BNDigital

Projeto Resgate Barão do Rio Branco

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Paraíba

por Rosa Maria Godoy Silveira
Apresentação - Do silêncio do tempo, o resgate da História

1. Uma História por Fazer: a Paraíba Colonial

A Paraíba constituiu-se em uma das mais importantes Capitanias do período colonial brasileiro, por várias razões: a alta qualidade do pau-brasil encontrado em suas terras; a lavoura açucareira, efêmera, contudo, por não ter nunca mais se recuperado da desestruturação decorrente das invasões holandesas; e a sua inserção como espaço estratégico para a expansão da colonização portuguesa para o norte, respaldando a Nova Lusitânia, depois Pernambuco.

Tanto é que a Paraíba deu trabalho aos colonizadores e custou inúmeras expedições, antes de ser conquistada, dada a resistência dos indígenas ocupantes do futuro território paraibano, especialmente a nação Potiguara.

Depois, mesmo quando a crise econômica se instalou, do final da ocupação batava até o início do século XIX, período durante o qual a Capitania, por decisão da Metrópole, foi anexada politicamente a sua vizinha ao sul, permaneceu, via tributação, como constante fornecedora de recursos financeiros para Portugal e também para Pernambuco; e de madeiras de lei para o mercado externo.

Sob outros prismas, o sertão da Paraíba integrou a expansão de rotas irradiadas da Bahia, que alargaram o território português por dentro, constituindo configuração, em muitos aspectos, distinta do modo de vida litorâneo. Paraibana era parte significativa do patrimônio da Casa da Torre. E, exatamente por conta disso, da apropriação das terras interioranas, na Capitania, a exemplo de suas vizinhas Pernambuco, Rio Grande e Ceará, aí se sucede um dos episódios de maior expressividade da resistência indígena, a Confederação dos Cariris.

Resistência reiterada em outros tempos, em outras circunstâncias, desde o rechaçamento do ocupante holandês, até a contestação ao poder metropolitano nos albores do século XIX, participando de 1817, em extravasamentos liberais que ultrapassariam o marco formal da autonomia política do Brasil.

Apesar de toda essa importância histórica, a Paraíba colonial continua uma incógnita. Uma grande incógnita. Sua historiografia, de respeitáveis nomes, não conseguiu, ainda, recompor o processo da ocupação inicial da Capitania.

A presença holandesa nas várzeas do Rio Paraíba é bastante obscura. A crise que se abateu sobre o território paraibano, após a expulsão dos invasores flamengos, jaz nas dobras do tempo. A anexação a Pernambuco foi salva pelo raro trabalho da professora Elza Régis de Oliveira (1). A conquista do sertão não é tão desconhecida graças ao denodo documental de Wilson Seixas (2). O processo formativo da estrutura fundiária da Capitania pode ser sistematizado, mais recentemente, por Irene Rodrigues Fernandes (3) porque Lyra Tavares (4) deixou transcritas muitas cartas de concessão. E os primórdios da ocupação da Paraíba - e suas controvérsias - têm vindo a lume pelo esforço de rigorosa crítica metódica do Dr. Guilherme Gomes da Silveira D’Ávila Lins (5).

Muitos estudiosos tentaram reconstituir o passado da Paraíba, especialmente depois da fundação do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, que, tardiamente surgido, em 1905, buscou identificar as raízes paraibanas sob a perspectiva do recém-instalado regime republicano e sob a matriz positivista. De todos esses historiadores da época, o pai fundador, indubitavelmente, foi Irineu Ferreira Pinto, que hoje nomeia a sede do IHGP. Sua obra Datas e Notas para a História da Parahyba (6) é consulta obrigatória de todos que se debruçam sobre o período colonial paraibano. Não fora ele e muita coisa estaria perdida para sempre, na implacável seletividade da memória.

Irineu teve a oportunidade e a percuciência de trabalhar com documentos manuscritos da Paraíba colonial, originários da metrópole, que, pacienciosamente, transcreveu; documentos dos quais uma parte, quase por milagre, repousa na seção de Obras Raras do mesmo IHGP.

Depois dele, vieram Maximiano Lopes Machado (7) e, mais recente, Horácio de Almeida, (8) compondo com Irineu uma trilogia de obras-sínteses do processo histórico paraibano colonial.

Na esteira desses três autores, com poucas e honrosas exceções, se repete a historiografia paraibana.

A mudança desse perfil só vem ocorrendo muito recentemente, praticamente nos anos noventa deste século. A despeito da instalação de Cursos de Pós-Graduação em História no país, com particularidade para o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, onde muitos docentes da Paraíba têm se titulado como Mestres e Doutores, a Paraíba colonial não tem sido opção significativa como tema de pesquisa.

A proximidade dos 500 anos da presença portuguesa, comemorados em 2000, e mais, talvez, a formação de uma nova geração de historiadores, integrando o corpo docente da Universidade Federal da Paraíba, da Universidade Estadual da Paraíba, e de outras Instituições de Ensino Superior do estado; e talvez mais, ainda, a redescoberta de um patrimônio colonial expressivo e significativo, histórica, artística e turisticamente, podem configurar algumas das razões para a retomada do interesse pela Paraíba colonial. Atualmente, inúmeros pesquisadores vêm se preocupando com este período de nossa História, através do estudo de diversas temáticas: monumentos, invasão holandesa, estrutura de poder etc.

2. O Projeto RESGATE dos Documentos Manuscritos Avulsos sobre a Capitania da Paraíba

Um dos mais sérios motivos para a História Colonial da Paraíba jazer no esquecimento, com certeza, é a falta de Arquivos sobre o período, no estado.

Podemos resumir os acervos pertinentes disponíveis ao Arquivo Histórico da FUNESC (Fundação Espaço Cultural Jose Lins do Rego), do Governo do estado, com a ressalva de que a documentação mais antiga remonta ao século XVIII; ao acervo da Santa Casa de Misericórdia, extremamente valioso, mas necessitando ser organizado e dispor de instrumentos descritivos, para possibilitar a recomposição do lado interno da colonização; a Seção de Obras Raras do IHGP, em que avultam exemplares de Ordens Régias, mas em estado de difícil conservação; e acervos esparsos do interior do estado, especialmente cartorários, que necessitam de uma vigorosa ação de preservação.

Faltava o outro elo da Memória. A perspectiva do colonizador, sem a qual a História fica manca. A distância física de Portugal sempre foi um dos empecilhos ao acesso, agravado pela falta de visão de políticas culturais de alcance duradouro, por parte dos nossos dirigentes seja a nível federal seja a nível estadual.

O projeto RESGATE “Barão do Rio Branco”, do Ministério da Cultura, com apoio de outras instituições públicas e privadas, veio demonstrar o que se configura como uma política cultural efetiva, de alcance permanente, e, indubitavelmente, o mais significativo ato comemorativo dos 500 anos de presença portuguesa.

A magnitude do empreendimento se revela não só nos recursos financeiros alocados pelo Governo brasileiro mas, sobretudo, pela mobilização de inúmeras equipes de pesquisadores dos vários estados do país e o enorme esforço de articulação interinstitucional em vários níveis politico-administrativos dentro e fora do Brasil.

Em fins de 1997, a Drª Esther Caldas Bertoletti, essa incansável batalhadora pela preservação da memória histórica brasileira, com quem a Paraíba - através do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR), da Universidade Federal da Paraíba - já desenvolvera vários projetos preservacionistas, (9) contatou o NDIHR e a Fundação Espaço Cultural/FUNESC, do Governo estadual, para que o estado integrasse o amplo mutirão cultural de organização dos valiosos documentos manuscritos avulsos, referentes às Capitanias brasileiras, existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa-Portugal.

Elaborado o projeto e obtido o apoio financeiro do Ministério da Cultura e do Governo do Estado da Paraíba e de recursos humanos da UFPB, a equipe composta para realizar o empreendimento permaneceu em Lisboa de setembro de 1998 a março de 1999, ordenando toda a documentação da Capitania da Paraíba e sistematizando o seu conteúdo. De volta ao Brasil, o trabalho teve continuidade com a elaboração do catálogo documental, que passou por inúmeras revisões e precisões, e em que foi fundamental o constante intercâmbio eletrônico com a equipe do AHU.

Para a iniciativa chegar a bom termo, foi essencial a composição da equipe de pesquisadores. De um lado, a experiência da Profª Elza Régis de Oliveira, docente aposentada da UFPB, que, em duas ocasiões anteriores, em fins da década de sessenta e em fins da década de setenta, já houvera pesquisado a documentação sobre a Paraíba no Arquivo Histórico Ultramarino, em ambas as vezes, realizando, respectivamente, reproduções fotográficas e micrográficas dos manuscritos. De outro, o interesse e a energia de dois jovens pesquisadores - o Prof. Mozart Vergetti de Meneses, do Departamento de História/UFPB, liberado para a missão cultural, e a Profª Maria Vitória Barbosa Lima, do NDIHR/UFPB - que, vivenciando o projeto, amadureceram profissionalmente e possibilitaram à Universidade qualificar novos recursos humanos para uma área de pesquisa da História do Brasil que demanda um requisito técnico sofisticado: a leitura paleográfica. Portanto, para além de seu produto final - este Catálogo, o Projeto Resgate possibilitou ao país um outro resultado multiplicador de mais longo alcance: a capacitação de quadros para instituições culturais.

3. A Documentação Manuscrita Avulsa da Capitania da Paraíba: as etapas do trabalho

Em muitos arquivos portugueses - assim como espanhóis, italianos, holandeses, franceses, ingleses - adormece a memória sobre o período colonial do Brasil. Longos mais de trezentos anos.

Entre todos esses acervos, o mais rico sobre a História colonial brasileira está guardado no Arquivo Histórico Ultramarino, sediado no Palácio da Ega-Lisboa, onde se hospedou o general francês Junot, quando da invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas. Originalmente, foi criado entre 1926 e 1931 - como Arquivo Histórico Colonial. Com a mudança empreendida pelo governo lusitano, da nomenclatura de suas colônias remanescentes para províncias ultramarinas, o Arquivo Histórico Colonial mudou de nome, e o AHU herdou o seu acervo e mais os da Seção da Marinha e Ultramar, da Biblioteca Nacional de Lisboa e de vários órgãos da administração do Ultramar português: Mesa da Consciência e Ordens, Conselho da Fazenda, Conselho da Índia, Conselho da Guerra e Conselho Ultramarino.

A estimativa é de que 300 000 documentos compõem o acervo sobre o Brasil no AHU, dispostos em cerca de 4 000 caixas, um imenso conjunto dividido em três seções: Documentos avulsos, na Sala do Brasil; Documentos em códices, na Sala dos Códices; Documentos cartográficos e iconográficos, acondicionados em mapotecas (10).

A documentação manuscrita avulsa encontrava-se, originalmente, em caixas, mas sem ordenação. Periodizações se superpunham; anexos estavam despregados de seus respectivos documentos principais.

O trabalho de cada equipe do Projeto foi ingente para reorganizar a disposição das peças documentais segundo um critério cronológico rigoroso e mediante o retorno dos anexos aos seus devidos lugares.

Após sua organização e ordenação pela equipe de pesquisadores, os documentos referentes à Paraíba, no acervo do AHU, totalizam 3523 unidades documentais, acondicionadas em igual número de capilhas, armazenadas em 50 caixas, depois microfilmadas em 57 rolos e digitalizadas em CD-ROM.

Anteriormente ao Projeto Resgate, por ocasião da segunda visita da Profª Elza Régis de Oliveira ao Arquivo, em 1979, havia 47 caixas relativas à Paraíba, mas foram incorporados às mesmas documentos provenientes de Pernambuco, pertinentes à capitania tabajara, ampliando o número de caixas. Este montante ainda mais se avoluma se atentarmos para o fato de que grande parte dos documentos contém anexos, por vezes, às dezenas e centenas.

A etapa seguinte do Projeto consistiu no paciencioso trabalho de leitura paleográfica dos documentos, um a um, para identificação do tipo documental, datação, identificação de remetente e destinatário, e um texto-súmula do conteúdo, todos estes dados lançados em fichas apropriadas de sistematização, conferidas e reconferidas inúmeras vezes. A busca de precisão para as informações, por exemplo, consumiu horas e horas, particularmente os casos de documentos não datados e as assinaturas quase indecifráveis, quase “hieroglíficas”, recorrendo-se à consulta de meios auxiliares como as listagens dos reis de Portugal, secretários de Estado, Vice-reis do Brasil, Governadores-gerais, capitães-mores, membros do Conselho Ultramarino, etc. Sem falar nos constantes retornos aos documentos para localizar fatos, referências, detalhes que possibilitassem uma periodização, aproximada ao menos.

A tipologia do repertório documental é bastante diversificada, o que exigiu, também, uma ampla compreensão de suas especificidades: alvarás, autos, avisos, bilhetes, cartas, cartas de sesmarias, cartas-patentes, cartas-régias, certidões, consultas, declarações, decretos, despachos, editais, escritos, informações, lembretes, listas, mandados, mapas, ofícios, pareceres, passaportes, portarias, provisões, recibos, relações, representações, requerimentos, sentenças de justificação. Mais frequentes as cartas, as consultas, os ofícios e os requerimentos.

Aos pesquisadores que vão se debruçar sobre esta documentação, talvez a muitos falte uma idéia do labor contido nesta sistematização, que os aliviará muito do fardo em que a pesquisa arquivística se transforma em nosso país, por falta de ações preservacionistas como esta.

De volta à Paraíba, a equipe empreendeu a redigitação de todos os verbetes, para a estruturação do Catálogo, e um longo processo de revisão em cinco versões, para as quais se valeu de Catálogo elaborado pela Profª Elza Régis de Oliveira, no início dos anos oitenta, em dois volumes inéditos. (11) Nesta fase, foi precioso o intercâmbio eletrônico com o Dr. José Sintra Martinheira, Técnico Supervisor Principal do AHU, que sempre respondeu prontamente às impertinentes consultas remetidas d’além-mar.

Enviada a versão final do Catálogo, a documentação da Capitania da Paraíba entrou em processo de microfilmagcm, em Lisboa, por volta de setembro de 2000, sendo os microfilmes remetidos para o Brasil, para fins de digitalização e feitura dos CD- ROMs.

4. As Perspectivas abertas pelo Projeto RESGATE à História da Paraíba Colonial

O Projeto RESGATE como um todo, nos diversos estados do país, representará uma inflexão nas pesquisas históricas, no sentido abrangente desta última palavra: não só profissionais historiadores, mas antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, geógrafos, ambientalistas, poderão se valer da riqueza de dados e informações contidos na volumosa documentação, resgatada para o Brasil, acerca de suas bases coloniais, sem cujo entendimento porção significativa de sua formação histórica ficará lacunar.

A perspectiva é de um claro revigoramento da História colonial. Imagine-se, em todo o Brasil, a quantidade de investigações e as possibilidades de recomposição da Memória colonial das diferentes partes do território brasileiro, construindo o mosaico das diversidades regionais de uma nação que ainda tem muito a refletir sobre seu processo configurativo. Assim, para o alento dos historiadores, as oportunidades se abrem para aperfeiçoar cursos de História já consolidados e consolidar cursos de regiões mais distantes, com dificuldades de acesso à documentação até mesmo produzida no âmbito do próprio país. O fato de o Arquivo Nacional abarcar todo o conjunto de documentos de todas as capitanias, decorrente do Projeto, e disponibilizá-lo através de moderníssimos meios e suportes de reprografia, tornará o acesso melhor e mais ágil, democratizará a História do Brasil. Ao menos, como campo de pesquisa.

No caso específico da Paraíba, a documentação manuscrita avulsa existente no Arquivo Histórico Ultramarino abarca o período de 1593 - oito anos da data da conquista - até 1826, extrapolando a data da autonomia política do Brasil.

Três períodos bem definidos da História colonial paraibana estão contemplados no repertório documental:

• a lº fase, da conquista, compreendendo a invasão holandesa, a crise econômica pós- restauração do território para Portugal, a expansão da colonização para as terras interioranas. Entre 1593 e 1755, totaliza cerca de 1462 documentos;

• a 2º fase, entre 1755 e 1799, cobre o período de subordinação política da Capitania a Pernambuco, desde o início do governo pombalino até a recuperação da autonomia. Totaliza cerca de 1050 documentos;

• a 3º fase, a mais curta, entre 1799 e 1826, reporta-se a uma conjuntura densa de acontecimentos marcantes para a Colônia, quando a Paraíba procura reconstruir--se. Totaliza cerca de 1050 documentos.

Nota-se, pois, que mais da metade da documentação foi produzida nos 72 anos finais do período a que o acervo se refere. É já um dado sugestivo.

Fundamentalmente, os manuscritos avulsos consistem na correspondência entre as autoridades coloniais sediadas nas Capitanias e as autoridades metropolitanas, com particularidade para o rei, o Conselho Ultramarino e a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar da monarquia portuguesa. E vice-versa.

Com a União Ibérica, sob o controle do monarca Filipe II de Habsburgo, o Estado espanhol criara, em Portugal, em 1604, o Conselho da Índia, extinto em 1614. Mas a agregação dos reinos esvaziara a administração dos domínios ultramarinos lusitanos, que passaram a ser geridos pelo Conselho de Portugal, sediado na Espanha. Só depois de 1640, com a restauração da Coroa portuguesa, é que a monarquia lusa criou órgãos para administrar o seu império: a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar e o Conselho Ultramarino, subordinado àquela, e extinto em 1833.

Além da rotina administrativa, os documentos evidenciam, também, a relação entre os súditos e o rei. Não é casual o expressivo número de requerimentos dirigidos aos soberanos solicitando mercês pessoais ou para familiares, configurando práticas de uma sociedade estamental e de um Estado patrimonialista que deixaram vincadas profundas marcas em tempos posteriores, já quando o Brasil era Estado nacional autonomizado da metrópole.

As solicitações não paravam aí: de provimento em ofícios públicos; de patentes de oficiais nos corpos militares; para cargos na esfera religiosa. Relevam-se algumas evidências: a primeira, a circularidade nas concessões, isto é, restrita a certos grupos familiares que controlam as benesses e se perpetuam através de gerações, apontando para a configuração do poder local, sobretudo, quando certos sobrenomes do passado estão muito vivos ainda na vida política recente. Outra, a militarização da máquina de governo, acentuada no período final da colonização, a julgar pelo número de requerimentos para postos nas milícias.

Temos aí importantes interrogações a fazer aos documentos, que eles próprios nos suscitam, em uma teia de intrigas. Quais foram as relações engendradas entre a estrutura administrativa portuguesa e as instâncias locais? Que práticas políticas se configuraram neste território? Quais as relações entre os governantes da capitania e a administração sediada em Lisboa?

Outras interrogações nos propiciam os conflitos, perceptíveis nas vetustas folhas de papel de caligrafia estranha, mais bem preservados do que muita documentação contemporânea. Disputas de cargos, devassas, confrontos entre autoridades, autoridades e súditos, população e dirigentes. Permeiam-nos - aos conflitos - articulações multiformes, de grupos locais com instâncias do aparato do Estado em Lisboa. Quais as articulações entre grupos familiares locais na Corte, passando por cima das autoridades metropolitanas sediadas na Capitania? Queixas sobre desmandos administrativos, justiça mal aplicada, crimes, desordens, sugerem uma sociedade na ebulição de seu processo configurativo.

Outro leque de questões à espera de respostas diz respeito à conquista e à defesa do território. A documentação do AHU permite vislumbrar uma atuação vultosa do corpo militar e uma preocupação reiterativa com as fortificações (notadamente a fortaleza de Cabedelo), que precisam ser analisadas de forma sistemática: quem eram essas pessoas contempladas com patentes na Capitania? Como viviam? Como se relacionavam com a administração metropolitana e como foram produzindo visões localizadas, distintas, do olhar do colonizador? Também a vida econômica paraibana - especialmente a sua crise açucareira - poderá, agora, ser mais bem caracterizada, especialmente as repercussões sobre os habitantes da Capitania. As informações tratam de contratos, rendas reais, receitas e despesas, produção, exportação, número de engenhos, dados sobre escravos, dados demográficos, comércio, movimento portuário, entre outros assuntos. Os mapas estatísticos do final do século XVIII e inícios do XIX são uma preciosidade. Ao mesmo tempo, também o processo de devastação das riquezas naturais da terra poderá ser reconstituído: dos recursos disponíveis, tão detalhadamente inventariados em memórias sobre rios, fauna e flora, constantes na documentação, à devastação da Mata Atlântica, cujas madeiras, conforme os mapas demonstram, foram servir possivelmente para a reconstrução de Lisboa, após o terremoto de 1750. Será mais inteligível, à luz desse tesouro documental, perceber os motivos pelos quais perdemos os outros tesouros, em uma Capitania tão provida pela natureza.

Chega a ser intrigante - ou, ao contrário, compreensível - a razão pela qual a sua História colonial jaz em silêncio. Particularmente, quando temas importantes para entender o seu tempo contemporâneo foram ocultados. Assim, por exemplo, a problemática da propriedade fundiária, que poderá desocultar-se com as informações contidas nas cartas de confirmação de sesmarias, especialmente em terras do sertão, no século XVIII.

A perda de autonomia política da Capitania foi um acontecimento forte e inquietante para os governantes e a população. Como já foi referido, mais de 1000 documentos foram produzidos no período da anexação a Pernambuco, predominando, de modo constante, as queixas sobre conflitos de jurisdição e a apropriação das rendas da Paraíba em Recife. Aliás, a árida questão tributária precisa ser pesquisada como um mecanismo fundamental de como se sugavam os recursos locais para a metrópole e, também, para as capitanias mais pode rosas, com melhor aparato comercial-portuário-alfandegário. Documento de
destaque, peça remanescente no conjunto, é a Memória de Fernando Freire de Castilho sobre as potencialidades da Capitania, que serviu de base para a desanexação, em 1799, coroando o seu empenho para recuperar a autonomia.

Outras faces do processo histórico colonial, em território paraibano, têm mais camadas, ainda, de pó do tempo. Assim, os índios e os negros. Do ponto de vista da gestão e controle dos nativos e das atividades econômicas envolvendo escravos, a documentação sinaliza para pistas consideráveis. Se tantos outros assuntos são desconhecidos ou pouco conhecidos, todos aqueles que envolvem as camadas subordinadas da sociedade paraibana, ainda mais.

Outros prismas, de uma História cultural, por exemplo, poderão ser descobertos. Um dos aspectos com evidências documentais numerosas é o peso da religiosidade nos gastos públicos. Aliás, que não se restringia a esta dimensão, antes, se ampliava tal o volume de pedidos de aumento de soldos e vencimentos, pagamento de propinas (gratificações), de tenças etc. Muito sugestivos para uma análise das relações entre as esferas pública e privada, debatidas hoje, em tempos de globalização.

A História dos costumes - outra área renovada da investigação histórica atual, pode beber- se nos episódios de rapto de mulheres, de herança envolvendo viúvas, comportamentos de religiosos.

Inúmeras outras possibilidades são propiciadas pela documentação do AHU. O seu impacto, pois, sobre a historiografia relativa à Paraíba colonial, deverá ser ponderável.

A sociedade paraibana, as suas elites culturais, as Universidades, os Cursos de História e outros cursos, os pesquisadores, precisam tomar posse, de forma democrática, desta documentação que diz respeito a sua terra e tão longe, e por muito tempo, ficou. Olharem, com seus próprios olhares, os olhares de outros tempos e outras pessoas que viveram a epopéia da colonização. Sem que isto implique em afirmar uma concepção heroicizante da História, mas nestas terras ocorreu uma saga.

Trata-se de elaborar um amplo programa de pesquisas, para ir-se recompondo a Memória e História paraibanas. Ou mesmo compondo-as, por mudas; fazerem-nas falar.

À Identidade de um povo, vital para a construção de sua História presente e futura, vitais são a Memória e a História pregressas, no jogo fascinante que a nós nos aprisiona - seres humanos - mas também nos liberta entre o presente, o passado, o futuro.

João Pessoa, dezembro de 2000.


Agradecimentos

• Dra. Esther Caldas Bertoletti, Coordenadora do Projeto Resgate de Documentação Histórica “Barão do Rio Branco” /Ministério da Cultura, pelo incansável acompanhamento do Projeto e o apoio à equipe da Paraíba;

• Dra. Maria Luisa Abrantes, Diretora do Arquivo Histórico Ultramarino, e a todo o corpo técnico da Instituição, pelo acolhimento e assistência, durante a permanência da equipe de pesquisadores da Paraíba em Lisboa;

• Drª Heloísa Liberalli Belotto, de São Paulo e o Prof Antônio César, de Goiás, bem como a todos os brasileiros integrantes das várias equipes do Projeto Resgate, pela amizade e companheirismo demonstrados
“quando o tempo fechava” em Lisboa.

• Prof Regina Célia Gonçalves, docente do Departamento de História e Coordenadora do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional/UFPB (Gestão 1996-1998), pelas contribuições durante a elaboração do Projeto;

• Dra. Ivanice Frazão de Lima e Costa, Presidente da Fundação Casa de José Américo/Governo do Estado da Paraíba, pelo suporte institucional ao Projeto, quando de sua tramitação no Ministério da Cultura;

• Prof Damião Ramos Cavalcanti, atual Presidente da FUNESC/Governo do Estado da Paraíba, instituição que encaminhou o Projeto ao Ministério da Cultura;

• Prof Guilherme Gomes da Silveira D’Ávila Lins, docente da UFPB e pesquisador do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR)/UFPB, pelas valiosas sugestões na fase de revisão final do Catálogo.

NOTAS:

1 Cf. A Paraiba na crise do século XVIII: subordinação e autonomia.(1755-1799) Fortaleza: BNB, 1985.

2 Cf. O velho arraial de Piranhas (Pombal) no Centenário de sua elevação a cidade. João Pessoa: Gráfica A Imprensa. 1962; Pesquisas para a História do Sertão da Paraíba. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, 21. João Pessoa: Imprensa Universitária, 1975: 67- 76; Casa da Torre e bandeirantismo na conquista do sertão. Paraíba, conquista, patrimônio e povo. João Pessoa: A União, 1985: 23-25.

3 Cf. Catálogo das Sesmarias Paraibanas. Trabalho inédito, realizado para o Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional/UFPB.

4 Cf. João de Lyra Tavares. Apontamentos para a História territorial da Paraíba. 2 ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado (fac-similar) e Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 1982 e 1989. 2 v. (1ª edição: Paraíba: Imprensa Oficial, 1910 e 1911).

5 Cf. Gravetos de História (Revisão da crítica de atribuição da mais antiga crônica da Paraíba e outras achegas, históricas contemporâneas). 3 v. inéditos.

6 Datas e Notas para a Historia da Parahyba. 2 ed. (facsimilar). João Pessoa: Editora da UFPB, 1977. 2 v. ( 1ª edição, Paraíba: Imprensa Oficial, 1908 e 1916).

7 Cf. História da Província da Paraíba. 2 cd (facsimilar). João Pessoa: Editora da UFPB, 1977. 2 v. (1a edição: Paraíba: Imprensa Oficial, 1912).

8 Cf. História da Paraíba. 2 ed. João Pessoa: Editora da UFPB, 1978. 2 v. (1ª edição: João Pessoa: Imprensa Universitária, 1966, Tomo I).

9 Além da já referida organização da Seção de Obras Raras do IHGP, foram microfilmados os jornais mais antigos da Paraíba e os Relatórios de Presidentes de Província.

10 Cf. Esther Bertoletti. “Brasil- Portugal, um mar• oceano de documentos”, in Brasil e Portugal: 500 anos de Enlaces e Desenlaces. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. 2000: 102-129.

11 Cf. Elza Regis de Oliveira. Documentos para a História da Paraíba: Arquivo Histórico Ultramarino. João Pessoa: datilografado, 1978. 2 v. 662 p.

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