta de 1740.

O mapa “Parte do governo de S. Paullo [e] parte dos dominios da Coroa de Castella” mostra o sertão dos Caiapós, a “parage[m] dos gentios Caiapós, as minas com a seguinte descrição: “Estas minas já forão descubertas por Sebastião Marinho (...) no tempo de Felipe 2° em 1592”, o arraial do Capitão Mor com a descrição que “da cidade de São Paulo sahio o capitão mor Bartolomeu Bueno (...) com sua tropa e povoou este arraial em 1721”, os rios Araruy, Guaizes, Meia Ponta e do Venheiro (sic), a “cachoeira horrenda” (atual salto de Urubupungá no rio Paraná com o Tietê), os rios Paraná, Tietê e o Paranapanema, a região de Pantanal, as reduções jesuíticas destruídas: Santo Inácio e São Xavier; Nossa Senhora das (...) de Iguape, a vila de Curitiba, a Freguesia de Santo Inácio, Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá, a vila do Coral, Guaratiba, Araquary, Itapiocara, o rio Uruaig (sic) ou das Missões dos Padres, descreve a “varja das vacarias dos gentios cavalleiros e Guaicurus”, o rio da Vacaria, as Chapadas, o rio Pardo, Xeres onde é salientado “Xeres destruhida por Ascencio de quadros depos da aclamação do Serenisimo Senhor Rey D. João em 1648. Tinha o Bispo que hia fazer as crismas por todas as aldeias dos Paraguay” (segundo Jaime Cortesão, a atribuição a Ascencio está de acordo com a documentação jesuítica), o rio Anhanduy (sic), a região do Pantanal, algumas minas, Bom Jesus, onde lê-se: “Aqui estão os gentios Montageros”, o arraial perto dos gentios Cachipores, os rios Paraguai, Cuiabá, dos Porrudos (atual São Luurenço), a região de Pantanal, as aldeias dos Xacoris, dos Serajes, e dos Iyarutuba, a Ilha dos Paiaguás, “Nesta passage em que se gastam 4 dias. E dos Payaguas atacarão esta frota de canoas que descia o Cuyaba (...)”, a Ilha dos Papagaios e a Lagoa de Bocayutuba.

Na parte dos domínios espanhóis encontramos Santa Cruz de la Sierra, os Serranos “nesta aldeia o gentio matarão os Padres (...)” e os caminhos que do Paraguai seguia para os Serranos, ou seja, os “chiriguanos”, que segundo Jaime Cortesão habitavam as faldas orientais dos Andes; o rio de Paiaguás, S. Thiago del distierro, o rio Araguaia e “la Conceicion destruhida em 1691”.

No segundo mapa “Parte do gouerno de Sam Paullo e parte dos dominios da Coroa de Espanha”, aparece a aldeia dos gentios Guaizes, o arraial do Capitão mor Bartolomeu Bueno, o arraial de João Leite, a Vila de Nossa Senhora do Rosário dos Guaizes, entre o rios do Rosário e o Camargo, onde lê-se: “Estas minas já forão descubertas por Sebastião Marinho no tempo de Felipe 2°, em 1592”, nesta região vê-se o traçado do caminho que seguia por terra desde São Paulo até as minas de Goiás, como também, mostra os rios Meia Ponta, Oacorumba (sic), Parnaíba dos Caiapós ou Ararary (possivelmente o atual Paranaíba, continuação do rio Paraná), das Velhas, o rio Grande, o Paraná, a “cachoeira horrenda de Urubuponga” (atual Salto de Urubupungá, entre os rios Paraná e Tietê), o rio Tietê e o Paranapanema, onde aparece o “caminho por terra do Tietê para o Paranapanema” e as descrições: “são 20 dias desta barra até o salto das cariocas”, “caminho velho que fazião embarcar doze pello Paranapanema para hirem pela varges ao Cuyaba” e “cabiceiras do Paranapanema descubertas por Salvador Jorge”; a vila de Piracicaba, a vila de Itu, Mogi, Jundiaí, Cubatão e o rio Tibagi.

Entre o Paranapanema e o Tibagi estão assinaladas cinco das reduções jesuíticas destruídas entre 1629 e 1631, segundo Jaime Cortesão, por Antônio Raposo Tavares e André Fernandes: Santo Inácio, São Xavier, Encarnação, São Miguel e a de São José. O mapa inclui também o rio Capitindiba, a vila de Sorocaba com a legenda: “esta vila foi feita cidade por El Rey Felipe 3º por da lhe o nome de São Felipe em tempo de Dom Francisco de Souza conde do Pardo em 1612”, o rio de Sorocaba, Guaratuba, a vila de Conceição, a aldeia de São João, o rio de Una, o ribeirão de Iguape, Bom Jesus, a Fazenda dos Padres, a vila de São João da Cananéia, a Vila de Curitiba e o porto de Paranaguá. Abaixo do rio Ivaí observam-se as reduções destruídas de Vila Rica, São Paulo e São Antônio. Cabe ressaltar que de São Paulo a Sorocaba segue um caminho que se dirige à vila de Curitiba e aos currais do norte do atual Estado do Rio Grande do Sul.

Destacando ainda, o rio Paraguai, o Cuiabá, a paragem dos gentios Caiapós, a aldeia dos gentios Cachipones, a vila de Bom Jesus do Cuiabá, algumas minas, e a legenda: “Rodrigo Sezar estabeleceu esta vila do Senhor do Bom Jesus do Cuyaba em 1725”, “nesta pasagem he que os Payagazes tomarão o nosso comboy de canoas que vinhão do Cuyaba com os quintos de Sua Magestade em 1730”, as aldeias dos Xacoris, dos gentios Guaratubas, dos Serapes e dos Tamandarés, a região do Pantanal, o rio dos Porrudos (atual São Lourenço), o rio de Axianes, a Ilha dos Payagazes, o rio Taquari, o rio Cochim, a lagoa de Bocayatuba, onde lê-se: “nesta aldeia o gentio matando os Padres”, o rio Botetey e Xares onde lê-se: “destruhida por Antonio Raposo Tavares em 1648. Tinha Bispo p/ dia fazer as crismas perto das aldeias do Paraguay”, “em 1685 quizerão os castelhanos restabelecer esta cidade de Xeres e os paulistas os fizerão despejar” e “a estas chapas he que vem todos os annos e exzaminar se os paulisttas as povoão”.

Na parte dos domínios da Coroa da Espanha encontram-se: “la conceicion destruhida em 1691”, o rio Araguaia, S. Thiago distierro, o rio da Prata, o rio Paiaguás, a região de Pantanal, o rio São Lourenço, a serra dos Seriguanos e Santa Cruz de la Sierra.

No que tange à história do Brasil é importante ressaltar que os bandeirantes se beneficiaram da extensa rede hidrográfica brasileira que a partir do Tietê, Pinheiros, Cotia e Piracicaba alcançavam a bacia do Prata, o Parnaíba e o São Francisco. Cabe destacar que o transporte não era apenas fluvial, como também, aproveitavam as margens dos rios, as trilhas indígenas e os rastros deixados por animais.

Por tudo isso, faz-se necessário traçar o perfil da chamada cartografia bandeirante e sua importância na História Colonial brasileira. De acordo com Jaime Cortesão, as cartas sertanistas e bandeirantes evidenciaram que ao lado da renovação científica da escola cartográfica portuguesa – motivada pela expansão territorial e a formação da nova economia mineira, a qual estava representada de início pelos dois padres matemáticos, Diogo Soares e Domingos Capacci – nasceu pelas mesmas razões no Brasil, e mais especificamente, em São Paulo, uma arte cartográfica nativa, em que “o quadro da cultura portuguesa remonta o primitivismo do aborígene, como uma força constante e essencial”.

Um ponto crucial para a cartografia bandeirante é a autoria. Para Jaime Cortesão, estes mapas foram feitos por bandeirantes propriamente ditos, isto é, sertanistas de São Paulo, moldados pelo gênero e o estilo de vida do bandeirantismo, e simples sertanistas de ocasião, luso-brasileiros de outras capitanias, reinóis residentes no Brasil, ou até servidores oficiais, civis ou militares. Vale dizer que todos os bandeirantes foram sertanistas, mas nem todos sertanistas foram bandeirantes.

De acordo com a historiografia tradicional, os bandeirantes eram considerados nobres e ricos mercadores, visão defendida por Oliveira Viana. Em 1929, houve uma inovação sobre o mito dos bandeirantes, o pioneiro neste trabalho foi Alcântara Machado que os analisou como modestos lavradores, pequenos mercadores e aventureiros rústicos. Mostrou que se dedicavam à agricultura de subsistência e à captura de índios pelo interior. Neste estudo o autor debruçou-se sobre o cotidiano da sociedade paulista para contestar a historiografia tradicional, destinada a erguer o mito dos bandeirantes.

O acervo da cartografia bandeirante na Fundação Biblioteca Nacional conta com cerca de mais de vinte mapas que representam em sua maioria a região de São Paulo e suas conexões com territórios que lhe são adjacentes até as Minas Gerais, Cuiabá, sul de Goiás e Paraná. Depois aparecem algumas cartas da região de Minas Gerais, e por fim, aparecem as do Prata. Mas é evidente que com a expansão do território para o interior através das chamadas Entradas e Bandeiras, começam aparecer nestes mapas uma abrangência geográfica maior. Vale lembrar que as Entradas referiam-se às expedições originadas de diversas partes do Brasil, formadas por iniciativa oficial ou particular, ao passo que as Bandeiras se remetiam às expedições dos paulistas, como observou o historiador Ronaldo Vainfas.

As bandeiras eram compostas, basicamente de escravos ou aliados indígenas, capelão e chefe branco ou mameluco. Em caminhos e fronteiras, Sérgio Buarque recorreu tanto à antropologia quanto à história para explicar o hibridismo cultural próprio da sociedade colonial paulista.

Sérgio Buarque de Holanda em sua obra Monções analisou que “(...) a mobilidade dos paulistas estava condicionada, em grande parte, a certa insuficiência do meio em que viviam. Distanciados dos centros de consumo, incapacitados, por isso, de importar em grande escala, os negros africanos, (...) contentando-se com os negros da terra. Para obtê-los é que são forçados a correr sertões inóspitos e ignorados”.

Dessa forma, podemos dizer que o bandeirantismo resultou da marginalização econômica da capitania de São Vicente, que incentivou seus habitantes a buscarem alternativas fora da agricultura de exportação. Como observou John Monteiro, se inicialmente os paulistas se dedicavam à pequena agricultura e à pequena exportação de carne, depois eles se tornaram grandes produtores de trigo e necessitaram de escravos indígenas. Os cativos não seriam, portanto, vendidos pelos paulistas para os senhores de engenho, como muitos argumentaram, mas empregados diretamente nas propriedades agrícolas do planalto.

Quando a crise do abastecimento de escravos levou à decadência do cultivo de trigo no planalto, passou-se a incentivar a criação de gado e intensa procura de metais. Muitos participantes destas bandeiras não retornavam ao planalto, com isto, fixavam-se nas Minas Gerais ou no vale do São Francisco, onde fundaram os primeiros povoados. Mas como as distâncias estavam cada vez maiores e os lucros com as bandeiras não compensavam mais as investidas, no fim do século XVII, o apresamento de escravos definitivamente declinou e se intensificou a procura de metais preciosos.

Sérgio Buarque distingue dois caminhos bandeirantes na busca por indígenas. O primeiro era a trilha que se dirigia para o sul, rumo ao chamado “Sertão dos Patos”, isto é, a “via nacional dos Tupiniquins”. E o outro, refere-se à trilha que partia da Cananéia, seguia para sudoeste, pelo Iguaçu e Pequeri seria “a verdadeira estrada real da raça guarani”. Muitas cartas sertanistas descrevem os vários conflitos entre bandeirantes e indígenas nas trilhas que seguiam pelos principais rios do ciclo das monções. Gentil Assis de Moura salientou que “(...) constantes correrias que na região dos rios que afluem para o Paraná, faziam os Cayapós e os Guaicurus, índios cavalleros, assim como no Paraguai os temíveis Payaguás, que tanto deram que fazer às bandeiras paulistas”.

Outro ponto relevante para a penetração bandeirante foi a existência do rio Tietê. “Pelo Tietê se fez todo o devassamento e conquista dos sertões por onde passava a linha sempre incerta que separava as conquistas de Portugal e Castela”. Gervásio Leite distingue dois caminhos através do Tietê. Um seria mais difícil, em virtude dos possíveis conflitos com a tribo dos índios paiaguás. Os bandeirantes subiam o rio em comboio até o Anhamduhi (afluente do rio Pardo), atravessavam a região da vaccaria (campos que formam o lado ocidental da bacia do Paraná), desciam o rio Mateteu e subiam o rio Paraguai, o Porrudos (atual rio São Lourenço) e Cuiabá. A outra opção era seguir pelos rios Tietê, Paraná, Pardo, varadouro do Camapuan, Coxim, Taquari, Paraguai, São Lourenço e Cuiabá. É importante destacar algumas bandeiras que passaram pelo rio Tietê, como a de Raposo Tavares, a de Pedroso Xavier e a de Pascoal Moreira Cabral.


REFERÊNCIAS

CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1957.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
___________. Caminhos e Fronteiras. 3. ed. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
MACHADO, Alcântara. Vida e Morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1943.
MONTEIRO, John M. Negros da terra. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
MOURA, Gentil de Assis. O primeiro caminho para as minas de Cuyabá ; LEITE, Gervásio. Caminho das Monções. Cuiabá: UFMT, 1975.
PINTO, Alfredo Moreira. Apontamentos para o Diccionario Geographico do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899.
VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

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