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História do Livro | Obras Científicas na Impressão Régia

12 jan 2021

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Ao se instalar no Brasil, a Impressão Régia passou a editar não apenas atos legislativos e outros papéis produzidos pela administração, mas também periódicos e livros em geral, dos mais variados assuntos – cerca de mil títulos, no total, até 1822.

Segundo Márcia Abreu, professora e pesquisadora da UNICAMP, o processo de publicação exigia tantas diligências por parte dos residentes no Brasil – levar ou enviar os manuscritos a Portugal, obter licença por parte da Censura, fazer imprimir a obra e depois ainda obter nova licença para que esta circulasse – que, possivelmente por isso, vários livros existiram apenas em cópias manuscritas durante o período colonial. Isso ocorreu até mesmo com obras bastante conhecidas na época, tais como os poemas de Gregório de Mattos, compostos em meados do século XVII e só impressos em 1831. Alguns escritores, porém, persistiam, apesar das dificuldades: a “Biblioteca Lusitana”, obra de referência em quatro volumes publicada entre 1747 e 1759 pelo acadêmico Diogo Barbosa Machado, cita 91 autores nascidos no Brasil.

A instalação da primeira tipografia no país tornou o processo mais fácil. Livros de literatura, principalmente franceses, já traduzidos para o português foram publicados aqui; doutores e bacharéis se apressaram a compor elogios em verso e prosa, dirigidos aos membros da família real; manuais, livros didáticos e mesmo cadernos em branco, destinados à escrituração e a outras práticas, passaram a estar disponíveis. E, além disso, saíram do prelo várias publicações científicas referentes ao Brasil: memórias, catálogos e periódicos que se ocupavam das descobertas e do uso prático da Ciência.

Sublinhamos a questão do uso prático porque em Portugal, assim como em outros países (e também nos primeiros tempos da tipografia no Brasil), as obras científicas publicadas sob a influência do Século das Luzes tinham como uma de suas características a vocação para o pragmatismo. O avanço científico era visto, principalmente, como uma forma de contribuir para a melhor exploração das colônias e o fortalecimento do Estado português. Nesse contexto, destacam-se vários nomes, tais como o de Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares (1755 – 1812), principal articulador dessa política; o do italiano Domenico Vandelli (1735 – 1816), primeiro diretor do Jardim Botânico da Ajuda, mentor das expedições conhecidas como viagens filosóficas; o de José Bonifácio (1763 – 1838), frequentemente lembrado apenas como político, mas também naturalista e autor de trabalhos científicos. Já entre os brasileiros temos, entre muitos outros, Alexandre Rodrigues Ferreira (1756 – 1815), nascido na Bahia, líder da expedição que percorreu as capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá; o mineiro José Vieira Couto (1752 – 1827), cujas memórias sobre as salitreiras de Minas Gerais foram publicadas pela Impressão Régia do Rio de Janeiro em 1809; e o paraibano Manuel Arruda da Câmara (1752 – 1810), um dos mais importantes naturalistas da época, cujos primeiros trabalhos foram publicados em Portugal.

Veja um manuscrito da obra “Memória sobre a cultura dos algodoeiros”, de Arruda da Câmara, proveniente da Real Biblioteca. Originalmente a dedicatória era para o conde de Linhares, mas Frei Veloso – responsável pela Tipografia do Arco do Cego, em Lisboa, onde o livro seria publicado em 1799 – a alterou, de forma a que o nome constante na página de rosto fosse o do Príncipe D. João. Outras alterações se encontram nas páginas seguintes, mostrando a intervenção do editor-tipógrafo.

Compare o manuscrito com a versão impressa, digitalizada a partir do exemplar do livro na Divisão de Obras Raras

Com a tipografia instalada no Brasil, foi possível a Arruda da Câmara, assim como a outros cientistas, ter seus trabalhos publicados aqui. Veja seu livro “Dissertação sobre as plantas do Brasil” (1810), produzido dentro de um modelo de pesquisa comum desde o século XVIII, no qual se buscava nas colônias produtos equivalentes àqueles até então usados no Velho Mundo. A obra de Arruda da Câmara avalia as possibilidades de várias espécies de plantas em substituição ao cânhamo, cujas fibras eram utilizadas na indústria. Na página 5, o autor lamenta não poder fazer observações sobre as possibilidades dessas fibras vegetais na confecção de papel -- que então era obtido por meio da maceração de trapos de tecido – por não haver uma fábrica em que pudesse fazer as experiências necessárias.

Outra obra de grande interesse, publicada pela Impressão Régia em 1819, é este manual contendo instruções para a coleta, a conservação e a catalogação dos espécimes destinados a museus e jardins botânicos. O livro é uma tradução do manual francês publicado no ano anterior, acrescido de observações enviadas pelos correspondentes da Academia de Ciências de Lisboa e de reflexões sobre a fauna e a flora brasileiras e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, fundado em 1808.

Por último, chamamos a atenção para “O Patriota”, periódico publicado pela Impressão Régia entre 1813 e 1814. Nele se deu bastante espaço às ciências e às artes, sempre com a perspectiva utilitária característica do Século das Luzes. Segundo Lorelai Kury, pesquisadora da FIOCRUZ, os textos publicados no periódico eram majoritariamente produzidos por funcionários da Coroa; o próprio editor, o baiano Manuel Ferreira de Araújo Guimarães (1778 – 1838), era professor da Academia Real Militar do Rio de Janeiro e autor de traduções de manuais de matemática e astronomia. Trabalhos já editados pela Tipografia do Arco do Cego, inclusive a memória de Arruda da Câmara sobre os algodoeiros, também foram republicados em suas páginas.

Os textos científicos de finalidade prática valorizavam muito o uso de gravuras, cuja reprodução, entretanto, era bastante cara. “O Patriota” publicou apenas seis, além de várias tabelas, em seus 18 números, que foram digitalizados na íntegra e podem ser consultados aqui.

Saiba mais sobre o periódico “O Patriota” neste artigo de Bruno Brasil, da Fundação Biblioteca Nacional.

Página de rosto de manual de instruções para a coleta e o tratamento de espécimes naturais, publicado na Impressão Régia em 1819.