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Cidade Marina – a miragem de Oscar Niemeyer para o sertão mineiro

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Considerações finais

por Gabriel Oliveira

Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucuia vai se levar no mar (...) O Urucuia não é o meio do mundo?

(João Guimarães Rosa)


No início da narrativa de Grande Sertão: veredas, obra máxima do escritor mineiro João Guimarães Rosa, o jagunço Riobaldo expõe ao interlocutor urbano sua definição de sertão: “o sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia” (Rosa, 2001, p. 23-24). Em seguida, o narrador afirma que os “gerais”, por sua vez, correm em volta da paisagem sertaneja: “esses gerais são sem tamanho (...) o sertão está em toda a parte” (Rosa, 2001, p. 24).

Ironicamente, por uma dessas coincidências na trajetória de um país complexo, difuso, diverso e contraditório como o Brasil, o livro Grande Sertão: veredas era publicado no mesmo ano em que Juscelino Kubitschek assumia a presidência, 1956, dando início às articulações para a construção de Brasília. Assim, ao mesmo tempo em que o universo do sertão – esse espaçodesconhecido”, “selvagem” e “bárbaro” dentro do imaginário nacional – transbordava pela literatura de Guimarães Rosa, o exemplo mais refinado e ambicioso de projeto desenvolvimentista daquele período histórico, naquele contexto, era anunciado para o interior do país. Na mudança da capital federal do litoral para o sertão vislumbrava-se um verdadeiro “monumento imaginário inaugural”, que deveria funcionar como aglutinador e organizador do processo de modernização brasileira (Menezes, 2011, p. 33).

Como vimos neste Dossiê, para além da coincidência histórica que marca a oposição entre o Grande Sertão de Guimarães Rosa e a moderna e utópica cidade de Brasília, o arquiteto Oscar Niemeyer e outros profissionais (além de investidores de capital privado e atores políticos) planificaram, também, no mesmo período, outro projeto audacioso e ainda mais encravado nas paisagens rosianas, nos ermos do chapadão do Urucuia – eis a ideia de Cidade Marina.

Alavancado por espírito otimista e esperançoso quanto às possibilidades de desenvolvimento econômico e social no Brasil, a maioria dos periódicos analisados nesta pesquisa enalteceu a proposta de Cidade Marina, cujas idealizações políticas e estéticas vinham alinhadas com o próprio imaginário que começava a se desenhar com a planificação, a construção e a inauguração da capital federal, Brasília. Tanto por uma camada de assertividade em relação ao hipotético sucesso da proposta, como pela confluência favorável de opiniões sobre o tema na imprensa, visões hiperbólicas e possíveis exageros relacionados ao projeto de Marina vinham na esteira de uma sensação de salvação do país por meio de propostas desenvolvimentistas.

Apesar de seus croquis e esboços urbanísticos não terem saído do papel – ou, justamente por isto – Marina pode ser definida por sua forma titubeante, que oscilava entre um retumbante “fracasso”, de uma proposta que não se concretiza, cidade que não se ergue, e, por outro lado, seu relativo “sucesso”, segundo os olhares fascinados da imprensa para o desenvolvimento do país. Cambaleante entre tudo aquilo que deveria ter sido e tudo aquilo que não foi, sua proposta surgiu como uma espécie de miragem no Vale do Rio Urucuia.

De forma reveladora, a epígrafe de João Guimarães Rosa que abre estas considerações finais coloca o Urucuia no “meio do mundo”: “Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucuia vai se levar no mar (...) O Urucuia não é o meio do mundo?” (Rosa, 2001, p. 206). O Rio Urucuia, encravado entre os chapadões, tabuleiros e vales cheios de vida das geografias do norte e noroeste de Minas Gerais, pode ser lido, ainda hoje, como um “meio de mundo”, como tantos outros territórios espalhados pelo território nacional. Se, assim como afirma o crítico literário Roberto Schwarz - em seu célebre texto, “As ideias fora do lugar” (Schwarz, 1977, p. 13-28) - temos a contínua sensação de que no Brasil as “ideias” estavam e seguem “fora de centro” em relação ao mundo “iluminado” europeu ou norte americano, é no mínimo sintomático que o Urucuia tenha sido o epicentro pronto a receber a “mais moderna cidade do mundo”, em meados do século XX.

À distância no tempo, as promessas de “eldorado”, “oásis” e “berço de ouro” para a região de Cidade Marina, bem como a produção dessas “ideias enviesadas”, “fora de centro em relação à exigência que elas mesmas propunham” (Schwarz, 1977), mostram as incompatibilidades e desarranjos inerentes a um país hiperbólico como o Brasil. Sua essência paradoxal passa pela combinação entre aquilo que é mais moderno (na arquitetura e artes, por exemplo; mas também nas facilidades de entrada do capital financeiro) e o que é mais arcaico, isto é, do tratamento dado às classes subalternas e aos povos habitantes desses “meios do mundo” do país.

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