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Libertação dos escravos: um processo que não acabo…

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Libertação dos escravos: um processo que não acabou até hoje

Quando D. Isabel assumiu sua primeira regência, estava sendo discutida, no Parlamento, a proposta da lei denominada do Ventre Livre, que declararia livres todos os filhos de escravos que de futuro nascessem no Brasil. Tratava-se de uma proposta do gabinete abolicionista chefiado pelo Visconde do Rio Branco, e foi fortemente combatida pela oposição, assim como pelo lobby escravagista. Durante cinco meses se prolongaram os debates. A Princesa, de acordo com a Constituição, não podia intervir abertamente, mas fez tudo o que estava ao seu alcance para dar apoio ao Gabinete e, assim, conseguir a aprovação do projeto de lei, que foi afinal assinada a 28 de setembro de 1871.

Mais tarde, em 1888, durante sua terceira regência, novamente se repetiriam os debates em torno do tema escravidão, e mais uma vez a Princesa, apoiando o Gabinete abolicionista de João Alfredo Corrêa de Oliveira, conseguiu levar à aprovação da Lei Áurea. É o que registra seu bisneto, D. Antônio de Orleans e Bragança (1950-):

“A princesa tinha 25 anos quando assinou a Lei do Ventre Livre, e 42 anos quando firmou a Lei Áurea. Abolicionista de todo o coração, trabalhou com afinco pela aprovação de ambas as leis, chegando mesmo a inspirar e animar os experientes políticos da Assembleia Geral do Império nos momentos em que o desânimo, causado pelas longas e acaloradas discussões, superava o otimismo. Católica devota, ela muitas vezes punha-se a rezar, rogando a proteção divina para os que trabalhavam pela aprovação da lei.” (ArqRio na História, caderno especial, 3/9out 2021, p. 4).

No contexto dos festejos que se seguiram à assinatura da Lei Áurea, um grupo de abolicionistas planejou homenagear a Princesa Redentora, erguendo uma estátua sua no alto do Morro do Corcovado. Tomando conhecimento do projeto, a Princesa o recusou liminarmente, por meio de documento datado de 2 de agosto de 1888:

“Manda Sua Alteza a Princesa Imperial Regente em Nome de Sua Magestade o Imperador agradecer a oferta da Commição Organizadora constituída da Sociedade Brazileira de Beneficência de Paris, da Cia. Estrada de Ferro do Cosme Velho ao Corcovado e do Jornal O Paiz, para erguer huma estátua em sua honra pela extinção da escravidão no Brasil, e faz mudar a dita homenagem e o projecto, pelo officio de 22 de julho do corrente anno, por huma estátua do Sagrado Coração de Nosso Senhor Jezus Christo, verdadeiro redentor dos homens, que se fará erguer no alto do morro do Corcovado”. (https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?p=25960)

O projeto não teve andamento, mas mais tarde, modificado, daria origem ao Cristo Redentor.

A aprovação da Lei Áurea despertou incrível entusiasmo em todo o Brasil. Foi celebrada em todas as províncias. Como atestou Machado de Assis, testemunha ocular dos acontecimentos, o dia 13 de maio de 1888 “verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto” (artigo publicado no jornal Gazeta de Notícias, de 14mai1893). Até no Exterior repercutiu o entusiasmo. O Papa Leão XIII homenageou a Princesa, pela assinatura da Lei, enviando-lhe a Rosa de Ouro, alta honraria pontifícia então reservada pela Santa Sé a um número muito restrito de grandes damas católicas que se tornavam notáveis pela benemerência.

Para muitos espíritos superficiais, uma vez assinada a Lei Áurea, estava definitivamente resolvido o problema da escravidão no Brasil. Mas a Princesa sabia que isso não era verdade, e que era indispensável proceder a um prolongado e metódico esforço para corrigir, no Brasil, os malefícios causados por séculos de vigência do sistema escravagista, reparando assim uma grande injustiça histórica. Corrigir essa herança de erros antigos era a missão que pretendia desempenhar quando seu pai falecesse e ela, afinal, assumisse seu posto de Imperatriz D. Isabel I.

Desde jovem, ela, como também seu esposo, eram declaradamente abolicionistas; os filhos do casal, ainda meninos, brincavam em Petrópolis redigindo um jornalzinho abolicionista. A Princesa estava desde o início decidida a fazer tudo o que a Constituição Imperial lhe permitisse fazer, para eliminar a vergonhosa chaga da escravidão. Mas ela era, também, muito realista e sabia que esse passo não poderia ser precipitado, e precisava ser preparado com os devidos cuidados, para evitar que o remédio não fizesse mais mal que a doença.

De fato, a Princesa conhecia bem a situação dos negros no Brasil e, com profundo senso de realidade, queria para eles o melhor. O melhor, no caso, não seria uma libertação açodada, mas uma libertação que fosse preparada cuidadosamente e que, depois, fosse acompanhada de medidas adequadas para a inserção condigna dos libertos na sociedade brasileira. Com muita lucidez, a Princesa se colocava diante de um problema muito sério: qual seria o “day after” dos negros, uma vez libertados do cativeiro? Habituados a muitos séculos de escravidão, primeiro no continente africano de origem, depois no Novo Mundo, o que lhes aconteceria se de repente se vissem livres, responsáveis pelos seus atos e tendo que prover por sua própria iniciativa ao suprimento de suas necessidades? Como se daria a adaptação à vida livre, de quem carregava consigo o peso atávico de uma tão prolongada servidão, ainda mais no contexto de uma sociedade que conservaria costumes e hábitos mentais profundamente impregnados da mentalidade escravagista? Como fazer a emancipação total dos escravos, sem prolongar sua triste condição de dependência e subserviência disfarçada sob as aparências de uma liberdade meramente pro forma?

Todo esse conjunto de questões a Princesa tinha bem presente em seu espírito, e em função dele procurava adequar sua estratégia política. O mesmo, aliás, fazia seu pai, o Imperador. A opção imperial pela emancipação por etapas se adequava a essa estratégia. Primeiro, a proibição do tráfico negreiro, em 1850, quando a Princesa era ainda menina de 4 anos; depois, a Lei do Ventre Livre (sancionada pela Princesa em 1871); algum tempo depois, a Lei dos Sexagenários (sancionada pelo Imperador em 1885); e, por fim, a Lei Áurea, que, num clima de grande entusiasmo popular, aboliu definitivamente a escravidão no Brasil. Quando, no dia 13 de maio de 1888, a Princesa assinou a Lei Áurea, os escravos afinal libertados constituíam apenas uma pequena minoria dos afrodescendentes. Somente uma pequena minoria dos descendentes de escravos aqui trazidos pelo tráfico negreiro, durante mais de 300 anos, ainda estava escravizada naquele momento. Os demais já estavam emancipados, ou em virtude das leis abolicionistas anteriormente promulgadas, ou por efeito do trabalho emancipador lento, mas constante, benemérito e bem sucedido, das tradicionais Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, presentes e atuantes em todo o Brasil.

Uma das táticas desenvolvidas pela Princesa para facilitar a integração condigna e justa dos antigos escravos na dinâmica social e econômica do Brasil foi o incentivo ao ensino profissionalizante, novidade que um sacerdote e educador lançara alguns anos antes em Turim, no Norte da Itália, e que a Princesa desejou logo pôr em prática no Brasil.

São João Bosco (1815-1888), fundador da Congregação Salesiana, foi um grande educador: o “método preventivo” – proposto por ele como alternativo ao excessivamente severo “método repressivo”, que era costumeiro na educação infanto-juvenil – até hoje impressiona os estudiosos de Pedagogia. No início do século XIX, o processo de industrialização da Europa atraía para os maiores centros urbanos muitas famílias provenientes do meio rural. Ali, desenraizadas e sem formação religiosa e cultural adequada, viviam em condições precárias. Os homens trabalhavam em fábricas, com turnos de trabalho pesadíssimos, e muitas vezes gastavam em bebidas, nas tabernas, boa parte do que ganhavam. As mulheres cuidavam como podiam das casas e dos filhos menores, enquanto os mais crescidos, sem escolas nem formação, andavam pelas ruas, aprendendo o que não deviam. O resultado é que assim se constituía o caldo de cultura ideal para desajustes sociais e vícios de todos os tipos. A criminalidade era crescente e tendia a escapar ao controle das autoridades.

Esse era o quadro geral das cidades maiores e mais industrializadas. Em Turim, capital do Reino do Piemonte, era o que presenciava o jovem sacerdote João Bosco. As ruas viviam cheias de meninos de rua, abandonados e entregues ao léu. A esses meninos, Bosco passou a proporcionar boa formação religiosa, cultural e profissionalizante. Reunia-os em grandes concentrações e lhes ministrava aulas de formação, ao mesmo tempo que jogos e diversões. Daqueles candidatos a futuros marginais, conseguia extrair todo o potencial humano que possuíam. Deles fazia ótimos pais de família, trabalhadores honestos e eficientes e encaminhava os mais dotados para os estudos superiores e as profissões liberais. Entre eles, também recrutava seminaristas e futuros sacerdotes.

A obra de Dom Bosco começou modesta e foi, pouco a pouco, crescendo e assumindo vulto grandioso. Sua fama chegou ao Brasil, onde reinava D. Pedro II e onde a Princesa Isabel, herdeira do trono, defrontava-se com o problema de como seria o futuro dos escravos, depois de libertos. Temia que, abandonados pelos antigos senhores, vivessem em condições precárias, formalmente livres, mas de fato presos a um sistema que lhes impedisse o acesso a condições melhores de existência.

A Princesa tinha uma visão muito “avançada” para sua época. Compreendeu que somente a formação profissionalizante poderia ser adequada para assegurar, aos libertos do cativeiro, uma adequada inserção na sociedade brasileira. E escreveu a Dom Bosco, pedindo que mandasse missionários para o Brasil e oferecendo-se para ajudar. Houve uma troca de cartas entre o santo piemontês e a princesa brasileira. Atendendo ao pedido de D. Isabel, Dom Bosco enviou, em 1881, os missionários Salesianos que iniciaram seu trabalho em Niterói, depois na cidade de São Paulo, em Mato Grosso, em Minas Gerais e muitos outros locais.

O golpe militar de 15 de novembro de 1889, entretanto, impediu a concretização desse plano grandioso. O projeto emancipador da Princesa foi interrompido e ficou sem realização.

Não é justo acusar a Princesa de se ter desinteressado da sorte dos ex-escravos, como também não é justo acusá-la pela lentidão com que, no Brasil, foi sendo gradualmente abolida a escravidão. Na verdade, ela fez tudo quanto estava ao seu alcance e, mesmo sabendo que arriscava sua coroa, não recuou diante do sacrifício final.