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Comunidades Quilombolas

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Em busca da cidadania

Em 1988 a Biblioteca Nacional realizou a exposição “Para uma história do negro no Brasil” em comemoração aos 100 anos da Abolição no Brasil. O título dessa seção é exatamente igual ao título do último capítulo do livro que registra esta exposição. No parágrafo derradeiro da obra, lê-se:

 
O que se busca, em última análise, é a construção de uma história do negro que reflita o seu estar e sentir na sociedade brasileira, condição indispensável para a formação de uma consciência negra. Esta Consciência, por sua vez, é essencial à sua participação, juntamente com as outras etnias, na construção da democracia no Brasil (Para uma história..., 1988, p. 53).

Entende-se aqui que parte importante da construção da história deve incluir a revisão crítica das denominações que rotulam suas personagens. No início desse dossiê, discutiu-se a importância do registro de autoridade de responsabilidade sobre a padronização do nome do Nêgo Bispo e o estabelecimento de suas remissivas. Agora vamos discutir os termos que representam as comunidades quilombolas e termos adjacentes.

Mas antes, ressaltamos que há muitos estudos e estudiosos que questionam os preconceitos nas linguagens documentárias e demais instrumentos biblioteconômicos. É um caminho iniciado e percorrido há anos, reconhecemos cada olhar, cada gesto e cada fundamento.

As mudanças terminológicas estão presentes na sociedade de modo geral, desde o surgimento de novos termos provocados pelo surgimento de novas tecnologias, como releituras e revisitação ao passado com o olhar contemporâneo. Em relação às terminologias, cabe uma reflexão apresentada pelo próprio Nêgo Bispo:

 
Existem incontáveis versões sobre a vinda dos colonizadores para o Brasil. Uma bastante exótica que aprendi no meu tempo de escola é a de que os portugueses chegaram ao Brasil por que se perderam no caminho das Índias, por onde pretendiam restabelecer o comércio de especiarias. Essa versão tenta ganhar consistência na denominação que foi dada aos povos originários por eles aqui encontrados. Esses povos até hoje são chamados de “índios”, exatamente porque os portugueses pensavam ter chegado às Índias. [...] Como sabemos, esses povos possuem várias denominações. Os colonizadores, ao os generalizarem apenas como “índios”, estavam desenvolvendo uma técnica muito usada pelos adestradores, pois sempre que se quer adestrar um animal a primeira coisa que se muda é o seu nome (Santos, 2015, p. 26-28).

O que se observa em relação ao termo “índio” é a sua gradual alteração para “indígena”, assim como se tem observado recentemente mudanças em muitos outros termos. Durante o desenvolvimento deste dossiê sobre Comunidades Quilombolas nos deparamos com o termo “escravo” em praticamente todos os vocabulários controlados, incluindo no vocabulário controlado da Biblioteca Nacional, ou seja, no registro de autoridade. Mas, assim como há uma mudança terminológica de “índios” para “indígenas”, observa-se discussões sobre a alteração de “escravo” para “escravizado”.

 
É nesse emaranhado ideológico que à conquista da liberdade legal deve seguir a liberdade pragmática, para a qual a libertação simbólica é condição.  Debruçando se sobre o processo de libertação simbólica, este estudo, pela perspectiva da semiótica discursiva, esmiúça ganhos que a substituição do termo corrente “escravo” pelo termo “escravizado” pode produzir nas ressonâncias semânticas do pressuposto de responsabilização e de opressão deste, no lugar do efeito de sentido de naturalização da condição cativa do primeiro (HARKOT-DE-LA-TAILLE, Elizabeth; SANTOS, 2012, p. 2-3).

O debate sobre a adoção do termo escravizado está presente em muitas áreas do conhecimento. Prudente (2020) afirma que “Não há, nunca houve, nem haverá escravos. O ser humano, sob violência física ou simbólica, tem sido escravizado, mas não escravo”.

Nesse contexto de revisão terminológica, a Biblioteconomia também está presente. A construção de vocabulário controlado nunca é finalizada, pois prevê mudanças sociais e culturais. A Fundação Biblioteca Nacional adota os termos para cabeçalhos de assunto da Library of Congess Subject Headings (LCSH), numa tradução literal. Considerando o tema desse dossiê, a busca no registro de autoridade recuperou o seguinte registro:

 

Figura 1 – Registro de autoridade de Comunidades de escravos fugitivos em 16.12.2023.
Fonte: Fundação Biblioteca Nacional (2010).


Se observar a fonte positiva dos dados, penúltimo campo preenchido, indica-se LCSH. Isso significa que se adota o termo da Biblioteca do Congresso Americano, algumas vezes em tradução literal e em outras vezes uma tradução adaptada, dependendo do contexto e de cada situação específica. A reflexão que fica a partir desse termo, é sobre o seu caráter representativo na comunidade quilombola brasileira.

O termo “comunidade de escravo fugitivos” não encontra ressonância na sociedade brasileira atual e nem na Biblioteconomia, que está inserida no movimento decolonial. Garcez (2022) aponta a necessidade da Organização do Conhecimento (que inclui a padronização dos termos nos catálogos) adotar uma postura decolonial, pois a lógica colonizadora hegemônica promove violência epistêmicas e injustiças sociais. Esse movimento na Biblioteconomia tem ganhado cada vez mais força. Analisando o termo “comunidade de escravos fugidos” com as discussões terminológicas sobre o termo “escravo” e a movimento decolonial na própria Biblioteconomia, ficou clara a necessidade de se rever esse termo.

O INCRA (2017) apresenta uma série de conceitos e termos, no qual “escravo fugitivo” não consta, dando lugar para comunidades quilombolas, que

 
[...] são considerados remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (INCRA, 2017, p. 4).

São muitos os termos no vocabulário controlado que remetem a termos totalmente inadequados aos contextos atuais. Esse dossiê possibilitou um começo, que pode ser concretizado com a atualização do registro de autoridade de Nêgo Bispo e a discussão sobre do registro de autoridade das Comunidades Quilombolas e termos relacionados.

A Fundação Biblioteca Nacional conta com a Comissão Interna de Tratamento de Informação “com a finalidade de deliberar sobre a política institucional de processamento técnico biblioteconômico, incluindo formato de registro bibliográficos, catalogação, classificação e indexação dos acervos geral, especial e de publicações seriadas”. Configura-se  como a instância técnica para se estudar a inclusão, atualização e alteração dos termos que compõem o Catálogo de autoridades da BN. Toda demanda terminológica passa por especialistas que estabelecem a sustentação teórica e prática para as mudanças necessárias e o fluxo a ser adotado.

No momento, muitos termos estão sendo estudados, em especial os termos relacionados aos quilombos e aos escravizados. Tal Comissão reconhece as demandas sociais e a necessidade de tais mudanças terminológicas. Reafirma-se o papel da Fundação Biblioteca Nacional como centro de referência para informações bibliográficas e como entidade responsável pelo controle bibliográfico nacional. Sendo, assim, se reconhece a importância da FBN neste cenário e a sua responsabilidade em atender e disseminar o uso de termos com representatividade mais justa e condizente com a interpretação contemporânea, o respeito deve estar presente também nos catálogos.

Como o catálogo é um reflexo da sociedade e a sociedade se constrói e reconstrói constantemente, é necessário que os termos adotados hoje em muitos catálogos sejam alterados para refletir o momento presente. Não se trata de apagar a história, e sim recontá-la com as palavras certas.

 

REFERÊNCIAS

BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Portaria n° 17, de 11 de Abril de 2023. Revigora a Comissão Interna de Tratamento da Informação (CITI), constituída pela Decisão Executiva n° 25, de 9 de dezembro de 2011. Disponível em: https://sei.bn.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?yPDszXhdoNcWQHJaQlHJmJIqCNXRK_Sh2SMdn1U-tzPAAL7rVZeEVSrMC4hHc3JZXpLXI9V6YwdWwVDZUQvWX8MCf-DhcY4sm8Wu2bjcButhvZCwXZ_OKrw9QkeHlSbt. Acesso em 26 dez. 2023

BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). [Registro de autoridade de] Comunidades de escravos fugidos. In: BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Catálogo de autoridade. Rio de Janeiro: FBN, 2010. Disponível em: https://acervo.bn.gov.br/sophia_web/autoridade/detalhe/98592?i=15&guid=1702785612254&returnUrl=%2Fsophia_web%2Fautoridade%2Findex%3Fguid%3D1702785612254%26p%3D2. Acesso em: 16 dez. 2023.

GARCEZ, D. C. Decolonizando a organização do conhecimento: conceitos, teorias e epistemologias de Abya Yala. Ciência da Informação Express, Lavras, MG, v. 3, p. 1-3 2022. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/220154. Acesso em: 19 dez. 2023.

HARKOT-DE-LA-TAILLE, Elizabeth; SANTOS, Adriano Rodrigues dos. Sobre escravos e escravizados: percursos discursivos da conquista da liberdade. In: Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade, 3., 2012, Campinas, SP. Anais. Campinas, SP: UNICAMP, 2012. p. 1-13. Disponível em: https://www.iel.unicamp.br/sidis/anais/pdf/HARKOT_DE_LA_TAILLE_ELIZABETH.pdf. Acesso em 20 dez. 2023.

INCRA. Regularização de território quilombola: perguntas & respostas. Brasília, DF: INCRA, 2017. Disponível em: https://www.gov.br/incra/pt-br/assuntos/governanca-fundiaria/perguntas_respostas.pdf. Acesso em: 20 dez. 2023.

 PARA uma história do negro no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1988. Disponível em:  https://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon1104317/icon1104317.pdf. Acesso em: 16 dez. 2023.  

 PRUDENTE, Eunice. A escravização e racismo no Brasil, mazelas que ainda perduram. Jornal da USP, São Paulo, 10 jun. 2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/?p=328593.  Acesso em: 20 dez. 2023.  

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