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Cidade Marina – a miragem de Oscar Niemeyer para o sertão mineiro

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Último ato

por Gabriel Oliveira
Dois fatos nos ajudam a considerar a renovação argumentativa por parte da empresa colonizadora CAUSA durante os anos 1960, quanto ao projeto de cidade Marina. Primeiramente, era necessário que o último se adaptasse ao novo cenário político do país após a saída de Juscelino Kubitschek do governo, em 1960, seguido por um período de crise fiscal e turbulência política[1]. Em segundo lugar, a venda de terrenos vinha acontecendo desde o final do ano de 1955 e os resultados projetados pelos idealizadores parecem ter sido diferentes do esperado, visto que a comercialização das terras não estimulou iniciativas efetivas de produção agropecuária, muito menos de mobilizações concretas para a construção da cidade.

Durante o ano de 1962, a cobertura dos periódicos centrou seus argumentos em torno de um novo e “inédito esquema de colonização” por parte empresa colonizadora, com um “sistema revolucionário de vendas de terras” (Jornal do Brasil, 1962b). Ao que tudo indica, tal sistema de vendas acoplado à colonização agropecuária visava uma adequação para o aproveitamento efetivo da exploração agrícola, no sentido de evitar uma simples operação para valorização imobiliária da região.

Em uma extensa reportagem publicada pelo Jornal do Brasil em junho de 1962 foi apresentado o sistema de “condomínios agrícolas”, proposto para atender três objetivos principais da colonizadora naquele momento: a) aumentar a produção agrícola do país, em primeiro lugar; b) promover benefícios de caráter social; e c) viabilizar lucros por parte dos compradores das terras. Nessa mesma reportagem, o periódico entrevistou os principais responsáveis pela CAUSA naquele momento, Max Herman, diretor-geral da empresa, e Aluísio Gosling Sande, diretor de administração. Herman e Sande detalhavam ao jornal como funcionaria o sistema:

 
— A empresa, durante a vigência do contrato, se encarregará de colonizar a terra, plantá-la, irrigá-la (o que já está feito), instalar postos médicos, escolas, igrejas, dar assistência social aos colonos e providenciar para o escoamento das mercadorias para os mercados.

O dono do lote receberá, anualmente, 20% dos lucros da produção, enquanto 30% destinarão à empresa para pagamentos de agrônomos, professores, médicos, compra de semente, adubos, salários de tratoristas e aluguel de tratores, pois não compraremos esses veículos para não sobrecarregar as despesas iniciais. 50% desses lucros se destinarão aos colonos, que cuidarão do trabalho nas terras (Jornal do Brasil, 1962b).

Segundo o depoimento dos responsáveis pela CAUSA, mil e duzentos trabalhadores seriam empregados no trabalho da terra, cabendo à colonizadora sua instalação, manutenção e assistência social, sem ônus para o comprador do terreno. Interessante notar, nesse sentido, a tentativa de articulação da empresa junto ao então prefeito do Distrito Federal, Sette Câmara, para a alocação de candangos desempregados em Brasília, e ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), para a atração de famílias nordestinas como mão-de-obra rural no noroeste mineiro.





Figuras 1 e 2 - Argumentos veiculados no Correio da Manhã (1962b) para a realização de um grande negócio com o “lote-agrícola” na Fazenda Menino.

Em virtude da mobilização dos movimentos sociais no início da década de 1960 e das reformas de base propostas pelo presidente João Goulart, o tema da reforma agrária havia adquirido grande capilaridade no debate público. Nesse contexto, a nova proposta dos “Condomínios Agrícolas CAUSA” frequentemente utilizava a bandeira da reforma agrária para distribuição, venda e negociação de suas terras, inclusive como estratégia publicitária (Figura 3). Em um texto publicado em agosto de 1962, por exemplo, a CAUSA afirmava que o empreendimento visava “colaborar, patrioticamente na grande e inadiável obra de interiorização do Brasil e ao aumento da produção agrícola” (Jornal do Brasil, 1962b; Correio da Manhã, 1962a). Assim, nas sistemáticas divulgações do projeto, realizadas especialmente pelo Jornal do Brasil e pelo Correio da Manhã, nos anos de 1962 e 1963, a ideia foi apresentar a aliança profícua entre o seguro emprego de capital por parte dos proprietários e o fomento à produção agropastoril.



Figura 3: Colônia Agropecupária do Menino e a reforma agrária. Fonte: Jornal do brasil, 1962a.

Apesar dos esforços da CAUSA, a instabilidade política atravessada pelo Brasil naquele início de década de 1960 possivelmente afetou o planejamento para a produção dos condomínios agrícolas e da construção da cidade Marina. Com o projeto já em queda de popularidade na imprensa, o ano de 1964 ainda foi marcado pelos movimentos de reação política por parte de setores conservadores da sociedade brasileira contra João Goulart e de conspiração golpista, que desencadearam o golpe militar de 1º de abril de 1964.

Naquele contexto, o pensamento político de Oscar Niemeyer, e também o do então diretor geral da CAUSA, Max Hermann, ambos ligados ao Partido Comunista, e de diversos outros atores e acionistas da empresa – alguns dos quais membros de partidos ou deputados da base aliada de Juscelino Kubitschek na década anterior – conflitavam explicitamente com o regime que se instalava a partir de 1964. Num cenário de incompatibilidades, perseguição política e apreensão popular, o momento nacional de então já não contemplava maiores referências ao projeto de cidade Marina, nem a publicidade para a venda de terrenos na Colônia Agropecuária do Menino.

Segundo busca realizada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, a última menção na imprensa nacional ao projeto – não só no período de análise desta pesquisa (1955-1965), mas também nos anos e décadas subsequentes – se deu na edição 39 da revista Módulo de 1965, lançada no mês de abril. A publicidade para a cidade Marina nessa edição era apresentada de forma mais discreta do que o conteúdo veiculado nas edições de 1956 e 1960, já analisadas neste dossiê. Na ocasião, como se comemoravam dez anos de existência da Módulo, a Colonizadora Agrícola e Urbanizadora S.A. prestava sua homenagem pelo aniversário da revista e ao seu fundador Oscar Niemeyer, “criador da cidade Marina” (Módulo, 1965, p. 45). Apesar das comemorações, a revista teve sua publicação interrompida naquele mesmo ano de 1965, quando seu escritório foi invadido e parcialmente destruído pela polícia, no Rio de Janeiro.



Figura 4 - A última menção do projeto na imprensa presta homenagem aos dez anos da Revista Módulo e ao seu fundador Oscar Niemeyer, “criador de Marina”.

Se o desfecho melancólico da divulgação do projeto de Cidade Marina na imprensa brasileira foi atrelado ao agravamento da instabilidade política no país e à impossibilidade de continuidade do trabalho de Niemeyer e de outros membros ligados à empresa colonizadora, uma série de motivos compõe um quadro explicativo da interrupção da proposta. Como vimos, a reviravolta da conjuntura política brasileira na primeira metade dos anos 1960 veio adicionada a um acúmulo de complicadores: desafios para alavancar investimentos públicos e privados; controvérsias sobre a participação de parlamentares na colonizadora; incertezas quanto à rentabilidade do negócio; duvidosas promessas de fertilidade das terras e de estabilidade climática e geográfica da região.

 

[1] Após a eleição de Jânio Quadros, aliado da UDN, à Presidência da República, e sua subsequente renúncia, em agosto daquele ano, com apenas seis meses de mandato, o vice-presidente João Goulart viria a assumir a presidência, em sete de setembro de 1961. No momento da renúncia, Goulart, que estava em missão diplomática na China, foi inicialmente proibido de entrar ao Brasil, quando voltou para tomar posse. Imediatamente, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, formou a Campanha da Legalidade, para assegurar a posse do vice-presidente. O impasse foi superado com a adoção provisória do sistema parlamentarista, com o qual João Goulart iniciou seu governo, em 7 de setembro de 1961. Como veremos, os anos seguintes também foram palco de diversas disputas, pressões e movimentações, até o golpe militar de 1964.

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