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Comunidades Quilombolas

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Apresentação

Enquanto esse dossiê estava sendo elaborado, especificamente em 3 de dezembro de 2023, o intelectual e militante do movimento quilombola Nêgo Bispo partia. Mas como anunciava: “Estarei vivo, mesmo enterrado” (Moncau, 2023). Sim, ele segue vivo.

Por isso, começamos a apresentação com esta homenagem: vamos discutir a partir deste intelectual, de seu nome, o papel da Biblioteca como espaço de registro e valorização do conhecimento. Uma memória se constrói no coletivo e a Biblioteca Nacional é a guardiã e responsável por manter vivo o conhecimento, mesmo que seus autores estejam enterrados.

A repercussão de sua perda foi grande, mas o legado que deixou repercutirá ainda mais. E no intuito de identificar seu legado no acervo da Fundação Biblioteca Nacional, em uma busca rápida pelo catálogo, ao buscar pelo autor “Nêgo Bispo” nenhum registro foi recuperado. Surge então a pergunta, esse intelectual não está no acervo da Biblioteca Nacional? A resposta é: procurou-se errado.

Aqui, uma pequena digressão. Para se encontrar algo em uma biblioteca é preciso que esse algo esteja representado em um catálogo. Percorrer quilômetros de prateleiras de livros pode até parecer ser divertido, mas é inviável quando se busca por uma obra. Por isso, uma biblioteca sem catálogo é uma biblioteca vazia, onde só se busca, mas nunca se acha.

Há diferentes tipos de catálogos. Aqui abordaremos apenas dois: acervo e autoridade. Acervo é o catálogo que reúne os registros bibliográficos, ou seja, aqueles que possuem informações sobre os materiais bibliográficos, os documentos propriamente ditos. Contém os dados de autoria, título, local, editora, ano de publicação entre outros elementos descritivos e temáticos, e, por fim, a sua localização no acervo. O catálogo de autoridades reúne os registros de autoridade que é o que padroniza os pontos de acesso, que são os termos e nomes escolhidos para representar algo. Quando se refere à responsabilidade pessoal, o registro de autoridade inclui as formas variantes do nome que a pessoa adota ao longo de sua vida, data de nascimento e morte, entre outras informações relevantes sobre essa pessoa.

Dentre as competências da Fundação Biblioteca Nacional (2022), encontra-se a de atuar como centro de referência para informações bibliográficas e atuar como entidade responsável pelo controle bibliográfico nacional. Considera-se que as informações bibliográficas são todas aquelas que compõem os registros de um catálogo, que vão desde os dados bibliográficos que representam uma obra, passando pelos dados que representam os responsáveis pela obra, até se alcançar os dados que representam o assunto de uma obra.

Isso significa que no Brasil a Agência Bibliográfica Nacional é a Fundação Biblioteca Nacional e o catálogo da Biblioteca Nacional é o que norteia a elaboração de outros catálogos. Trata-se de uma referência de consulta não somente para o Brasil, mas também para o mundo, pois os temas que fazem parte da cultura brasileira, os autores brasileiros e as obras brasileiras tendem a ser melhor representados no catálogo da Biblioteca Nacional do Brasil que em outras bibliotecas e assim sucessivamente. Quando se busca um autor americano, a consulta ao catálogo da Library of Congress é obrigatória. Quando se busca um autor francês, o catálogo da Bibliothèque Nationale de France que será consultado.

Foi neste contexto que se desenhou a estrutura desse dossiê. Nele, tratamos de refletir tanto o papel dos catálogos, como ressaltar o que a Biblioteca Nacional Digital tem publicado acerca das comunidades quilombolas, de movimentos abolicionistas e de personagens que, de alguma maneira, orbitam a temática.

Começaremos com uma questão bem biblioteconômica: o ponto de acesso de responsabilidade. De modo bem simples, é o termo que possibilita a busca, recuperação e reunião das obras de uma mesma pessoa. Essa seção será ilustrada com o exemplo do ponto de acesso de Nêgo Bispo, discorrendo sobre o seu registro de autoridade.

Depois, será apresentada a referida uma compilação de materiais disponíveis na Biblioteca Nacional Digital.

Por fim, retomamos às questões biblioteconômicas. Dando continuidade ao debate iniciado com uma pessoa específica, o Nêgo Bispo, fechamos o dossiê com um questionamento sobre a representação do quilombola, das pessoas como grupo. Longe de proporcionar a reparação necessária após séculos de escravização e uma pós-escravização totalmente descompassada e isenta de responsabilização, trabalhamos aqui para se iniciar o processo de substituição do termo “comunidade de escravos fugitivos” e termos relacionados no catálogo de autoridade do catálogo da Fundação Biblioteca Nacional, admitindo a importância da FBN para a Biblioteconomia no Brasil e para o reconhecimento dos povos originários, indígenas e quilombolas em seu próprio acervo. Adotar um termo representativo para tais comunidades é uma ação extremamente necessária e condizente com a preservação das memórias destes povos.

O pano de fundo que motiva esse dossiê, e essa temática em especial, é o alinhamento com a Agenda 2030. Os indicadores temáticos para a Cultura na Agenda 2030 abarcam entre diversas ações o direito às minorias. Embora não exista uma definição clara sobre minorias (Unesco, 2020), nelas se encontram os povos originários e os quilombolas. Se reconhece que a cultura contribui em transversal para diversos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e, nesse sentido, a Biblioteca Nacional está inserida na Agenda 2030 em muitos contextos. Aqui abordaremos algumas questões a serem discutidas, dentro das suas limitações, pois as respostas certas, justas e amplas não se alcançam sozinhas. Construiremos juntos um novo cenário biblioteconômico, decolonial e de contracolonização.

Ainda em construção, pois consideramos esse tema inacabado, esperamos com esse dossiê apresentar uma reflexão sobre a representação das comunidades quilombolas nos acervos e na sociedade brasileira. Que as mudanças aqui propostas e apresentadas sejam permanentes e não retroajam. Mas que não fiquem imóveis, que sejam fluidas, coerentes e respeitosas com todos aqueles envolvidos, em especial às comunidades quilombolas.

 

 

Referências

 FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Portaria FBN Nº 82, de 23 de dezembro de 2022. Institui o Regimento Interno da FBN. Diário Oficial da União, Brasília, DF, edição 243, seção 1, p. 137, 27 dez. 2022. Disponível em: https://in.gov.br/web/dou/-/portaria-fbn-n-82-de-23-de-dezembro-de-2022-453761318. Acesso em: 19 dez. 2023.

MONCAU, Gabriela. ‘Estarei vivo, mesmo enterrado’, disse Nêgo Bispo, quilombola contracolonialista que morre aos 63 anos. Brasil de Fato, São Paulo, 04 dez. 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/12/04/estarei-vivo-mesmo-enterrado-disse-nego-bispo-quilombola-contracolonialista-que-morre-aos-63-anos. Acesso em: 15 dez. 2023.

UNESCO. Indicadores cultura 2023. Paris: UNESCO, 2020. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000373570. Acesso em: 16 dez. 2023.

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