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Histórias da Nova Holanda

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Naufrágio

por Mark Ponte
Qualquer pessoa que viajasse para o Brasil-holandês o fazia, é claro, em navios. Todos os anos, dezenas de embarcações circulavam entre a República e Pernambuco. Era uma viagem de 6 a 8 semanas, cheia de perigos. Piratas de Dunquerque, portugueses e norte-africanos visavam as cargas e as tripulações. O risco de naufrágio estava sempre presente, fosse causado por um erro do timoneiro ou por uma tempestade que surgisse repentinamente.

Comandado pelo capitão Jan Jansen, de Roterdã, o navio Zeelandia partiu do Recife em 12 de dezembro de 1645, totalmente carregado com pau-brasil, açúcar e minérios oriundos de Angola. A bordo estavam mais de cem pessoas. Além de dezenas de tripulantes, havia mais de cinquenta passageiros, muitos deles mulheres e crianças. Também se encontrava um variado grupo de funcionários repatriados, soldados de diversos países europeus e imigrantes que queriam se restabelecer na Europa. Entre a gente, estava Isabel ("Belletge") Dravers com seus três filhos, esposa do tabelião David Doutzeleau, que ficou no Recife; o comerciante escocês Barthel Barthelsz e um homem chamado Meijndert Laplander. O judeu português Abraham Ferreira (também conhecido como Israel Rodrigues) viajou com a esposa Hester, a irmã Rachel Dias e uma negra chamada Catarina. Cada passageiro pagava, como “bilhete de passagem”, 63 florins. Alguns passageiros, entre os quais Isabel Dravers, eram levados gratuitamente por "caritatie" (caridade).


O naufrágio, Hendrik Kobell, 1775 (Rijksmuseum)

A maioria desses passageiros jamais chegaria à República. Seis semanas após a partida, perto da Ilha de Wight, na costa inglesa, onde o mar pode ser bastante assustador, aconteceu uma tragédia. Provavelmente pego em uma tempestade, o navio naufragou próximo à ilha britânica. Apenas alguns membros da tripulação e passageiros sobreviveram à viagem. Com base nas declarações dos sobreviventes em diferentes notários de Amsterdã, podemos reconstruir um pouco dos eventos desastrosos de 29 de janeiro de 1646 a bordo do Zeelandia.

Demorou um mês para que o primeiro sobrevivente se apresentasse ao notário Schaeff, o tabelião fixo da Companhia. No dia primeiro de março, Meinders Woutersz, que escapou da tragédia, autorizou Aeltje Rutgersdr, viúva de Barthel Barthelsz, a receber dinheiro da Companhia das Índias Ocidentais em Enkhuizen. Segundo a escritura, Barthel Barthelsz não sobreviveu à viagem. Embora ele fosse apontado nos registros como "comerciante escocês", havia nascido em Amsterdã.


Vista do mar de navios naufragados por Reinier Nooms, 1651-1652 (Rijksmuseum)

Duas semanas depois, em 13 de março, dois outros sobreviventes, Jan Pietersz Stockman, antigo "comissário de registros de guarnição no Brasil" e o soldado Robbert Bacxster, de Herfort, na Inglaterra, registraram uma declaração. Eles declararam que o ajudante de carpinteiro do navio, Raeuwert Adriaensz, de Amsterdã, "ainda estava vivo [quando resgatado], mas chegou à praia quase sem fôlego e inconsciente". O depoimento revela que os náufragos receberam ajuda dos moradores da ilha. Adriaensz foi levado inconsciente em uma carroça até a casa de um nobre inglês, onde permaneceu por alguns dias, vindo a falecer na noite de 2 ou 3 de fevereiro.

Em 24 de março, o artilheiro português (marinheiro experiente) Franciscus d'Aroche [ou Francisco da Rocha], do Porto, afirmou ter sobrevivido à catástrofe. Ele também contou, a pedido de um operador de barcaça em Vlooienburg, que tinha visto Helena Alberts e suas filhas Annetgen Maria e Grietgen, que estavam a bordo do navio como passageiras, serem carregadas pelo mar até a praia. Elas já estavam sem vida.

Em 30 de agosto de 1646, dois outros sobreviventes do naufrágio, o contador Jacob Cooren, de 33 anos, e o "homem livre" Meijndert Woutersz, de 35 anos, contaram o drama que aconteceu a bordo do navio. Fizeram isso a pedido do alferes Wouter Claesz, de Dordrecht, cuja esposa e filho estavam a bordo do Zeelandia e que depois veio para Amsterdã em outro navio. Primeiro, Cooren e Woutersz descrevem a esposa de Claesz. Declaram que conheceram a bordo “certa mulher, moderadamente alta, de rosto esburacado, vestida ordinariamente com camisa vermelho-escarlate e avental azul com galão prateado”. A mulher tinha consigo um filho de cerca de 5 anos. O nome dela não é mencionado, nem está na lista de passageiros no arquivo da Companhia, mas talvez se tratasse de Mettie Janss e seu filhinho Pieter. No registro de batismo do Recife encontramos, em 14 de agosto de 1641, o batismo de Pieter, filho de Wouter Clasen (sic) e Mettie Janss.

Segundo a declaração, nenhuma das mulheres e crianças presentes no navio sobreviveu ao desastre. Cooren e Woutersz disseram que eles próprios "escaparam e se salvaram junto com outros poucos homens". Os sobreviventes permaneceram por alguns dias em Wight, mas "nenhuma das mulheres e crianças aportou ali com vida". Chama a atenção o fato de que Helena Alberts e suas filhas, bem como Mettie Janss e seu filhinho, não constassem na lista oficial de passageiros. Provavelmente jamais saberemos ao certo quantas pessoas morreram naquela noite. Mas ainda devem existir muitos depoimentos a serem descobertos nos Arquivos Notariais. A partir de uma declaração de Salomon Pereira e Joseph Alvares, de 4 de janeiro de 1656, dez anos depois do desastre marítimo, fica evidente que os depoimentos podem ter acontecido anos mais tarde. Em relação com uma questão de herança, eles declaram que “Rachel Dias, sendo ainda uma menina, cerca de onze anos atrás, a caminho da República [vinda] do Recife com o navio Zeelandia, faleceu no acidente na Inglaterra.”


Fontes

Stadsarchief
Arquivo da Cidade


Attestatie, Jacob Cooren en Meijndert Wouters, 30 augustus 1646. (SAA, 5075, inv.nr. 1293, 155v)

Atestado, Jacob Cooren e Meijndert Wouters, 30 de agosto de 1646

Doopinschrijving Pieter, 14 augustus 1641. (SAA, 379, inv.nr. 211, 29)

Registro de batismo, Pedro, 14 de agosto de 1641

Attestatie, Jan Pietersz Stockman en Robbert Bacxster, 13 maart 1646 (SAA, 5075, inv.nr. 1293, 26v)

Atestado, Jan Pietersz Stockman e Robbert Bacxster, 13 de março de 1646

Attestatie Salomon Pereira en Joseph Alvares, 4 januari 1656

Atestado, Salomon Pereira e Joseph Alvares, 4 de janeiro de 1656
Nationaal Archief


Arquivo Nacional, Haia

Lijst van vrijlieden die met licentie met het schip Zeelandia naar patria vertrekken. (Nationaal Archief, Den Haag, Oude West-Indische Compagnie (OWIC), nummer toegang 1.05.01.01, inventarisnummer 61)

Lista de cidadãos-livres autorizados para partir para a pátria no navio Zeelandia

Generale factuur van de lading van het schip Zeelandia., 1646 november 28 Nationaal Archief, Den Haag, Oude West-Indische Compagnie (OWIC), nummer toegang 1.05.01.01, inventarisnummer 61 Lading van het Schip

Fatura geral da carga do navio Zeelandia, 28 de novembro de 1646.


Imagens:

Zeegezicht met schipbreuk lijdende schepen van Reinier Nooms, 1651 – 1652

Vista marítima com navios naufragados, Reinier Nooms, 1651-1652

Landschap met gezicht op het eiland Wight, Wenceslaus Hollar, 1643

Paisagem com vista da Ilha de Wight, Wenceslaus Hollar, 1643

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