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Guerra das Penas: os Panfletos Políticos da Independência (1820-1823)…

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Independência/Independências

União e Independência/Independências: em torno destas palavras construiu-se, ao longo do ano de 1822, o discurso político no Brasil.  Até então, havia um diálogo pautado nas linguagens liberais e constitucionais entre as elites brasileira e portuguesa, uma vez que não se colocava em questão a unidade do Reino Unido. As notícias transmitidas pelos panfletos políticos e jornais revelavam novos horizontes que eram inspirados naqueles que a própria elite do lado de lá do Atlântico elaborou a partir das novas ideias da Revolução de 1820. Contudo, os acontecimentos do fim do ano de 1821, ligados às medidas arbitrárias das Cortes portuguesas em relação ao Brasil, possibilitaram uma mudança significativa nas palavras e ideias divulgadas pela linguagem política do momento, constituindo-se um novo ideário relacionado a algumas propostas separatistas. O rumo dos acontecimentos e as medidas suscitadas, que, graças ao Oceano Atlântico, naturalmente se desencontravam na divisão entre os dois Reinos, acabaram por redefinir os pontos essenciais da cultura política do mundo brasiliense. Como resultado, entre os partidários da Europa e os da América, estabeleceu-se uma crescente animosidade, que fez com que o constitucionalismo se convertesse em separatismo. Um processo gradual que levou, por fim, à independência do Brasil de Portugal.

Ainda em 1822, a proposta de desintegração do império português mesclava-se à perspectiva de união, pois se considerava uma medida extrema que se devia evitar. Mesmo os jornais mais radicais, como o Revérbero Constitucional Fluminense, continuavam relutando em se transformarem nos arautos da independência brasileira. Assim, escreviam os redatores em 3 de setembro de 1822:

 
Ainda nenhum brasileiro disse: eu não quero constituição; nenhum exclamou também: separemo-nos da Mãe Pátria; mas o capricho de alguns deputados nas Cortes de Lisboa tem-nos grandemente aproximado de um termo, em que os brasileiros todos gritaremos unânimes: temos pátria, temos constituição, temos rei e bastante denodo para defendermos a nossa liberdade, para conservarmos as nossas leis e a nossa política gloriosa de representação nacional. (Imagem 1)



Imagem 1: REVERBERO Constitucional Fluminense. Rio de Janeiro, RJ: Typ. Nacional, 1821-1822. 22x14 cm. N. 15, Tomo II, 03 set. 1822.

 

Deve-se ressaltar que tal artigo fora escrito às vésperas do oficial dia 7 de setembro de 1822, e, apesar de alertar contra o radicalismo das Cortes portuguesas e os seus desdobramentos, ou seja, a separação do Brasil de Portugal, ainda acreditava na possibilidade da defesa da unidade do Império Português.

Se o Brasil pregava a união, contudo, as medidas arbitrárias das Cortes de Lisboa despertaram as vozes da independência, que começavam a se fazer ouvir em meados de 1822.  Mesmo aqueles que haviam “cordialmente” desejado “a união do Brasil com Portugal”, a exemplo de José da Silva Lisboa, e que tinham realizado todos os “esforços literários para os trazer à concórdia” percebiam ter trabalhado em vão, pois o Congresso de Lisboa abusara de “sua supremacia metropolitana”. (Imagem 2) Na visão dos redatores brasileiros, a responsabilidade em quebrar a união cabia a Portugal, que “bem longe de apertar a união [promovia] a separação”. (O Espelho. nº 40, 5 abril 1822). Havia, nesse sentido, do lado de lá do Atlântico, uma “facção que tanto maquina a desunião do Brasil e de Portugal, sob a aparência de fortificar a sua união” (Correio Extraordinário do Rio de Janeiro. nº 1, 23 maio 1822).



Imagem 2: CAIRÚ, José da Silva Lisboa. Roteiro brazileiro; ou Collecção de principios e documentos de direito político em serie de numeros... /. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1822. 20 cm. P. 3, Parte I.

 

Ganhava força a proposta de separação. A partir de então, os panfletos políticos e a imprensa transmitiam em suas linguagens as diferentes versões que cada lado do Atlântico possuía sobre o conceito de união e/ou separação no interior do império português. Para os portugueses, o Brasil constituía parte integrante de um poderoso Império, agora sob a tutela de um governo liberal e justo; para os brasileiros, a união significava a formação de um Império indissolúvel, composto, porém, de dois Reinos distintos, que teriam direitos e deveres recíprocos.

A dissolução final dos laços coloniais entre Brasil e Portugal a partir de 1822 foi marcada por três conceitos fundamentais: emancipação, separação e independência. Segundo o dicionário de Antônio de Moraes Silva (1813), separar significava “desunir uma coisa da outra”, enquanto emancipar significava o ato pelo qual o filho saía do pátrio poder. Assim, em 10 de setembro de 1822, o jornal do Rio de Janeiro O Volantim (Imagem 3) definia independência como “a liberdade de sujeição, de fazer o que se quer sem autoridade, ou consentimento de outrem”, e assegurava que “nossa independência de Portugal não é mais do que aquela de um filho que se emancipa”. Este último sentido, essencialmente jurídico, passou a adquirir conotações políticas e viabilizou a proposta de uma emancipação política em 1822.



Imagem 3: O Volantim: periodico diário. Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Torres e Costa, Nº8, 10 set. 1822.

 

Vários projetos de emancipação e, posteriormente, de independências foram elaborados, uma vez que desencontros também se faziam presentes na América. Havia os que se colocavam inteiramente contrários à dissolução da unidade entre Brasil e Portugal, associando funestos acontecimentos à proposta de separação.  Eram as províncias do norte – Pará, Maranhão e Piauí, além da Bahia – muito ligadas a Lisboa pelo comércio, que preferiam uma relação direta ao Soberano Congresso e não aceitavam a autoridade do regente no Rio de Janeiro. Assim, os jornais da Bahia e os do Maranhão vislumbravam nos decretos do príncipe regente de 3 de junho de 1822, sobre a convocação de Cortes Constituintes brasileiras, apenas “a revolução, a anarquia, a guerra civil e a total desgraça dos bons cidadãos” (Maranhão.  O Conciliador do Maranhão. nº 205, 28 junho 1823).  Para tais periódicos, a proposta de independência do Rio de Janeiro trazia em seu bojo a volta do Antigo Regime e não os benefícios de um sistema liberal, já aceito pelos portugueses e brasileiros desde o movimento constitucional de 1820:

 
Pergunto-vos agora: entendereis acaso por independência, a separação de Portugal e volta ao antigo despotismo, ou o que todo o homem que tem o senso comum entende: ao da liberdade que proclamamos em virtude da qual, os cidadãos reunidos por seus representantes fazem as leis por que querem ser regidos? (Bahia: Tip. da Viuva Serva & Carvalho, 1822, p. 10). (Imagem 4)



Imagem 4: A America ingleza e o Brazil contrastados, ou Imparcial demonstração da sobeja razão, que teve a primeira e a sem razão do segundo, para se desligarem da mãe-patria, por Hum Amigo da Ordem. P. 10. Bahia: Na Typographia da Viuva Serva, e Carvalho, 1822.: [s.n.]. [4] f., 36 p. ; 21cm.

 

Outros significados vinham à luz. Aqueles que circulavam no lado de cá do Atlântico, ao se referirem ao conceito de independência, adotavam posturas diversas. “Nas circunstâncias presentes pois, a independência do Brasil, [...], não tem fundamento algum; é uma erupção tão prematura e intempestiva, que só aumentaria os seus males e desafiaria a sua degradação”. (José Antonio Miranda. Rio de Janeiro: Tip. Regia, 1821, p. 61).  (Imagem 5)



Imagem 5: MIRANDA, José Antonio de. Memoria constitucional e política sobre o estado presente de Portugal, e do Brasil, dirigida a el rey nosso senhor, e offerecida a sua alteza e principe real... regente do Brasil, /. Rio de Janeiro: Na Typographia Regia, 1821. XI, P. 61, 20,5 cm.

 

Em outros textos, entretanto, a separação já se tornava sinônimo de independência. O jornal O Espelho, no Rio de Janeiro, em 28 de maio de 1822, advertia que se as Cortes não tomassem atitudes precipitadas em suas medidas, manteriam no Brasil sua influência por “um tempo considerável”, uma vez que “seu partido era forte e popular”. O Brasil tornar-se-ia independente, mas com o caminhar os anos.  Afinal, os interesses dos dois países eram muito distintos, tornando “inevitável a separação”.

Para os portugueses, já se caminhava em direção a uma independência parcial ou total do Brasil, pois não havia dúvida que as notícias desastrosas que chegavam daquele reino indicavam que em “uma grande parte do território do sul do Brasil” havia “indícios quase certos de querer separar-se de Portugal, bem que ainda cá não haja certeza do quão longe se estende o contágio desse cisma político e quanto seja o número do povo contagiado”. (Imagem 6)





Imagem 6: BRASIL -. Comissão Especial das Cortes. Exame crítico do párecer que deu a Comissão especial das cortes sobre os negocios do Brazil. Lisboa: [s.n.], 1822. Pp. 1-2

 

Por conseguinte, a partir de meados de 1822, o conceito de independência se integrou ao novo vocabulário político do Reino do Brasil. Vislumbrava-se um novo futuro promissor: um país livre e repleto de sonhos que consolidaria o maior Império da América Latina. Mas, ainda havia certa hesitação. Ganhava força a proposta de uma “independência moderada”, em que o Brasil se emancipava de seu pai. Retomava-se a ideia de manter unidas as duas coroas, mas com leis e regimentos específicos para cada reino, assim como a de convocação de uma Assembleia brasileira, destinada a adaptar a Constituição portuguesa aos interesses do Novo Mundo. Afinal, o “Brasil tem direitos inauferíveis para estabelecer o seu governo e a sua independência; direitos reais, que o mesmo Congresso luso reconheceu e jurou”.  (Imagem 7) Essa perspectiva de uma independência moderada – ou seja, de uma emancipação –, foi utilizada principalmente pela elite coimbrã* – que ainda se mostrava vacilante em aceitar a proposta de construir o Império brasílico. Liderada por José Bonifácio de Andrada e Silva, não desejava mudanças bruscas, mas reformas graduais, que permitiriam promover a felicidade do maior número de pessoas e garantir a ordem vigente. Desejava, portanto, a emancipação administrativa, compatível com os interesses dos dois reinos – conforme propunha o jornal O Papagaio, escrito em 10 de maio de 1822, por um secretário de José Bonifácio: “Se aqueles luso-europeus assentam que a formação de Cortes no Brasil conduz esse Reino a uma independência absoluta, a uma inteira desunião dele com Portugal, enganam-se: o espírito público do Brasil não mostra tendência para esse fim: os seus desejos limitam-se a uma independência administrativa”. (Imagem 8)



Imagem 7: LEDO, Joaquim Gonçalves. [Representação] Senhor: A salvação publica, a integridade da Nação, o decoro do Brasil e a gloria de V.A.R. instão, urgem, e imperiosamente comandão, que V.A.R. faça convocar com a maior brevidade possivel huma Assembleia Geral da Representantes das Provincias do Brasil.... [Rio de Janeiro]: [Na Impressão Nacional], [1822].. [1] f. ;, 30cm.

 



Imagem 8: O Papagaio. Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Moreira, e Garcez, Nº 2, 10 maio 1822. 30x20.

 

Ainda no manifesto de 6 de agosto de 1822, redigido por José Bonifácio, declarava-se os motivos que o levaram a anuir à vontade geral do Brasil, que proclamava “à face do universo a sua independência política”. Qual era, portanto, o significado dessa independência? “A nossa independência de Portugal não é mais do que aquela de um filho que se emancipa”. Não simbolizava ingratidão em relação à Mãe Pátria, apenas o Brasil tinha o direito de fazer o seu Código de leis e promover a sua felicidade, como também o fizera Portugal (Manifesto de S. A. R. o Príncipe Regente Constitucional e defensor Perpétuo do Reino do Brasil aos Povos deste Reino. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, 1822).

Já a chamada elite brasiliense*, que se formara majoritariamente na América, tinha na palavra impressa seu principal contato com o mundo europeu e dispunha de um horizonte de expectativa mais circunscrito à realidade do Brasil, adotava uma outra perspectiva. Tendo as páginas do Revérbero Constitucional Fluminense, redigido por Joaquim Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa, como seu principal meio de comunicação, não se opôs, de início, à postura emancipacionista moderada. Contudo, o conhecimento das medidas consideradas despóticas das Cortes estimulou, a partir de abril de 1822, o grupo a proclamar a necessidade de uma ruptura total, equivalente a um divórcio político. Em sua edição de 9 de abril de 1822, ao comentar os combates na Bahia e a ação violenta das tropas portuguesas sob o comando de Madeira de Melo, proclamava:

 
não é com baionetas que se prega a Liberdade; não é derramando-se o sangue de irmãos, que a irmandade se une e se ama; o que até hoje têm feito os militares enviados da Europa para o Brasil (com bem pouca exceção), promove mais a independência deste Reino, que a natureza aconselha e que Portugal tanto procura obstar. (Imagem 9)



Imagem 9: REVERBERO Constitucional Fluminense. Rio de Janeiro, RJ: Typ. Nacional, 1821-1822. 22x14 cm. N. 22, Tomo I, 09 abr. 1822.

 

Com o acumular das notícias desencontradas e autoritárias das Cortes de Lisboa, passava-se da emancipação à independência. Era como defendia o Correio do Rio de Janeiro, que proclamava: “Rompeu-se o véu, desapareceu a mancha efêmera que ofuscava a luz; o Brasil já não é colônia, já não é Reino, já não são províncias de Ultramar; o Brasil é mais que tudo isso, é Nação livre, independente” (nº 47, 5 de maio de 1822). Eram palavras de euforia vitoriosa que assinalavam o corte absoluto com Portugal. (Imagem 10). Em 1823, esse sentido de independência – o rompimento total de Brasil de Portugal – se confirmava pelas vilas do Brasil, quando da aclamação de seu primeiro imperador, D. Pedro, em 12 de outubro de 1822 – ao reconhecerem que por fim alcançava-se a muito desejada “inteira ruptura política e absoluta independência brasileira” (Imagem 11)



Imagem 10: CORREIO do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: Typ. Offic. de Silva Porto, 1822-1823. N. 47, 5 maio 1822. 28x20 cm.



Imagem 11: DIÁRIO do Governo. Rio de Janeiro, Nº 36, Vol. 1º, 14 de fevereiro de 1823.

 

Frente a tais significados diversos em relação ao conceito de independência, compreende-se, então, por que o célebre Grito do Ipiranga, proclamado por D. Pedro em 7 de setembro, encontrou tão pequena repercussão entre os contemporâneos, sendo noticiado apenas sob a forma de um breve comentário no jornal fluminense O Espelho (20 de setembro de 1822) – “Independência ou Morte” transformava-se no “grito acorde de todos os brasileiros”. (Imagem 12) Para a maioria dos atores principais, a independência, embora parcial, já estava consumada. O acontecimento se legitimava e se oficializava com a aclamação de D. Pedro como imperador constitucional do Brasil, em 12 de outubro, realizada sob as aparências de uma grande festa cívica, que, segundo a ótica da época, estabeleceu os fundamentos do novo Império. Ainda assim, a independência do Brasil não se realizara em seu todo. Foram necessárias as guerras civis entre os que aderiram à causa do Brasil e os que defendiam a causa de Portugal para que as múltiplas independências fossem evidenciadas em um único Império Brasílico.



Imagem 12: O ESPELHO. Rio de Janeiro, RJ: Imprensa Nacional, Nº 88, 20 set. 1822. 31x22.

 

 

Lucia Maria Bastos P. Neves

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